Páginas

sábado, 4 de setembro de 2010

ARTIGO | Da surdina

ANELITO DE OLIVEIRA - Quanto tempo se gasta para fazer algumas coisas aparentemente muito fáceis? Um comentário sobre dez pequenos poemas inéditos, por exemplo, quanto tempo é necessário? Tudo muito relativo, claro. Para alguns, apenas uns minutos. Para outros, um ano, uma eternidade. Depende.
Em meados de 2008, recebi, em Montes Claros, uma coletânea de poemas, exatamente dez, de uma pessoa que eu não sabia que se dedicava ao ofício já tão ignorado pelos “pós-humanos”. Solicitou-me um comentário crítico, caso considerasse válido.
Logo li os textos, esbocei em dezembro daquele ano um escrito, comentei com a autora, mas acabei por deixar a conclusão da tarefa para um outro momento, que só agora chega. Tarde, talvez muito tarde.
Bárbara Ide é o nome em questão, ainda sem livro publicado e, pelo visto, sem inserção em periódicos e eventos de poesia mais “aparecidos”. Vive em Montes Claros.
Nesta retomada da tarefa de comentar seus poemas, ocorre-me, inicialmente, notar que poetas que realmente contam, historicamente, tendem a se esconder, como que numa atitude de resistência à cultura do espetáculo, espécie de oposto da poesia.
Com o título genérico de “Sobre a terra: ensaio poético”, a concisa coletânea de poemas da autora traz a marca do esconderijo, do que se faz distante dos holofotes da promíscua vida literária brasileira, lá na surdina.
Do ponto de vista da dicção, são poemas arrastados, que fluem com “dificuldade”, como quem respira em condições anormais, situação que, sem dúvida, é índice de uma vontade do sujeito de enunciar o que se passa num lugar subterrâneo, no seu “esconderijo”.
A forma, em linhas gerais, expõe a relação paradoxal entre experiência e pensamento, a abordagem racionalizante de situações dilaceradoras – a angústia, a solidão, o sofrimento -, que, discutível a partir de uma perspectiva adorniana, não deixa de ser produtiva.
Os temas abordados por Bárbara Ide revelam, em consonância com os elementos formais que se dão a ver, um interesse pela interioridade, pelo invisível que constitui a “profundidade do visível” (Merleau-Ponty) – o amor, o ser, o escrever.
Do seu “esconderijo”, a poeta se percebe em detalhe e lança um olhar estranho, inusitado, sobre o já-visto, enunciando uma compreensão sobre o amor, por exemplo, como “eterna dívida”, de que ninguém jamais se livra, cujas marcas ficam gravadas até nos ossos.
Com uma linguagem seca que pode parecer objetividade realista, mas que importa muito mais enquanto esforço no sentido de conferir plasticidade ao texto, Bárbara Ide encerra seu poema de amor – terrível, sem dúvida –, intitulado “O esqueleto”, sob o signo da fatalidade: “Haverá sempre/ Um esqueleto insepulto sobre a terra”.
Esse olhar fatal, a fatalidade que emerge desses versos, é de grande valia para a depreensão da inteligibilidade dessa poética que, certamente, vem de longe, que apenas se entremostra nos dez poemas de “Sobre a terra”, com seu subtítulo – “ensaio poético” – acenando, de modo ambíguo, para um horizonte reflexivo.
Poemas como “O ser”, “A poesia” e “Os fantasmas” afirmam, com mais precisão, esse horizonte e também revelam a consequência desse horizonte, da disposição de pensar poeticamente, em relação ao ponto de vista consagrado, visível, sobre esses temas.
“O ser”, a pretexto de configurar um auto-reconhecimento do sujeito enquanto gênero, acaba por enunciar uma contestação da noção de identidade eternamente estabelecida: “Quando sofro/ não sou nada./ Sou gente./ Só isto”. A especificidade, enquanto situação de sofrimento do sujeito, destrói a generalidade, enquanto espécie feminina, mulher.
Nos poemas “A poesia” e “Os fantasmas”, o ofício de escrever é abordado a partir de perspectivas diversas, uma interacionista, com uma dose de ironia “séria”, e outra propositiva, interessada na fundamental em arte – como não? – imposição de um ponto de vista próprio sobre os demais.
À beira do prosaico, “A poesia” diz: “Li hoje,/ em um suplemento literário,/ alguém, que deve ser importante,/ defendendo a poesia (...) Só não disse/ que poetar é cheirar todos os cheiros,/ é queimar o último fogo,/ é roçar o último pedaço,/ é sorver a última partícula de oxigênio”.
Mais incisivo, “Os fantasmas” – que traz à tona o famigerado texto de Freud sobre os escritores criativos – diz: “não se escreve em busca do perdão,/ da compreensão, da permissão,/ da tolerância,/ (e menos ainda)/ da piedade de terceiros./ Escreve-se para apaziguar/ o próprio inferno”.
Não é, naturalmente, tarefa fácil, motivo pelo qual muitos abortam suas escritas no “esconderijo” e outros tantos saem do “esconderijo” para desaparecer no anonimato do espetáculo cotidiano, bestializados.
Há algo de trágico no exercício honesto da criação poética, e da arte de um modo geral – uma tragicidade, um “agon”, um conflito, que tudo arrasta – tempo, espaço, afeto etc. Os poemas de Bárbara Ide, corajosamente, tocam nisso. Que sejam compartilhados.