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domingo, 19 de junho de 2016

ENSAIO | Anelito de Oliveira


A crise e o PT

Constitui lugar mais que comum dizer que temos uma dificuldade enorme de analisar o tempo presente. Essa dificuldade decorre do fato de que, enquanto seres vivos num determinado presente, vemo-nos implicados, claro, nesse presente. Estamos envolvidos, de uma forma ou de outra, nos acontecimentos que se apresentam à nossa frente, somos também responsáveis por esses acontecimentos, partes interessadas nos processos sociais. Não temos o “distanciamento crítico” que, por força de certa lei científica, considera-se indispensável à eficácia e mesmo credibilidade de toda análise. Então, quando, movidos especialmente pela angústia que esses acontecimentos presentes nos acarretam, decidimos analisar o presente, o próprio tempo que estamos vivendo, afrontamos essa premissa de “distanciamento crítico”. Colocamos em questão a própria ideia positivista de ciência, que impõe o “distanciamento crítico”, e afirmamos a experiência histórica, a que tivemos e temos, como parâmetro de análise. O que resulta dessa análise não é, não pode sequer desejar sê-lo, a verdade absoluta sobre o presente. Mas isso não quer dizer, por outro lado, que se trata de uma verdade meramente relativa, de um ponto de vista pessoal. Trata-se de uma narrativa, com seus elementos plausíveis e implausíveis em face da verdade verdadeira, digamos, da “aletheia” dos antigos gregos. Essa verdade verdadeira é, sem dúvida, sempre uma espécie generosa de impossibilidade a inspirar os humanos, ideal que nos motiva a continuar vivos.
Neste momento, no tempo presente mais imediato, é possível que estejamos em face de um golpe de estado no Brasil, como querem fazer acreditar o PT e seus apoiadores, que “forças ocultas” estejam, mais uma vez ao longo da história, querendo tomar o poder federal e colocar fim à democracia. É possível que o governo provisório de Michel Temer já seja a transição “soft”, nos limites constitucionais, para uma nova velha ordem autoritária. É possível, sim, que os defensores do governo Dilma Rousseff estejam com a verdade, que o ex-presidente Lula seja inocente em relação aos crimes de que vem sendo acusado, que nada tenha a ver com os atos ilícitos denunciados pela chamada Operação Lava Jato, que tudo não tenha passado nem passe de um estratagema das “forças ocultas” para viabilizar o golpe. É possível, também, que a presidente do país, embora vinculada ao PT, nada tenha a ver com os eventos criminosos de que são acusados tantos petistas e seus aliados, que ela seja, como a própria proclama e seus apoiadores reverberam, a inquestionável imagem da honestidade, seriedade e responsabilidade. Enfim, também é possível que o número enorme de envolvidos com a Lava Jato, muitos já condenados, presos, e outros em vias de condenação, seja inocente, que tudo que foi delatado, averiguado e provado até não passe de abuso de poder da parte de Sérgio Moro com vistas a efetivar um golpe de estado no país. Sair do campo das possibilidades exige, sobretudo, um enfrentamento desapaixonado, tanto quanto possível, dos próprios fatos.

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Desde 2013, quando se iniciaram as grandes manifestações populares contra o governo Dilma Rousseff, a memória social do golpe militar de 1964 tem sido utilizada insistentemente pelo PT, pelo próprio governo federal e seus apoiadores como forma de desqualificar a oposição partidária, especialmente o PSDB, e abrandar, no mínimo, o descontentamento de parcela expressiva da população, de toda uma massa que cresce, como era de se esperar, ao ritmo do acirramento da crise econômica, social, que os governistas, de modo muito previsível, preferem tratar como crise apenas político-partidária. Pouco a pouco, o golpe militar, de que grande parte dos manifestantes só ouviu falar ou tem notícia através de conteúdos na internet, passou a ser a medula do argumento dos governistas contra o “impeachment” da presidente Dilma Rousseff já aprovado pela Câmara e pelo Senado, sinônimo de “impeachment”, de tal forma que agora, quando a crise vai-se encaminhando para um ponto mais crítico, para um desfecho problemático, não para uma solução, qualquer manifestação contra o estado de coisas vigente, nas ruas e nas chamadas redes sociais, logo é estigmatizada como golpismo. A associação entre “impeachment” e golpe militar ganha mais força, impondo-se como verdade, em face do terrível – como ninguém tem direito a ignorar – histórico de vítima da ditatura militar que a presidente, assim como tantos de sua geração, inclusive Lula, carrega. Esse histórico em si faria da presidente, do ex-presidente e dos seus apoiadores representantes naturais, digamos, da defesa do estado de direito democrático. E faria dos outros, seus opositores, representantes casuais, pode-se dizer, do “estado de exceção”, antidemocrático, da ditatura militar. No limite, o discurso pró-Dilma, governo federal, PT e Lula enreda a população numa situação dilemática: aceitar isso, todo um estado de coisas negativo – que vai além, obviamente, da Lava Jato, que envolve mazelas sociais de todo tipo –, ou autorizar a volta da ditadura. A aceitação de tudo aquilo que a população considera horrendo demais, de atividades criminosas absurdas, coloca-se agora, por força do argumento governista, como condição única para a continuidade da democracia, de tal forma que se pode compreender que democracia no país significa, também, corrupção, farra com dinheiro público, bagunça.
A dificuldade da população de sair do dilema em que se vê aumenta à medida que o governo Dilma Rousseff autoproclama-se como legítimo responsável pelo combate à corrupção, como o governo que permitiu às instâncias competentes, Ministério Público e Polícia Federal, apurar, processar e condenar corruptos. Assim, postular o “impeachment” da presidente da República seria, no mínimo, uma insensatez da parte de uma população sedenta de probidade administrativa, de erradicação da corrupção que, segundo ainda o argumento do governo petista, é uma praga que vem de todos os governos que o antecederam, que está entranhada na história das instituições brasileiras. Os governistas, num primeiro momento, e os petistas em geral agora, quando se trata de evitar o “impeachment” a todo custo, consideram suficientemente compreensível, altamente razoável, seu protagonismo no combate à corrupção mesmo em face do envolvimento de tantos petistas e aliados nas atividades criminosas denunciadas pela Operação Lava Jato, bem como no chamado Mensalão. Precisamente daqui, da dificuldade da população de aceitar o que o governo considera aceitável, decorre a decisão do governo de partir para uma contra-ofensiva de base hermenêutica, para um “tour de force” interpretativo, cujo ápice é a associação entre “impeachment” e golpe militar, a possibilidade de supressão da democracia no país. O pressuposto do governo nessa tarefa, como podemos inferir, é que a população não entende nem aceita suas ações porque, no fundo, está sendo manipulada por agentes políticos de oposição, bem como por meios de comunicação, setores do empresariado e membros do judiciário, enfim, as “forças ocultas” conservadoras de sempre. A massa estaria, uma vez mais ao longo da história, colocando em prática pontos de vista derivados de uma interpretação da realidade social imposta como verdadeira, denunciando, dessa forma, uma trama ideológica, com o seu componente falseador das coisas como elas realmente são.

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Assim, a associação do “impeachment” a golpe militar revela, num primeiro nível, o interesse petista de caracterizar a crise em curso como crise discursiva orquestrada pelas “forças ocultas”, como uma crise que não teria, na verdade, fundamentos práticos, concretos, sociais. Obviamente, “impeachment” de presidente da república é dispositivo constitucional no país, tendo sido utilizado em 1992 contra o então presidente Fernando Collor de Melo, processo que teve como protagonistas o PT, partidos de esquerda, movimento estudantil e movimentos sociais. Num segundo nível, a associação de “impeachment” a golpe revela um movimento de sobreposição do texto constitucional por uma interpretação político-petista da história presente a partir de um critério bastante previsível na dinâmica de poder em geral e, em especial, de poder público: o medo. Amedrontar pessoas não é o modo apenas como tiranos, déspotas, ditadores exerceram e ainda exercem o poder, mas também como governantes eleitos democraticamente, pelo voto direto do povo, também chegam a exercer o poder, numa eterna e paradoxal atualização do mito grego do minotauro, o monstro que deve ser alimentado da própria carne de virgens em nome da estabilidade da cidade-estado, segundo o ponto de vista do rei, claro, de Minos, no caso. Entre as muitas revisitações do mito, é muito digna de lembrança, aos que interessar possa, a de um latino-americano, o argentino Julio Cortázar, num drama de 1949, intitulado Los reyes (Os reis), o primeiro trabalho que assinou com o próprio nome. A ditatura de 1964, à medida que não foi a única na história de um país endemicamente autoritário, soa como uma espécie de minotauro no discurso petista, o monstro que, supostamente (supostamente) abatido no labirinto que é o país por destemidos Teseus – Lula, Dirceu, Genoíno, Palocci etc - com a colaboração de Ariadnes – Dilma, Erundina, Benedita, Chauí etc –, renascerá com o “impeachment” da presidente da República, com a interrupção de um programa de governo que já dura 14 anos!
E assim nos vemos diante de um terceiro nível no “tour de force” hermenêutico petista, de uma outra ordem de interesse, que é uma reescrita da história a partir de uma modulação arbitrária da memória social, de uma memória que é coletiva, que constitui patrimônio imaterial de milhões de pessoas, e que, por isso mesmo, não pode ser sequestrada por nenhum grupo social, nenhuma agremiação partidária, sob pena de se configurar uma catastrófica redução da história em si, do turbilhão de acontecimentos, a uma determinada ideologia. O PT, segundo a interpretação petista praticada pelos defensores de Dilma Rousseff, seria o guardião autorizado – o único – da democracia no país, de tal forma que discordar do seu modo de governar significaria discordar da própria democracia, ponto de vista que traz à tona a perspectiva tirânica, de antigos e modernos imperadores: governaremos por todos os séculos – e, evidentemente, por vontade de Deus. Essa pretensão absurda, naturalmente, cuja absorção natural exige um grau elevado de ignorância sobre a história do país nos últimos 40 anos, configura, no fundo, o restabelecimento de um elo entre o petismo atual, governista, e o petismo originário, lá dos anos 1980, que parecia revolucionário. Mas não se trata de um elo gratuito, desinteressado – não há possibilidade de ação desinteressada, como dizia Pierre Bourdieu -, mas do restabelecimento de uma conexão com aquilo que sempre constituiu a dimensão mais aporética na construção ideológica do PT: a conexão com o dogma, fonte de adorações, idolatrias e fanatismos fadados a culminar em tragédias sociais. O PT era, na sua origem histórica, uma questão igrejeira, com seus religiosos ideólogos – Boff, Beto, Pedro, Chico etc –, padres, freis, freiras, seminaristas, diáconos, com seus trabalhadores tementes a Deus, tendo à frente, como uma espécie de selo de identidade cristã, seu messias, Luís Inácio Lula da Silva, o enviado por Deus, o justiceiro, o redentor, um misto, latino e nordestino, de Che Guevara e Antonio Conselheiro – e também Zumbi, Tiradentes e todos os demais heróis nacionais, aos quais o já mito Lula acaba por se equiparar no discurso de vitória na Av. Paulista em novembro de 2002.

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O problema central do PT, do ponto de vista da sua construção epistemológica, digamos, da organização da sua racionalidade política, sempre foi superar a dimensão dogmática, concernente a deuses, em favor de uma dimensão herética, que nega todo e qualquer dogma, pelo fato altamente razoável de que política, como Hannah Arendt pontua, é coisa de homens, diz respeito a homens que se veem em condição de desigualdade material aqui na terra, não coisa de deuses desprovidos, evidentemente, de necessidades tantas vezes ridículas, como ter que trabalhar para sobreviver. Até meados dos anos 1990, a dimensão dogmática era o traço distintivo do petismo, seu atestado de honestidade política, aquilo que fazia do PT uma bandeira da ética, que o diferenciava dos demais partidos e o habilitava, assim, para o exercício do poder público no país de modo novo, socialmente responsável. Essa dimensão dogmática, à medida que impedia alianças com outras legendas partidárias estigmatizadas como direitistas e deploradas como reacionárias e corruptas, teve como consequência eleitoral maior, como se sabe, as três derrotas de Lula na corrida para a presidência da república (1989, 1993, 1998). Tirar a eleição de Lula de um plano que já tinha se tornado mítico no campo político em geral e traumático, uma coisa mal resolvida, no campo petista, em especial, exigiu uma flexibilização da dimensão dogmática do PT, a relativização de princípios inegociáveis que tanto entusiasmaram toda uma geração – a federalização de todo o sistema de educação, por exemplo, a reforma agrária e o desarmamento das polícias –, uma pacificação com preceitos liberais, capitalistas, radicalmente negados ao longo de quase duas décadas.
A partir de 2003, com Lula finalmente alçado à presidência ao lado do liberal José Alencar, a dimensão dogmática petista foi passando de uma flexibilização a uma dissolução por força das circunstâncias peculiares a um governo de coalizão, de tal forma que o petismo, uma construção coletiva com suas características, que tinha em Lula um dos seus sujeitos, não o único, foi dando lugar ao lulismo, a uma prática política personalizada, na qual a “cultura da personalidade”, para lembrar Sérgio Buarque de Holanda, fala mais alto que quaisquer outros elementos, que passamos a ver – ou que devemos passar a ver, conforme a exigência autoritária do discurso governista, hegemônico, obviamente, numa determinada nação – como secundários. O acirramento da crise social, com milhões de pessoas exigindo nas ruas um país mais justo – a saída de Dilma Rousseff, de Eduardo Cunha e Renan Calheiros constitui argumento pragmático do discurso da população, obviamente –, explica-se em face do lulismo, não exatamente do petismo, à medida que a possibilidade de prisão de Lula se coloca no centro dessa crise. Dogmatizar, afirmar isso como aquilo – “impeachment” é golpe PT é democracia etc –, significa reconectar o lulismo ao petismo, uma dimensão particular a uma referência coletiva, num esforço desesperado de sobrevivência do que constitui uma  razão petista e que, como toda razão – “logos”: discurso –, não está acima do bem e do mal, não está imune ao julgamento, ao “krinein”, que deve ser colocada em “krisis”, num ponto crítico, sob pena de nos encerrarmos num monstruoso obscurantismo.

Este texto, escrito em abril passado e ligeiramente modificado para esta publicação, é parte inicial de ensaio em construção sobre a razão entranhada na prática política do Partido dos Trabalhadores (PT).                                



      



           

quarta-feira, 15 de junho de 2016

ENSAIO | Anelito de Oliveira

A produção da liberdade




Escrever sobre algo – um objeto, um processo – de que se é parte integrante sempre é tarefa delicada. O risco de ficar num nível umbilical, muito condescendente, passando por cima de problemas porventura óbvios, é grande. Maior ainda é o risco, pela falta de imparcialidade, de nada contribuir para uma fruição mais produtiva, digamos, do que o leitor tem em mãos. Mas se aceitei na hora um duplo convite relativo a este livro – escrever estas linhas e colaborar com seis poemas – é porque sempre vivenciei o Psiu Poético criticamente, e o evento foi sempre o principal responsável por essa vivência. Nunca me senti obrigado a estar no Psiu, tampouco a pensar, dizer ou percebê-lo por um prisma acrítico, ingênuo. A liberdade de ver foi, desde o início, aspecto constitutivo do “constructo” cultural Psiu Poético. Deixar ver, estimular o oswaldiano “ver com olhos livres”, foi o que intuitivamente deve ter me chamado a atenção ali naquele 1987, 1988, quando tomei conhecimento do Psiu através de Aroldo Pereira, um dos idealizadores e coordenador do evento. O modo como esse conhecimento se processou diz muito sobre o seu teor, sobre a natureza do Psiu Poético: certo dia, andando pelas ruas do centro de uma Montes Claros ainda relativamente calma, creio que entre a Av. Mestra Fininha, mãe do célebre Darcy Ribeiro, e a Prefeitura, encontro, por acaso, Aroldo em plena militância sociocultural. Ele se apresenta; eu, do alto da timidez dos 17 anos, apresento-me; ele solicita-me assinatura num abaixo-assinado em favor de uma causa cultural e me fala do Psiu. Tudo lá era livre – o acesso, a participação, a inscrição etc –, não tinha que pagar nada, não tinha pré-requisito nenhum – e isso, que Aroldo me dizia, soava quase inacreditável: liberdade total? Então, eu certamente intuía, era uma questão de “poiesis”, de criação, de mais-além do lugar comum, algo realmente interessante.

Daqui, do limiar dos 30 anos de realização do evento, que completar-se-ão em outubro de 2016, é possível perceber melhor, com mais clareza, o Psiu Poético e compreendê-lo em sua gravidade, isto é, em sua diferença radical, primordial. Não se trata de mais um evento de promoção da poesia, de mais um encontro de poetas, mas de um estranho movimento social, um movimento poético-social, pode-se dizer. Como tal, trata-se de um movimento de resistência a uma ordem social injusta que é global, evidentemente, e que apenas se atualiza no local, numa cidade – Montes Claros –, numa região – Norte de Minas Gerais.  A liberdade de ver, pensar, fazer, agir, estar, ser é precisamente o modo como o Psiu Poético resiste à resistência que setores conservadores, contrários às liberdades individuais, sobretudo às liberdades individuais dos subalternos, sempre tiveram e continuam a ter em relação ao evento. Ao resistir ao Psiu pela via de diversos dispositivos – indiferença, estigmatização, difamação, negação de apoio, diluição, censura, descaso etc –, esses setores conservadores – universidade, agremiações de letrados, instituições públicas, órgãos de imprensa etc – só fizeram atestar, ao longo dos anos, a periculosidade da liberdade e o horizonte político revolucionário, realmente transformador, da práxis poética. Seria ingênuo, sem dúvida, pensar que esses setores – municipais, inicialmente, mas logo estaduais e hoje até federais – nunca foram sensíveis ao horizonte político das práticas artísticas, bem como das práticas pensantes em geral. Deve-se justamente a essa sensibilidade, desde os tempos tidos e havidos como coloniais, a constante vigilância, o atento controle, dos artistas, críticos, intelectuais, em países como o Brasil, tema aguçado pelo historiador baiano Sacramento Blake já em 1883 e explorado à exaustão nas últimas três décadas por autores como Luiz Costa Lima. A resistência próxima e distante, regional e nacional, ao Psiu Poético explica-se mais em função do caráter revolucionário do seu horizonte político, não simplesmente em função desse horizonte, que é perceptível, às vezes, até em produções artísticas reacionárias, pejorativamente acadêmicas.



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Em termos históricos genéricos e específicos, da história social e da história artístico-literária, a resistência ao Psiu Poético explica-se a contento, claro: em 1986, quando o evento surge, estávamos ainda saindo, com todas as conturbações, de uma longa noite ditatorial; e, por outro lado, o que presenciamos nos últimos 30 anos em relação à poesia é a mesma inadequação de valores éticos, morais, culturais, individuais e dinâmica industrial, capitalista, vivenciada pelos primeiros românticos alemães na aurora do século XIX e pelo sem-número de modernistas e vanguardistas ao longo do século XX. Assim, a resistência ao Psiu coloca-se como algo bastante previsível, como uma situação que não poderia ser diferente, situação que, por outro lado, acaba por nos levar a pensar com mais interesse na resistência a essa resistência, nisso que, afinal, tem mantido o evento aceso ao longo de tantos anos sempre com o mesmo formato aberto, democrático, semi-anárquico, já que não totalmente desprovido de referência de poder, de organização, de centro. A ascendência do dado social sobre o dado cultural restrito, “classudo”, burguês, ressalta-se como elemento edificante dessa resistência: a organização do Psiu Poético lida, desde o início, com uma perspectiva de sujeitos sociais, não de sujeitos culturais definidos segundo critérios artísticos administrados pelo “campo cultural”, conforme a linha reflexiva de um Pierre Bourdieu. Não interessa ao Psiu o produto apenas – poema, vídeo, dança, performer, drama etc -, mas o processo produtivo em que se ressalta um “ser social”, digamos pensando agora em Georg Lukács, em que reluz, por isso mesmo, uma consciência cidadã, interessada, antes de mais nada, na relação com outrem, no envolvimento com a cidade, com o tempo presente, com o mundo. Esteve clara já naquele fim de anos 1980, e foi ficando cada mais clara, a perspectiva de inclusão social via poesia praticada pelo Psiu Poético que constitui, no fundo, o seu polêmico alicerce edificante à medida que afronta não apenas conservadores, figuras que não gostam de poesia, mas, sobretudo, cultores do esteticismo censor, defensores intransigentes da arte para nada.

Como uma espécie de desdobramento natural da sua perspectiva social, o Psiu Poético acabou por consolidar, ao longo dos anos, uma ascendência do dado cultural sobre o dado esteticista, não exatamente estético, sobre aquilo que constitui a “ideologia do estético”, no sentido postulado por Terry Eagleton, a série de juízos de valor cultivada pela classe dominante. Assim, o mais importante para o Psiu, desde o início, foi o fazer estético em si, que pressupõe a dedicação de determinado sujeito social a determinada arte, consciente ou inconscientemente, não o valor estético propriamente dito, não a qualidade artística do que se pretende artístico. Vejamos: o mais importante para mostrar no Salão Nacional de Poesia, seja nos painéis na galeria ou nos palcos do Centro Cultural de Montes Claros, referência principal das práticas culturais na cidade, exposição que, por sua vez, não constitui a totalidade de um evento que também conta com atividades nas ruas, praças, Mercado Municipal, bares, escolas e outros espaços públicos. Essa ascendência do cultural sobre o estético na organização das artes – esse gesto apenas aparentemente espontâneo de realizar um evento, mas que contém, claro, uma episteme, uma teoria sobre como se efetiva a prática em questão – tem sua motivação temporal e espacial, responde a inquietações de uma época, os anos 1980, e a necessidades de um local, o sertão norte-mineiro. À medida que o estético perde a hegemonia que tinha nos grandes centros urbanos ocidentais de fins do século XIX até meados dos anos 1960, como parte evidentemente do esgotamento do projeto filosófico da modernidade, a cultura, ao sabor da retórica democratizante do Brasil dos anos 1980, passa a ser referência de unicidade para o campo das artes. Essa referência se revela mais produtiva, na dinâmica do Psiu Poético, pela sua carga de generalidade – tudo é cultura, costuma-se pensar generosamente –, mais fácil de se assimilar numa região historicamente marcada pela informalidade, por manifestações culturais populares, pela oralidade, enfim, elementos que caracterizam o sertão e o colocam na contramão da cultura letrada que reverencia a poesia escrita, o acabamento estético etc.

Finalmente, pensando a episteme, a teoria sobre a prática Psiu Poético que está implícita no que o evento apresenta a cada ano, ainda é possível falar numa ascendência do estético sobre o ideológico como elemento que caracteriza a resistência do Psiu não só à resistência externa, a daqueles que não são do campo das artes, mas também à resistência interna, a daqueles que também são do campo das artes, que também são criadores, críticos, pesquisadores e professores de literatura e outras artes, que resistem ao evento negando-se a reconhecer sua relevância, preferindo vê-lo como um “happening” de vagabundos. Não há, em termos rigorosos, uma negação do estético pelo evento, à medida que este dá vazão aparentemente a um vale tudo, expõe toda uma produção em vários registros – escrito, musical, cênico, performático etc -, sem se importar, aparentemente, com a qualidade dos trabalhos. Negar o estético é impossível à medida que, como Jacques Rancière argumentou mais recentemente a partir de uma revisitação aos antigos e sempre novos gregos, o estético, o sentido de “aisthesis”, diz respeito à esfera do sensível, de tal forma que só um uso interessado, evidentemente ideológico, pode restringir o estético às artes, como se percebe na tradição esteticista. O Psiu Poético vem aguçando há três décadas a esfera do sensível, exibindo o dado estético numa relação conflituosa com o dado esteticista,  apegando-se a linhas de fuga, linguagens desviantes das linhagens hegemônicas na poesia e nas artes em geral, e configurando linhas de força contra-ideológicas. A ideologia, no seu sentido negativo, marxiano, de mascaramento da realidade, tem sido, sem dúvida, o grande alvo da ação social Psiu Poético, em face do qual se explica o sentido político revolucionário, transformador, da própria ação, bem como se explica, claro, parte considerável, pelo menos, das dificuldades para a efetivação dessa ação. Desmascarar, desideologizar, é, no limite, desmascarar-se, revelar a realidade e também revelar-se como parte dessa realidade, que, se não é ideal, justa, deve ser destruída – e daí a crise, a identidade crítica, do Psiu Poético.       


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Este livro me parece mais produtivo, mais inquietante, da perspectiva de um “fluxo” do que da perspectiva de um “fixo”, recordando as categorias do grande Milton Santos, mais como um movimento num processo infinito do que como um lugar de chegada, uma conclusão. Não só porque várias outras antologias reunindo poemas de participantes do evento foram editadas pela Catrumano, do poeta Jurandir Barbosa, nos últimos anos, mas porque o registro escrito nunca correspondeu à totalidade do Psiu Poético, apesar de ter sido, e continuar sendo, a parte estruturante do evento. Aqui, como nas demais antologias já publicadas, sentimos, sobretudo, a impossibilidade de apresentação do Psiu em sua integralidade, seu caldeirão de linguagens, que paradoxalmente faz deste livro uma metáfora precisa do que é o evento: algo incontível, transbordante, sertânico, glauberiano, darcyano, riobáldico, mas fundamentalmente pereiriano, vinculado ao fervor criativo de Aroldo Pereira, um poeta “full time”. Não se trata de uma antologia empenhada em legitimar nomes, até porque muitos aqui já estão legitimados, mas antes de uma mostra que visa configurar um desenho, tanto quanto possível, sobre o Psiu Poético, revelando, a partir da pluralidade de linguagens, o traço distintivo, referencial, do Psiu Poético, que é o convívio dos diferentes como diferentes, sem que seja necessário suprimir suas diferenças. Aqui estão alguns nomes ligados ao Psiu desde a origem, como Antonio Wagner Rocha, Marli Fróes, Mirna Mendes, Olívia Ikeda, Karla Celene Campos e Renilson Durães, outros que se ligaram ao evento nos anos 1990 e 2000, como Marlene Bandeira, Márcio Adriano Moraes, Patrícia Giseli, Nicolas Behr e Murilo Antunes, e tantos que, libertos dos preconceitos colonialistas característicos do eixo Rio-SP, têm se ligado ao Psiu nos últimos anos, como Éle Semog, Luís Turiba, Celso Borges, Ronald Augusto, Jairo Fará, Wagner Merije e Ana Elisa Ribeiro. Não se trata aqui, é preciso frisar bem, de uma antologia, tampouco de antologia de melhores poetas do Psiu, e sim de um desenho bastante aproximado do que é o Psiu Poético, viabilizado de forma Psiu – colaborativamente – como parte da comemoração continuada dos 30 anos do evento.
A exemplo do evento Psiu Poético, o todo tem ascendência sobre as partes aqui, do todo, das trinta vozes que ressoam neste livro-salão, e não de cada parte isolada, de cada um dos poetas, decorre a importância do gesto cultural – aquilo que realmente está em causa – em clave livresca. São poetas aproximados a partir de critério que é social antes de ser cultural, que é cultural antes de ser estético e que é estético antes de ser ideológico, configurando, assim, um desenho fidedigno do Psiu motivado, como o evento, pela compreensão da poesia como resistência à ordem social injusta das coisas, na qual a poesia é negada porque seu sentido é, como a política parecia a Hannah Arendt, a liberdade. O modo como cada poeta diz aqui, sua modulação particular dos signos, não é mais significativo que a substância que subjaz a esse dizer, expressa, na verdade, a substância cultivada pelo Psiu Poético ao longo de tantos anos, o ponto de vista segundo o qual “a posição da poesia é oposição”, conforme um dos poemas de Celso Borges constantes deste livro, oposição a uma situação social que não mudou fundamentalmente nos últimos 30 anos e nada nos garante, infelizmente, que mudará tão cedo. Este livro, bem como as demais ações comemorativas do trigésimo ano do Psiu Poético, chega num momento semelhante àquele, no final dos anos 1980, em que Aroldo Pereira e seus companheiros do grupo teatral Transa Poética – Gabriel Cardoso, Mauro Lúcio, Renilson Durães – viram-se premidos a inventar o Psiu Poético, com a finalidade de instaurar um território de produção de liberdade que jamais seria instaurado por autoridades institucionais, políticas ou acadêmicas, em pleno Brasil profundo. Ontem como hoje, a liberdade é uma ameaça aos donos do poder, aos “abutres” denunciados pelo poema de Aroldo Pereira também presente nesta mostra, e apenas os poetas, praticantes de uma política revolucionária, podem produzi-la, cultivá-la, disseminá-la pelo mundo. A produção da liberdade a partir da poesia, com a poesia, tem sido, sem dúvida, a maior contribuição do Psiu Poético à vida contemporânea, processo que este livro, com seus poetas a ver com “olhos livres”, metaforiza.


Este texto, com o título original, é a íntegra de prefácio ao livro Trinta anos-luz, publicação da editora Aquarela brasileira organizado por Aroldo Pereira, Luís Turiba e Wagner Merije, trabalho que celebra os 30 anos de realização ininterrupta do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, evento criado e coordenado pelo poeta Aroldo Pereira em Montes Claros, sertão de Minas Gerais.