Poetas, políticos e polícias [parte 2]
A imagem-Stevens
Grande parte da
poesia produzida nos anos 90 no Brasil é marcada por procedimentos comuns, cada
livro parece com outro já lido, uma identificação que diz respeito, sobretudo,
aos limites do dizer. A impressão que fica, ao fim de cada leitura, é que havia
uma espécie de “código de trânsito” naquela produção que não podia ser subvertido,
um código que todos os poetas conheciam “de cor e salteado” e, naturalmente,
respeitavam. Esse cumprimento rigoroso do “código” é justamente o que nos faz
pensar num controle da sensibilidade, da sensação, que resulta num sufocamento
da dimensão empírica do sujeito em função de uma suposta dimensão mais racional.
Tal procedimento
teve suas motivações em leituras de João Cabral e dos concretos paulistas,
leituras que privilegiaram aquilo que acabou conferindo singularidade a essas
poéticas, o racionalismo, leituras superficiais, portanto, já que essas
poéticas também têm seu delírio, sua paradoxal transcendência na imanência.
Cabral, Augusto de Campos e Haroldo de Campos – Décio Pignatari nem tanto –
acabaram se tornando os poetas mais influentes na década de 90, até porque se tornaram
os mais presentes na cena poética, uma vez que Carlos Drummond de Andrade e
Paulo Leminski, que tinham uma presença marcante, morreram ainda no fechamento
dos anos 1980, em 1987 e 1989, respectivamente.
Drummond “rivalizava”, no bom sentido do
Harold Bloom de The anxiety of influence
(Oxford University Press, 1997), com Cabral, praticando uma poesia ligada ao
dia-a-dia, factual, dialógica; Leminski “rivalizava” com os concretos,
praticando uma poesia pop, jovial, “malandra”. Drummond e Leminski conceberam
uma linguagem poética, a um só tempo, rigorosa e prazerosa, para lembrar
Barthes, que tocava fundo – e ainda toca – na existência do leitor. Esses dois
poetas mantinham o elo com a imagem do poeta baudelairiano, o que era quase
óbvio no caso de Drummond, nascido na alvorada do século XX, egresso da
primeira hora modernista.
Não era tanto de
se esperar que Leminski mantivesse tal elo, não apenas devido ao fator idade,
mas, sobretudo, devido à intervenção da cultura norte-americana na formatação
da sensibilidade de sua geração, através do rock, da “pop art”, do cinema etc. O
poeta de La vie en rose, que alardeia
em seus últimos dias uma grande admiração pelo cinema – não-holywoodiano, claro
– norte-americano, mantém-se ligado à imagem-Baudelaire, bem como a todo o
Simbolismo, mantém-se intimamente conectado à cultura europeia, portanto.
Talvez a conjunção América/Europa em Lemisnki tenha seu estímulo em Oswald de
Andrade: “O cinema americano informará”, como diz o “Manifesto antropófago” (A utopia antropofágica, Globo, 1990).
O
desaparecimento de Drummond e Leminski, dois “poetas fortes”, para falar ainda
com Bloom, coincide com o início de um processo de adesão entusiasmada do
segmento letrado da sociedade brasileira ao eixo cultural estadunidense.
Trata-se, evidentemente, da consumação de um fato que vinha se verificando
desde os anos 1960, sempre encontrando resistência por parte da grande maioria
dos letrados, que se engajava ardorosamente em lutas contra o chamado “capital
estrangeiro”. No fim dos anos 80, essas lutas perdem seu sentido e,
automaticamente, a língua inglesa passa a ter primazia em relação à francesa e
poetas modernistas norte-americanos, como Wallace Stevens e Williams Carlos
Williams, são amplamente difundidos no centro cultural brasileiro, isto é, Rio
e São Paulo.
Os grandes
debates, então, deixam de ser em torno de poesia para ser em torno de tradução
de poesia, especialmente do inglês para o português, uma luta em torno da
fidelidade ao original. O poeta paulistano Régis Bonvicino se tornaria ao longo
dos anos 90 o principal divulgador da poesia contemporânea estadunidense no
Brasil, traduzindo e editando autores como Robert Creeley, Douglas Messerli e
Michael Palmer. Todavia, foi num modernista, Wallace Stevens, que muitos novos
poetas brasileiros do fim dos anos 80, que queriam se diferenciar dos
“marginais” dos anos 70 tanto quanto da disciplina cerebral dos concretos,
encontraram um referencial altamente plausível, uma poesia sensata, digamos,
sem radicalismos formais nem conteudísticos, sem agonia, sem delírio, numa
palavra: sem relações comprometedoras. A propósito, Paulo Henriques Brito,
responsável pela tradução de Stevens para uma edição da Companhia das Letras,
chega a declarar que aprendeu fazer poesia também com esse exercício (“O filho
rebelde de Cabral”, entrevista a Carlos William Leite, Revista Bula, 2008, www.revistabula.com / acesso: 13/02/2013)
Desprovida da
profundidade romântica que caracteriza a modernidade, a poesia de Stevens,
superficiosa, voltada para a descrição das coisas, nunca para a decidida
alteração da ordem natural das coisas, torna-se o paradigma da poesia
brasileira que se estabelece nos anos 90. Nesse paradigma, pode-se dizer que os
poetas desta última década do século reconheceram um uso da escrita capaz de
não repetir aquilo que, para eles, talvez tenha sido um “erro”, a causa dos
desastres que perseguiram os poetas da aurora da modernidade aos anos 70.
Reconheceram, portanto, uma “política da escrita” mais eficaz, mais apropriada
para a “nova ordem” sociocultural, um olhar que direciona o poema não para o
dissenso – que está no cerne da política mesma, conforme Rancière –, mas para o
consenso, que configura a anulação da política.
As instituições
que zelam pela civilidade, sobretudo a Universidade e a imprensa, contribuem de
forma decisiva para o estabelecimento desse paradigma, para essa conversão da
imagem-Baudelaire em imagem-Stevens, do maldito em bendito, essa migração do
poeta de um mundo “sujo” para um mundo “clean”. Setores da universidade e da
imprensa acabam por reconhecer bom gosto nesse paradigma e o legitima, cabendo
aos poetas colocá-lo, portanto, em prática.
Régis Bonvicino
As instituições
que zelam pela civilidade, sobretudo a Universidade e a imprensa, contribuíram
de forma decisiva, ao longo dos anos 90, para o estabelecimento de um novo
paradigma no cenário poético brasileiro, para uma conversão da
imagem-Baudelaire em imagem-Stevens, do maldito em bendito, essa migração do
poeta de um mundo “sujo” para um mundo “clean”. Setores da universidade e da
imprensa acabaram por reconhecer bom gosto nesse paradigma e o legitimaram,
cabendo aos poetas colocá-lo, portanto, em prática.
Coube a Régis
Bonvicino dar início a esse processo de “stevenização”, como poderíamos
chamá-lo, da poesia brasileira, com seu 33
poemas (Iluminuras), aparecido justamente em 1990, livro em que se
confrontam duas sensibilidades, aquela “coloquial-irônica”, que Edmund Wilson
identificou num pólo do Simbolismo francês, e outra, racionalizante, não
exatamente “sérioestética”, como o crítico norte-americano também definiu o
pólo Mallarmé-Valéry. Racionalizante porque já não está em questão a
“seriedade”, muito menos a “estética”, mas uma tentativa de racionalizar o
poema, o que implica, naturalmente, um distanciamento do lugar do acontecimento
poético.
Bonvicino, nesse
esforço de racionalização, promove uma considerável alteração no “rosto” do
poema, conferindo-lhe um aspecto escritural, de coisa grafada no papel, não
mais “soprada” contra o papel, depois de ter sido flagrada no ouvido, como
ocorreu no modernismo brasileiro de 22 e 30, no Gullar da A luta corporal, na Tropicália, em poéticas como a de Cacaso, Ana C.
e Francisco Alvim, enfim, essa apreensão oral do poético que já nos anos 80 foi
responsável pela efervescência da palavra cantada de um Cazuza, um Renato Russo
e, também, um Arnaldo Antunes, na senda aberta por um Itamar Assumpção ou mesmo
um Péricles Cavalcanti.
O esforço de
racionalização de Bonvicino tem prosseguimento no seu livro posterior a 33 poemas, intitulado singelamente de Outros poemas (Iluminuras), publicado em
1993, e em seu Ossos de borboleta (Editora
34), aparecido em 1996, título que é um achado, sim, mas um achado preciosista.
Em Ossos de borboleta, Bonvicino
atinge o ápice do seu esforço de racionalização e se evidenciam sua
impossibilidade de conceber uma poesia totalmente distanciada do lugar de onde
o poeta fala, o que se deve ao fato de ser um poeta egresso do ambiente nada
“clean”, para não dizer insalubre, dos anos 70.
Não se trata de
poeta dos anos 90, tanto que acertadamente não foi incluído na antologia que
Heloísa Buarque de Hollanda organizou dessa geração, Esses poetas (Aeroplano, 1998). Seu livro Céu-eclipse (Editora 34, 1999) tem, sobretudo, o mérito de mostrar
por que Bonvicino é prevalentemente um poeta intervalar, do intervalo entre os
anos 70 e 90. Ainda é um poeta que experiencia a cidade, que anda pelas ruas,
que se envolve, de alguma forma, com o mundo exterior, apreende fragmentos
desse mundo.
Contudo, estão
no Régis Bonvicino dos três primeiros livros citados – 33 poemas, Outros poemas
e Ossos de borboleta –, bem como em
muitos dos poemas de Céu-eclipse, as
diretrizes básicas da poesia da Geração 90, sendo a principal delas o
posicionamento do poeta na cena poética, no instante de concepção do poema, que
é um posicionamento de observador, ideologicamente descomprometido, tanto
quanto possível, com o que observa. O próprio Bonvicino logra sugerir o que
sucede numa observação descomprometida e numa observação comprometida. Observemos
dois momentos de Céu-eclipse:
O
sol
O
sol é céu
em
forma de azul
que
a água não repete
mesmo
em reflexo
mente
é
a forma de corpo
sentindo-se
resignada
um
e outro
como
o vento na água
031197
Eu
também moro nas ruas. Uma ponta de cigarro na orelha e um cinzeiro – na mão.
“Você não parece morar nas ruas”. Um caco de dente na boca. Naquele instante,
edifícios saqueavam sombras, insones, parindo cobras. Ele poderia subitamente
ter sacado a faca, na calçada, disseram. Há margens debruadas de luzes.
Edifícios cúbicos movendo-se sob arcadas de samaúmas. Esquinas defuntas? E, sob
um arco, down town, lâmpadas inchadas medindo o horizonte. Correm vozes em desordem,
mudas, e um guincho talvez de guaxanim. De tarde, corvos latindo nas árvores e
cacto abrupto da casa. Estradas guiando noites. Quase ao lado do Johnnie´s,
Coffee shop, com seu leve jogo de luzes. Paredes não se encolhiam como sono.
Acqua & branco. Alba imóvel dentro do quarto.
Nisso que estou
chamando de observação ideologicamente descomprometida, a realidade observada
mostra-se como algo facilmente manipulável por parte do observador, não
resistindo ao seu modo de observação, ao seu ponto de vista: “Sol é céu”,
“mente/ é forma de corpo”, “um e outro” são “como o vento na água”, ou seja,
nada de anormal, tudo muito natural. Por outro lado, a observação comprometida
com o que se observa, empenhada em conhecer intimamente a realidade observada,
interpela o observador: “Você não parece morar nas ruas”, diz essa realidade. E
o observador libera a escrita, conota, duvida, cogita: “Ele poderia subitamente
ter sacado a faca”.
A realidade,
quando observada de perto, com um sujeito comprometido com sua compreensão, revela-se
ativa, ofensiva, agressiva. O posicionamento distanciado da realidade observada
é, na poesia dos anos 90 no Brasil, uma tentativa, da parte do poeta, de se
preservar de um possível envolvimento comprometedor com o entorno, uma
precaução em relação a possíveis agressões perpetradas pelo exterior, pelo
“lado de fora” do pensamento, como diria Foucault. Trata-se de um
posicionamento, portanto, estratégico, político, que evita o confronto. A base
implícita desse posicionamento não poderia ser outra senão um policiamento da
sensibilidade, um controle das forças emotivas.
Carlito Azevedo
Não é Bonvicino,
como foi dito, que radicaliza esse tipo de posicionamento diante da realidade,
não cabendo a ele, assim, o mérito ou demérito pela articulação definitiva da
poeticidade com a politicidade e a policialidade na poesia dos anos 90 – o
poeta paulista, talvez até involuntariamente, apenas abre caminho para tal
procedimento. Quem realiza essa articulação definitiva é Carlito Azevedo, poeta
típico dos anos 90, cuja estreia se dá justamente em 1991, com Collapsus linguae (Imago), uma poesia
basicamente literária, “sampleando” as mais diversas poéticas, do poema-minuto
modernista às destruições morfossintáticas dos concretos.
Percebe-se, ao
lado dessa vontade de conciliação de linguagens, inegavelmente ligada ao desejo
de legitimação de um discurso, um pendor espontâneo à ironização que confere um
tom “decadentista” a Collapsus linguae,
um movimento no sentido de resgatar o horizonte poético jocoso de um Tristan
Corbière, por exemplo, um movimento que nunca logrou despertar muito o interesse
dos poetas brasileiros. Talvez apenas Sebastião Uchoa Leite, Leminski e o
primeiro Bonvicino, de livros como Régis
hotel (1978) e das versões de Jules Laforgue, tenham sido os poetas brasileiros
contemporâneos mais sensíveis a essa vertente “coloquial-irônica”, da qual
parecia, naquele início dos anos 90, que Carlito Azevedo se tornaria um mestre.
O primeiro livro
de Carlito nos revela um poeta geneticamente bem humorado, transitando em meio
aos enunciados autoritários do mundo artístico-literário, sem querer aderir a
nenhum deles, repetindo todos, respeitando todos. Tratava-se apenas, ao final
das contas, do poeta estratégico, que desconfiava de tudo que ouvia já no início
do processo de concepção do poético, um poeta que só assimilava o “estalo”, o
ruído, após proceder à sua estilização, como está dito no poema “Da inspiração”,
que é o atestado preciso da poesia dos anos 90 no país:
Desconfiar
do estalo
Antes
de utilizá-lo
Mas
sendo impossível
De
todo aboli-lo
Desconfiar
do estalo
Dar
ao estalo estilo
NOTA Este texto
é a segunda parte de um ensaio apresentado originalmente como conferência em
2000 na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que permaneceu inédito e
está publicado atualmente em Orobó | Kadernu di Ynwenssões www.revistaorobo.blogspot.com.br
ANELITO DE OLIVEIRA