ANELITO DE OLIVEIRA - O mês de outubro começou e terminou com dois incidentes terríveis em Belo Horizonte, os quais, além de me chamar a atenção, acabaram por me tocar, chocar, entristecer, por razões humanas e culturais: o AVC sofrido pelo jornalista, crítico literário e poeta Alécio Cunha e a morte prematura do artista plástico Fernando Fiúza. São dois dos nomes mais expressivos do cenário cultural e jornalístico da capital mineira, com uma contribuição extraordinária, constante, há anos, e pelos quais sempre tive respeito e admiração. Não cheguei a conhecer Fiúza pessoalmente; talvez o tenha até avistado alguma vez - sua imagem na foto (no "Hoje em Dia" de ontem, diário onde Alécio construiu sua brilhante carreira de jornalista cultural) me parece familiar, correspondendo, alias, à sobriedade que sempre percebi no seu trabalho.
Alécio Cunha, por sua vez, sempre foi um entusiasta das ações culturais que encaminhei ao longo dos anos 90 em Belo Horizonte: o jornal "Não", a revista "Orobó", os livros da Orobó Edições, o Suplemento Literário de Minas Gerais; foi o primeiro a revelar um olhar pró-ativo, na imprensa belorizontina, sobre a minha ida para o Suplemento, atitude que se manteve ao longo dos quase cinco anos em que estive à frente da criatura de Rubião, mesmo nos momentos em que, no próprio “Hoje em Dia”, o poeta Marcelo Dolabela, movido por questões menores, pedia renitentemente ao governador a minha “cabeça”. Super-sociável, Alécio, no exercício do jornalismo, sempre esteve ao lado da generosidade, da solidariedade, configurando-se como um exemplo de dignidade profissional.
Sempre me vi como um amigo seu e sempre o tive como um amigo raro, um grande companheiro de geração, um dos poucos em que se encontram inteligência e sensibilidade sinceras. Quando lancei meu primeiro livro solo em 2000, o fracassado Lama, Alécio estampou notícia e resenha na capa do caderno de cultura do “Hoje em Dia”. Quando publicou seu primeiro livro em 1999, o surpreendente Lírica caduca, escrevi uma resenha no Segundo Caderno do jornal "Estado de Minas", acolhida por um outro escritor e jornalista mineiro admirável, Jorge Fernando dos Santos, que a estampou com o título de “O peso e a prisão em Lírica caduca”. Com o título original – “O peso e a prisão” -, segue aqui essa reflexão sobre Alécio poeta nascente, na esperança de tantos outros encontros, projetos, conversas pela vida.
O peso e a prisão
ANELITO DE OLIVEIRA - O primeiro livro de Alécio Cunha, Lírica caduca (Por Ora, 1999), encontra seu mérito, sobretudo, na coragem de um “eu” confessar seu fracasso, ainda que, talvez, contra sua própria vontade: “(não suporto)” , está escrito ali no encerramento de um poema que parece se empenhar justamente em descrever uma paisagem poética, um cenário de poesia . O encerramento se conecta imediatamente com o título do texto, que é “Anjo manco”, o impossibilitado de caminhar normalmente, aquele que, arrastando-se, não consegue ir muito longe, logo se cansa e para. Realmente – pensamos ao final da leitura – era preciso que um “eu” se anunciasse para que aquele título alcançasse uma maior coerência: a caminhada é insuportável porque falta segurança nas pernas. Contudo, se não estamos no chamado “mundo real” de que falamos comumente e sim numa “realidade de signos” (Haroldo de Campos), é válido perguntar pelo motivo dessa insegurança.
Por força do lugar geográfico que o homem habita, este lugar-Minas, e da atmosfera poética brasileira que o artista respira atualmente, o poema de Alécio Cunha é concentrado em si mesmo, não nomeia nada além de seu próprio corpo que, na verdade, não passa de uma sombra, a ilusão de um corpo, um mito apenas, logo: o autor apenas deseja nomear quando pensa estar nomeando. A insegurança do poeta, seu reconhecimento metonímico indireto, como “anjo manco”, desestabilizado, demonstra uma certa insatisfação com essa incapacidade do poema, estabelecida pelos seus censores disfarçados, de nomear algo mais que si mesmo, de sair de sua sombra. Alécio Cunha não concorda com esse veredicto, não suporta esse quadro supostamente exótico, quer alcançar o fora do poema, trazer esse fora para dentro, mas o poeta, sua máscara-mecanismo para realizar tal gesto, é manco, falta-lhe agilidade para dar o salto, falta-lhe aquela “rapidez” sustentada por Ítalo Calvino como uma das qualidades estéticas fundamentais para o próximo (este) milênio.
Desta visada, outra questão se apresenta, colocando-se mesmo como pano de fundo do mínimo drama do poeta: a tradição poética, que tem inegável presença no trabalho em questão, é um peso, mas o instante poético, a atual cena neoparnasiana que se verifica no Brasil, é uma prisão. Depreende-se um posicionamento ativo diante da tradição mais longínqua e mais recente em poemas como “Pós-Baudelaire”, “Nau Caetana” e, principalmente, “Lendo Drummond”, que tem a astúcia sempre desejável de articular texto e lugar: “exigir da pedra/nenhuma explicação/ pelos caminhos”. Dir-se-ia que o poeta tem consciência de que é preciso desdizer, romper com uma “lírica caduca”, bem como é preciso colocar algo no lugar, pois esse algo é que denuncia a presença de alguém por trás de uma linguagem. É preciso dizer, mas dizer o quê? De uma latente incerteza decorre uma frustração generalizada neste primeiro livro de Alécio Cunha, um constante “fracasso-êxito” (Sartre) que aponta para uma colocação do desatino da existência moderna antes das convenções morais pós-modernas.
Frustração encontra-se, por exemplo, no final do poema que dá título à pequena coletânea, “Lírica Caduca”, e em “Geográfica”. No primeiro: “há uma gota de sangue/em cada luar”; no começo e fim do segundo: “desesperar resposta/desesquecer o tapa/ (...) sumir do mapa”. Ambos estão longe de serem perfeitos do ponto de vista da construção, vão-se enfraquecendo lentamente como se quisessem desistir de sua própria realização, como se se realizassem a contragosto, um enfraquecimento que acaba por constituir o anteclímax da frustração final. No rastro dessa frustração é preciso ver, contudo, o traçamento de uma rápida cartografia da “agoridade”, do espaço-tempo que reúne o ontem e o hoje, passado e presente, Modernismo e Pós-vanguarda. Essa frustração é uma contribuição significativa do poeta Alécio Cunha, principalmente à medida que faz emergir Mário de Andrade (“Há uma gota de sangue em cada poema”) num ponto sanguíneo, o que parece estar dizendo, analogicamente, que o poeta só pode existir como tragédia, não?
Texto publicado no jornal Estado de Minas, Segundo Caderno, em 1999, aqui redigitado por Guilherme Fernando, menino nosso, que Alécio conheceu quando pequeno e sobre quem me perguntava duas semanas antes de adoecer, no mês de setembro último, quando nos reencontramos na redação do Hoje em Dia depois de quase cinco anos de distanciamento em função dos meus muitos deslocamentos.