LOVE AFTER LOVE
The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,
and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you
all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,
the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.
Derek Walcott
AMOR APÓS AMOR
Virá o tempo
Quando, exaltado,
Você cumprimentará a si mesmo aparecendo
Na sua própria porta, diante do seu próprio espelho,
E cada um dará um sorriso de boas vindas,
Dirá senta aqui. Coma.
Você amará de novo o estranho que você mesmo foi.
Vinho. Pão. Seu coração regressará novamente
A si mesmo, ao estranho que tem te amado
Por toda a vida, mas que você tem ignorado
Em função de outro, que conhece você de cor.
Livre-se das cartas de amor na sua estante,
Das fotografias, das memórias desesperadas,
Apague sua imagem no espelho.
Senta. Tem festa na sua vida.
Aproximação Anelito de Oliveira
Traduzir é tarefa angustiante. O que se diz originalmente numa língua não são palavras, mas uma relação íntima com o real. Palavras são índices dessa relação, mas não a relação mesma. Na poesia, esse processo fica mais claro. Daí a convicção de muitos - minha, também - de que poesia não é traduzível. Volta e meia, todavia, vem a vontade de fazer pelo menos uma aproximação entre um código e outro, entre duas margens. Tradução como aproximação. Para além de querelas teóricas, este poema de Derek Walcott escreve difusamente o que experienciamos, sobretudo, nesta época do ano.
| ANELITO DE OLIVEIRA
domingo, 25 de dezembro de 2011
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
Clarão 15
Estamos em guerra com o mundo desde o início, até mesmo os mais apaziguados, ou, principalmente, os mais apaziguados, sempre em guerra íntima com o mundo, dissimulando seus conflitos para que ninguém fique sabendo, até a hora da explosão final, falência total dos órgãos, perda total de tudo. Lembro-me, após recordar o extraordinário trovador paraibano, do poeta Waly Salomão gritando num evento, poucos meses antes de morrer: que paz o quê? Poesia é guerra! O slogan do evento era "poetas pela paz" - yorubárabebaiano Waly. A guerra, a desarmonia, com o mundo é uma forma de se resistir a converter-se em essência do mundo, em ser o mundo estabelecido pelos donos do mundo. Desde que nos entendemos por gente, estamos perdendo essa guerra, caindo e levantando e voltando a cair até o dia em que o mundo nos impõe a pena capital - nossa dignidade consiste em não entregar os pontos. | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 14
Há um descompasso, uma desarmonia, entre o que realmente somos e o que o mundo realmente é. Não somos o que o mundo nos obriga a ser na cotidianidade, nem o mundo é o que desejamos que ele seja. Desde que nos entendemos por gente... - como esquecer desta frase? Marca dois momentos: um em que não nos entendíamos por gente, outro em que passamos a nos entender por gente. Diz ainda que houve um tempo em que não éramos gente, tempo sobre o qual não temos o que dizer, tempo esquecido. O que éramos, então, quando não sabíamos que éramos gente? Ainda não tínhamos chegado ao mundo, ainda não tínhamos aceitado o acordo - prescrito pelos donos do mundo - para se estar no mundo. Desde que nos entendemos por gente, estamos numa profunda desarmonia com o mundo. Uma voz apenas como exemplo, e basta: "vontade de viver mais/ em paz com o mundo e comigo" (Chico César). | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 13
Chegar ao mundo - chega-se ao mundo. Dizer isso pressupõe que não se está naturalmente no mundo, que está-se distanciado do mundo, sem que se saiba, também, onde realmente está-se. Pode-se discorrer sobre isso, claro, recorrendo a toda a tradição metafísica, e tudo resultará apenas num insolúvel problema metafísico. Nossa perturbação, minha, é mais material que essencial, deriva do estar situado para além da essência, como pensava Emmanuel Lévinas (Autrement qu´être ou au-delà de l´essence), diversamente sendo. Chegar ao mundo é participar da essência do mundo, compartilhar dessa essência, converter-se, no limite, à essência-mundo. Essa essência, definida antes da nossa chegada ao mundo, aprioristicamente, antes da nossa experiência do mundo, portanto, é a negação do que realmente somos. | ANELITO DE OLIVEIRA
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
POESIA | Cinco assombros
ANELITO DE OLIVEIRA -
Escritos em momentos diferentes, de meados dos anos 1990 a meados da primeira década deste novo século, estes poemas abaixo, que vejo sob o signo do assombro, foram publicados na Antologia de Poesia Afrobrasileira, organizada por Zilá Bernd e editada pela Mazza Edições neste fim de 2011.
MEIO-FIO
Negros
Como bichos
Uns passam
E olham
Uns olham
E cospem
Uns sentem
E correm
Negros
Como lixos
A MÃO
A mão que escreve é
A mesma, escrava,
Que apodrece, que
Me afaga, mas que
Também me esmaga,
Já não é uma mão,
Mas, sim, minha mãe,
Esta mão que escreve,
Escava e me enegrece.
A PORTA
Bato na porta
De mim mesmo
Bato, urro
Esmurro o silêncio
Não estou em casa
Não tenho estado
Aqui, nem mesmo
Sei se ainda moro
Aqui, tampouco há
Quanto tempo saí,
Se é que saí
ALÉM DA PELE
quem
mais
(além da pele)
fala comigo perto de
você
você aquém do outro
e fora do todo
ouvido
eu osso de sons
sendo
no lixo a sós entre
escombros
sem
nem mesmo
nem nunca
o céu
esta carne rude e
incolor
esta coisa
quem
onde
quando até o corpo
é terra
pode vir
a ser
por trás da fumaça
do carvão
dentro do cru
contido
crítico
coração
?
BRANCURA NEGRA
Estou branco
Muito mais branco
Profundamente mais branco
Mais
Muito mais
Amargamente mais branco
Que esta folha de papel tão branca sobre a mesa
A emitir incansavelmente seus brancos
E me lembrar que estou branco
Como a tristeza mais negra
Da sua brancura tão branca
Neste mundo
A esta hora da tarde
De mais nada
Escritos em momentos diferentes, de meados dos anos 1990 a meados da primeira década deste novo século, estes poemas abaixo, que vejo sob o signo do assombro, foram publicados na Antologia de Poesia Afrobrasileira, organizada por Zilá Bernd e editada pela Mazza Edições neste fim de 2011.
MEIO-FIO
Negros
Como bichos
Uns passam
E olham
Uns olham
E cospem
Uns sentem
E correm
Negros
Como lixos
A MÃO
A mão que escreve é
A mesma, escrava,
Que apodrece, que
Me afaga, mas que
Também me esmaga,
Já não é uma mão,
Mas, sim, minha mãe,
Esta mão que escreve,
Escava e me enegrece.
A PORTA
Bato na porta
De mim mesmo
Bato, urro
Esmurro o silêncio
Não estou em casa
Não tenho estado
Aqui, nem mesmo
Sei se ainda moro
Aqui, tampouco há
Quanto tempo saí,
Se é que saí
ALÉM DA PELE
quem
mais
(além da pele)
fala comigo perto de
você
você aquém do outro
e fora do todo
ouvido
eu osso de sons
sendo
no lixo a sós entre
escombros
sem
nem mesmo
nem nunca
o céu
esta carne rude e
incolor
esta coisa
quem
onde
quando até o corpo
é terra
pode vir
a ser
por trás da fumaça
do carvão
dentro do cru
contido
crítico
coração
?
BRANCURA NEGRA
Estou branco
Muito mais branco
Profundamente mais branco
Mais
Muito mais
Amargamente mais branco
Que esta folha de papel tão branca sobre a mesa
A emitir incansavelmente seus brancos
E me lembrar que estou branco
Como a tristeza mais negra
Da sua brancura tão branca
Neste mundo
A esta hora da tarde
De mais nada
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
ENSAIO | Evocação de "Evocações"
ANELITO DE OLIVEIRA - Livro empenhado não só em expor questões de vária ordem – histórica, social, estética, existencial, ética, religiosa etc -, mas também em propor veios operatórios para essas questões, Evocações, com sua feição hibrida de testamento de um poeta e inventário de um tempo, recorre a Edgar Allan Poe para enunciar, claramente, uma espécie de método negativo de apreensão da qualidade da alma.
Em “Ídolo mau”, que se abre com epígrafe do espelho Villier de L´Isle Adam, chega-se à ideia do bem a partir de um tensionamento da ideia do mal, que não constituiriam dimensões pré-determinadas, pré-estabelecidas, aprioristicamente fechadas, mas dimensões moventes, passíveis de alteração, abertas ao porvir.
Há, portanto, um binarismo – bem e mal – a estruturar o texto, mas que tem valor apenas elementar, enquanto índice, pode-se dizer, de mundanidade, de relação com o mundo em geral, de tal forma que também se pode dizer que esse binarismo é parte da proposição do método negativo de apreensão da qualidade da alma: sob a égide da racionalidade binária ocidental, lançam-se os dados da questão.
Também a moralidade, que se desdobra quase que naturalmente da recorrência ao binarismo bem e mal, exerce ali, na operacionalização da questão, uma função elementar, uma vez que não é de “mores”, de costume, que se trata, mas, rigorosamente, de “ethos”, de interioridade da ação, uma vez que é de Pensamento que se trata, do Pensamento como possibilidade de salvação para o “proclamador da Fome, da Peste, da Guerra”.
O Pensamento em questão – grafado no texto com “P” maiúsculo – teria, assim, uma força reparadora em relação à exterioridade sociohistórica, compreensão tornada possível numa intercessão pontual com Poe, se concordamos, seguindo a sugestão do autor, que realmente não se trata de qualquer pensamento, de mera expressão de uma ordem racionalista da própria “ratio”. Nos primeiros parágrafos de “Ídolo mau”, lemos:
De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
Estás agora preso à calceta de sentimentos negros e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à calceta de sentimentos negros.
Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.
Como a ave noturna e luceferina do – Nunca mais! – desse peregrino e arcangélico Poe – como essa ave noturna, pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.
E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da noite, da grande noite do Nada, convulsamente soluçarem e só vês errar os espectros lívidos da Saudade arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.
De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo, feio, torto, te avassalou supremamente, que a própria origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te, repele-te.
Tu não morrerás mais!
(CRUZ E SOUSA, Obra completa, Rio, Nova Aguilar, 1995, p. 616-617)
Claro está que não se trata apenas da ave, mas da ave de um significante, da ave cuja identidade sombria, noturna, constituiu-se artificialmente, construiu-se, como resultado surpreendente de um longo esforço de pensamento que teve lugar na Poesia.
Do significante “Nunca mais!” emerge a imagem de uma desilusão que não pertence ao poema, que não é do poema, mas sim ao lado de fora, ao externo, ao mundo, e que por isso mesmo coloca o poema em relação com o mundo: o poema não constitui um fora do mundo, um fora da história, não está alienado do mundo, tampouco está subordinado ingenuamente ao mundo.
A recorrência ao Corvo-significante, enquanto imagem da desilusão com o mundo, é, por si só, reconhecimento da positividade de um pensamento que se processa pela via da negatividade, negando o que não é – o artifício como mundo – para afirmar o que é – o mundo como artifício.
Não há em “Ídolo mau”, assim como em “The raven” (POE, The raven and other favorite poems, New York, Dover Publications, 1991), uma opção da parte do poeta entre as duas dimensões do mundo, uma opção ideológica, claro que não. Há uma relação texto-mundo que nos permite entrever um tensionamento dessas duas dimensões, que se dá num mais além da naturalidade sacrificada pelo processo de modernização, dado que atravessa as práticas literárias do século XIX.
No limite, o que interessa a Cruz e Sousa é dar a ver os traços que singularizam sua “alma”, que a constituem como sua própria alma, portanto, dar a ver a sua interioridade. Ocorre que essa interioridade só existe em relação com o mundo, como dimensão subjetiva que só alcança objetividade no mundo.
Logo, no poema de Poe como na prosa de Cruz, há algo de uma redução fenomenológica do mundo: o mundo, objetivamente, é solidão, é cinismo, é artifício, “constructo” na “ratio”, que, paradoxalmente, também não é o mundo, ou seja, não é o artifício que decide sobre a qualidade das coisas, que decide o que elas realmente são – porque artificial, no sentido lato, tudo é: tanto o mundo quanto o poema, a razão está por toda parte.
A fertilidade da intercessão Cruz/Poe consiste, afinal, no aguçamento do problema da relação sujeito-objeto, poeta-mundo, resultando na confirmação daquele ponto de vista de Paul Valéry (Variedades, São Paulo, Iluminuras, 1991, p. 194), segundo o qual “é a execução do poema que é o poema”.
Fragmento de ensaio publicado na Revista USP, N. 90, São Paulo, Junho/Agosto 2011. Este ano, como se sabe, completaram-se 150 anos de nascimento de Cruz e Sousa (1861). O que os donos das letras pátrias fizeram? Nada, claro.
Em “Ídolo mau”, que se abre com epígrafe do espelho Villier de L´Isle Adam, chega-se à ideia do bem a partir de um tensionamento da ideia do mal, que não constituiriam dimensões pré-determinadas, pré-estabelecidas, aprioristicamente fechadas, mas dimensões moventes, passíveis de alteração, abertas ao porvir.
Há, portanto, um binarismo – bem e mal – a estruturar o texto, mas que tem valor apenas elementar, enquanto índice, pode-se dizer, de mundanidade, de relação com o mundo em geral, de tal forma que também se pode dizer que esse binarismo é parte da proposição do método negativo de apreensão da qualidade da alma: sob a égide da racionalidade binária ocidental, lançam-se os dados da questão.
Também a moralidade, que se desdobra quase que naturalmente da recorrência ao binarismo bem e mal, exerce ali, na operacionalização da questão, uma função elementar, uma vez que não é de “mores”, de costume, que se trata, mas, rigorosamente, de “ethos”, de interioridade da ação, uma vez que é de Pensamento que se trata, do Pensamento como possibilidade de salvação para o “proclamador da Fome, da Peste, da Guerra”.
O Pensamento em questão – grafado no texto com “P” maiúsculo – teria, assim, uma força reparadora em relação à exterioridade sociohistórica, compreensão tornada possível numa intercessão pontual com Poe, se concordamos, seguindo a sugestão do autor, que realmente não se trata de qualquer pensamento, de mera expressão de uma ordem racionalista da própria “ratio”. Nos primeiros parágrafos de “Ídolo mau”, lemos:
De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
Estás agora preso à calceta de sentimentos negros e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à calceta de sentimentos negros.
Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.
Como a ave noturna e luceferina do – Nunca mais! – desse peregrino e arcangélico Poe – como essa ave noturna, pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.
E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da noite, da grande noite do Nada, convulsamente soluçarem e só vês errar os espectros lívidos da Saudade arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.
De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo, feio, torto, te avassalou supremamente, que a própria origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te, repele-te.
Tu não morrerás mais!
(CRUZ E SOUSA, Obra completa, Rio, Nova Aguilar, 1995, p. 616-617)
Claro está que não se trata apenas da ave, mas da ave de um significante, da ave cuja identidade sombria, noturna, constituiu-se artificialmente, construiu-se, como resultado surpreendente de um longo esforço de pensamento que teve lugar na Poesia.
Do significante “Nunca mais!” emerge a imagem de uma desilusão que não pertence ao poema, que não é do poema, mas sim ao lado de fora, ao externo, ao mundo, e que por isso mesmo coloca o poema em relação com o mundo: o poema não constitui um fora do mundo, um fora da história, não está alienado do mundo, tampouco está subordinado ingenuamente ao mundo.
A recorrência ao Corvo-significante, enquanto imagem da desilusão com o mundo, é, por si só, reconhecimento da positividade de um pensamento que se processa pela via da negatividade, negando o que não é – o artifício como mundo – para afirmar o que é – o mundo como artifício.
Não há em “Ídolo mau”, assim como em “The raven” (POE, The raven and other favorite poems, New York, Dover Publications, 1991), uma opção da parte do poeta entre as duas dimensões do mundo, uma opção ideológica, claro que não. Há uma relação texto-mundo que nos permite entrever um tensionamento dessas duas dimensões, que se dá num mais além da naturalidade sacrificada pelo processo de modernização, dado que atravessa as práticas literárias do século XIX.
No limite, o que interessa a Cruz e Sousa é dar a ver os traços que singularizam sua “alma”, que a constituem como sua própria alma, portanto, dar a ver a sua interioridade. Ocorre que essa interioridade só existe em relação com o mundo, como dimensão subjetiva que só alcança objetividade no mundo.
Logo, no poema de Poe como na prosa de Cruz, há algo de uma redução fenomenológica do mundo: o mundo, objetivamente, é solidão, é cinismo, é artifício, “constructo” na “ratio”, que, paradoxalmente, também não é o mundo, ou seja, não é o artifício que decide sobre a qualidade das coisas, que decide o que elas realmente são – porque artificial, no sentido lato, tudo é: tanto o mundo quanto o poema, a razão está por toda parte.
A fertilidade da intercessão Cruz/Poe consiste, afinal, no aguçamento do problema da relação sujeito-objeto, poeta-mundo, resultando na confirmação daquele ponto de vista de Paul Valéry (Variedades, São Paulo, Iluminuras, 1991, p. 194), segundo o qual “é a execução do poema que é o poema”.
Fragmento de ensaio publicado na Revista USP, N. 90, São Paulo, Junho/Agosto 2011. Este ano, como se sabe, completaram-se 150 anos de nascimento de Cruz e Sousa (1861). O que os donos das letras pátrias fizeram? Nada, claro.
Clarão 12
O mundo não existe para quem trabalha de sol a sol em lavouras de café do sul de Minas Gerais e de arroz na China, para quem passa a noite cozinhando carvão no Jequitinhonha ou fugindo da morte nos matagais de Darfour, para quem tem que enfiar a cara no crack ou vender o sexo, ou tudo ao mesmo tempo e mais, para sobreviver nos grandes centros urbanos do país. Não podem perder o mundo aqueles que nunca tiveram o mundo, enquanto uma totalidade inteligível, que sempre estiveram alijados do mundo, mas que sempre estiveram em busca do mundo - afinal, por que se mover, de qualquer forma, se não for por uma complementação?, de tal maneira que todo movimento é denúncia de um malestar no "é", no agora. Não podem perder o mundo, portanto, os pobres, os negros, os judeus, os islâmicos, os loucos, os doentes, os índios, os aborígenes, as mulheres, os pigmeus, os comunistas, os poetas - eles ainda não chegaram ao mundo. | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 11
Há uma passagem de Deleuze, nas suas Conversações, das mais marcantes: nós perdemos definitivamente o mundo. Volta e meia, essa frase ressoa nos meus ouvidos. Fico me perguntando o que quer dizer isso para além da Geração 68 francesa, à qual o pensador indomável está vinculado. Perder o mundo ainda em vida, sem ter, aparentemente, saído do mundo. Então, estar vivo não corresponde a uma relação de pertencimento com o mundo, a ter o mundo. Pode-se estar vivo sem ter posse do mundo, estar vivo e sem mundo. Mas houve um tempo em que se teve o mundo, em que o mundo era nosso. Depois, chegou um outro tempo em que perdemos definitivamente o mundo. Mas - e isso é intrigante - é possível que muitos estejam no mundo com o sentimento de que perderam o mundo sem nunca terem tido realmente esse mundo, sem nunca terem chegado ao mundo. Quem são eles? | ANELITO DE OLIVEIRA
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
RESENHA | Fazendo a literatura afrobrasileira existir
ANELITO DE OLIVEIRA - Organizada por Zilá Bernd, a Antologia de poesia afrobrasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil, que acaba de sair pela Mazza Edições, reedição atualizada de trabalho aparecido em 1992 sob o título de Poesia negra brasileira, é mais um gesto significativo para o necessário abalo das verdades estabelecidas no campo literário brasileiro com a contribuição de críticos, historiadores, pesquisadores, professores e, mais ainda, de jornalistas ignorantes.
A exemplo do que fiz aqui há pouco a propósito de Literatura e afrodescendência, antologia organizada por Eduardo de Assis Duarte e publicada pela Editora UFMG, também quero dizer, em face dessa antologia de Zilá Bernd (pesquisadora insuspeitável), que o fato de ser um dos autores elencados deixa-me numa situação meio desconfortável para dizer algo a respeito, sobretudo elogiar - e quero elogiar, inclusive, o primoroso trabalho gráfico-editorial.
O ideal seria, e é, que outros dissessem, avaliassem, criticassem, mas, sinceramente, não tenho muita esperança, ou quase nenhuma, quanto a isso. A mesquinharia tomou conta da vida sociocultural brasileira, dos meios de comunicação associados aos governos, da academia burguesa. E ressoa, desde sempre, um silêncio estratégico, sistemático, em torno da produção literária - não só criativa, mas também científica - de afrobrasileiros no país, como se essa produção não existisse, ou, de fato, não devesse existir.
Nomes como Luiz Gama, Lino Guedes, Solano Trindade, Oliveira Silveira, Oswaldo de Camargo, José Carlos Limeira, Ana Cruz, Jussara Santos, entre tantos outros que as duas antologias nos apresentam, não existem para as agências - escolas, faculdades, editoras, redações - e agentes - professores, pesquisadores, críticos, editores, jornalistas - do sistema literário brasileiro. Incluo-me entre esses inexistentes.
Trata-se de um fato grave demais, gravíssimo, para ser ignorado, e que sempre foi e continuará sendo ignorado em nome de um suposto bom funcionamento da literatura brasileira, em nome de um mito de literatura brasileira que remonta aos primeiros românticos, isto é, literatura brasileira como expressão de civilização brasileira - e os negros, como os índios e as mulheres, seriam uma ameaça a essa civilização.
Para o grupo étnico hegemônico nas Américas - não se trata de problema só da América do Sul, claro -, o grupo dos não-negros (pouco importa como seus membros se considerem etnicamente), o grupo que é maioria nos espaços de poder(é isso que conta mesmo) não é interessante que os negros existam totalmente, de todos os modos possíveis, mas que eles existam precariamente, apenas de alguns modos, sobretudo aqueles menos privilegiados, menos valorizados, os consagrados modos negros de existir.
É interessante, assim, que os negros existam para o trabalho braçal, corporal, para a carvoeira e o futebol, mas não para o trabalho mental - "o" trabalho, segundo a tradição etnocêntrica. A literatura, refinado trabalho mental, não seria para negros, portanto, sobretudo negros brasileiros, entes oriundos de uma cultura oral. O racismo científico, definitivamente, não é coisa do século XIX, ou, podemos pensar, o século XIX ainda não terminou no Brasil.
De um modo geral, a antologia de Zilá Bernd, assim como a de Eduardo de Assis, estimula-me a pensar que o reconhecimento da produção literária dos afrobrasileiros não pode se dar isoladamente, sem um trabalho pelo reconhecimento real - não retórico, como é comum no Brasil - dos valores históricos, culturais e econômicos dos afrobrasileiros, sem um trabalho político, portanto, empenhado na correção das desigualdades materiais e simbólicas que marcam as relações entre negros e não-negros.
Esse trabalho deveria começar urgentemente pelo "forçamento" (Badiou) do Governo Federal, através do seu Ministério da Educação, para que adquira exemplares das antologias e os distribua nas escolas e faculdades públicas do país, que leve os autores participantes das antologias para falar com alunos, professores e pesquisadores nessas muitas instituições. É um absurdo que todos os governos brasileiros nada tenham feito até hoje de inteligente, sério, pela literatura afrobrasileira.
A exemplo do que fiz aqui há pouco a propósito de Literatura e afrodescendência, antologia organizada por Eduardo de Assis Duarte e publicada pela Editora UFMG, também quero dizer, em face dessa antologia de Zilá Bernd (pesquisadora insuspeitável), que o fato de ser um dos autores elencados deixa-me numa situação meio desconfortável para dizer algo a respeito, sobretudo elogiar - e quero elogiar, inclusive, o primoroso trabalho gráfico-editorial.
O ideal seria, e é, que outros dissessem, avaliassem, criticassem, mas, sinceramente, não tenho muita esperança, ou quase nenhuma, quanto a isso. A mesquinharia tomou conta da vida sociocultural brasileira, dos meios de comunicação associados aos governos, da academia burguesa. E ressoa, desde sempre, um silêncio estratégico, sistemático, em torno da produção literária - não só criativa, mas também científica - de afrobrasileiros no país, como se essa produção não existisse, ou, de fato, não devesse existir.
Nomes como Luiz Gama, Lino Guedes, Solano Trindade, Oliveira Silveira, Oswaldo de Camargo, José Carlos Limeira, Ana Cruz, Jussara Santos, entre tantos outros que as duas antologias nos apresentam, não existem para as agências - escolas, faculdades, editoras, redações - e agentes - professores, pesquisadores, críticos, editores, jornalistas - do sistema literário brasileiro. Incluo-me entre esses inexistentes.
Trata-se de um fato grave demais, gravíssimo, para ser ignorado, e que sempre foi e continuará sendo ignorado em nome de um suposto bom funcionamento da literatura brasileira, em nome de um mito de literatura brasileira que remonta aos primeiros românticos, isto é, literatura brasileira como expressão de civilização brasileira - e os negros, como os índios e as mulheres, seriam uma ameaça a essa civilização.
Para o grupo étnico hegemônico nas Américas - não se trata de problema só da América do Sul, claro -, o grupo dos não-negros (pouco importa como seus membros se considerem etnicamente), o grupo que é maioria nos espaços de poder(é isso que conta mesmo) não é interessante que os negros existam totalmente, de todos os modos possíveis, mas que eles existam precariamente, apenas de alguns modos, sobretudo aqueles menos privilegiados, menos valorizados, os consagrados modos negros de existir.
É interessante, assim, que os negros existam para o trabalho braçal, corporal, para a carvoeira e o futebol, mas não para o trabalho mental - "o" trabalho, segundo a tradição etnocêntrica. A literatura, refinado trabalho mental, não seria para negros, portanto, sobretudo negros brasileiros, entes oriundos de uma cultura oral. O racismo científico, definitivamente, não é coisa do século XIX, ou, podemos pensar, o século XIX ainda não terminou no Brasil.
De um modo geral, a antologia de Zilá Bernd, assim como a de Eduardo de Assis, estimula-me a pensar que o reconhecimento da produção literária dos afrobrasileiros não pode se dar isoladamente, sem um trabalho pelo reconhecimento real - não retórico, como é comum no Brasil - dos valores históricos, culturais e econômicos dos afrobrasileiros, sem um trabalho político, portanto, empenhado na correção das desigualdades materiais e simbólicas que marcam as relações entre negros e não-negros.
Esse trabalho deveria começar urgentemente pelo "forçamento" (Badiou) do Governo Federal, através do seu Ministério da Educação, para que adquira exemplares das antologias e os distribua nas escolas e faculdades públicas do país, que leve os autores participantes das antologias para falar com alunos, professores e pesquisadores nessas muitas instituições. É um absurdo que todos os governos brasileiros nada tenham feito até hoje de inteligente, sério, pela literatura afrobrasileira.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Clarão 10
Então, oponho mundo e realidade, gosto de opostos. Gosto? Já nem sei. Digamos que esteja aí, às claras, essa oposição - parece-me que está aí. A realidade é um recorte do mundo, um formato, um traço - arbitrário, como não poderia deixar de ser. Há, por trás disso, algum, alguns responsáveis por esse recorte - a realidade é o recorte interessado do mundo. Este é aquilo que extravasa a realidade, todas as margens da realidade, as extensas extensões, as contrarrealidades. A série de valores, que nos impõem, impuseram, como sendo a literatura, expressa apenas o ponto de vista dos que recortaram a realidade no mundo. A literatura, representando essa série de valores, é uma simplificação do mundo. A literatura mesma, portanto, é uma transposição da realidade, uma desrealização da realidade, um movimento de instauração do mundo. | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 9
Interessante que eu, logo eu, pense em literatura, ou querelas literárias - como podem dizer desdenhando os cínicos -, interessante, para não dizer estranho. Se me encontro do lado do mundo das coisas, envolvido em relações viscerais, o ideal seria esquecer a literatura e toda e qualquer dimensão subjetiva. Mas o fato é que sempre vi e continuo vendo a literatura como algo dentro do mundo. Dante é um exemplo fatal da mundanidade da literatura, Goethe não menos, Cruz e Sousa, totalmente. Há, então, uma discórdia entre aquilo que sinto como literatura e a série de valores que nos impõem como literatura. Internalizamos - à força - essa série de valores como sendo a literatura, e é justamente essa série de valores que reverenciamos no lugar da literatura. Essa série de valores realmente tende a se esfacelar no contato com o mundo - não com a realidade. | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 8
A literatura - e as artes e o pensamento de um modo geral - pode viver confortavelmente distante do mundo das coisas, alienada. Mas será uma vivência sem qualquer importância, uma espécie de morte. Para chegar a ter importância real, é preciso que a literatura se aproxime da vida como ela é, assuma um caráter mundano - ainda que nada disso seja consensual, objetivo, contratual. Nessa aproximação, é grande a possibilidade de a literatura não se suportar, entrar em crise, esfacelar-se. Por isso mesmo costumamos ter, desde o início, uma preocupação excessiva com a literatura, uma disposição para cuidar da literatura, como se esse fosse o nosso destino. A literatura passa, então, a ser um nome para uma entidade sagrada, que precisa ser apenas reverenciada. O que está por trás, no meio e na frente disso? | ANELITO DE OLIVEIRA
domingo, 4 de dezembro de 2011
RESENHA | Acontecimento editorial
ANELITO DE OLIVEIRA - O grande acontecimento editorial deste 2011, no âmbito dos estudos literários, é Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, quatro volumes organizados por Eduardo de Assis Duarte - um em parceria com Maria Nazareth Fonseca -, belo produto da Editora UFMG.
Sou um dos autores incluídos no trabalho, o que me deixa numa condição meio desconfortável para dizer algo, sobretudo elogiar o trabalho. Mas minha presença, claro, é apenas um detalhe, como a de outros autores pouco conhecidos, sem prêmios e sem livros publicados por grandes editoras - que é o que conta mesmo na vida literária fomentada pela indústria cultural.
O importante é o conjunto da obra, o grande número de autores que ali se encontram, tanto criadores quanto pesquisadores - e, no caso destes, muitos não negros, convictos sobre a importância de se ler criticamente essa produção. O conjunto da obra é simplesmente espantoso, tanto pela quantidade quanto pela qualidade.
O mínimo que se pode dizer diante desse trabalho é que ressoa, por toda parte, o êxito de Eduardo de Assis Duarte, que se dedicou por dez anos à pesquisa de textos e autores afrobrasileiros, à reflexão rigorosa sobre seus trabalhos, ao diálogo com muitos daqueles que estão em atividade, à articulação de pesquisadores em torno do tema e, o que é muito significativo, à meditação sobre a natureza da literatura afrodescendente.
A seriedade desse trabalho, seu caráter altamente respeitável, começa na vontade de saber o que é realmente a literatura afrodescendente no Brasil. Assis Duarte não parte de certezas ortodoxas, mas de dúvidas elementares, que o levaram a orquestrar uma antologia - como vemos agora - viva, pulsante, que constitui, especialmente, um convite generoso a diálogos diferenciantes sobre diferenças.
Em movimento oposto à tradição crítica não só nos estudos literários, mas também nos estudos de história e sociologia, política e economia, Literatura e afrodescendência no Brasil não opera no sentido de construir uma imagem homogênea da comunidade afrodescendente brasileira, solucionando, no plano do discurso, problemas que atravessam sistematicamente essa comunidade na vida social.
O traço marcante da Obra é precisamente a heterogeneidade da produção literária afrodescendente no Brasil, acusando a heterogeneidade que, de fato, define essa comunidade. Somos (não posso me negar) autores muito diferentes, tanto os fundadores quanto os consolidadores e, mais ainda, os contemporâneos, cada um expressando a condição afrobrasileira a sua maneira, mas enfrentando um mesmo problema: a dificuldade de se afirmar no mundo literário.
Eduardo de Assis Duarte, na abertura da Obra, vai direto ao ponto, perguntando, no rastro de Gayatri Spivak, se nós negros podemos falar na sociedade brasileira enquanto tais, ou seja, enquanto negros, sem negar a nossa própria negritude. Naturalmente, não, porque a sociedade brasileira está programada para funcionar cordialmente, e negros falando como negros perturbam essa cordialidade.
O sistema literário - que não é feito só de obra, autor e leitor, mas também de agentes, editoras, distribuidoras, livreiros e cadernos culturais, como pensa Robert Darnton - contribui, eficientemente, com essa programação, à medida que ignora a produção de poetas, ficcionistas e ensaístas negros, preferindo encarar tudo que se faz no Brasil sob o signo da uniformidade, tudo como literatura brasileira, isto é, pastiche da pior literatura estadunidense.
A antologia é um atestado eloquente - o mais eloquente, sem dúvida, de todos - de existência de uma literatura afrodescendente no Brasil, que se define por um estranhamento no seio da própria literatura brasileira, que é e não é literatura brasileira, que se alimenta de uma fértil crise identitária, reveladora, portanto, da conflituosa situação que os negros vivenciamos no país, sempre sob suspeita de toda ordem, inclusive de não escrever literatura brasileira propriamente dita (excelente suspeita).
Ao reunir dezenas de autores e pesquisadores numa Obra tão audaciosa, Eduardo de Assis Duarte logrou produzir algo que, na verdade, extrapola o espaço acadêmico, o âmbito da pesquisa, bem como o espaço editorial, o âmbito dos livros, para se afirmar como uma ação política contundente, oportuna, um divisor de águas na organização e valoração da produção literária no país. Axé babá!
Sou um dos autores incluídos no trabalho, o que me deixa numa condição meio desconfortável para dizer algo, sobretudo elogiar o trabalho. Mas minha presença, claro, é apenas um detalhe, como a de outros autores pouco conhecidos, sem prêmios e sem livros publicados por grandes editoras - que é o que conta mesmo na vida literária fomentada pela indústria cultural.
O importante é o conjunto da obra, o grande número de autores que ali se encontram, tanto criadores quanto pesquisadores - e, no caso destes, muitos não negros, convictos sobre a importância de se ler criticamente essa produção. O conjunto da obra é simplesmente espantoso, tanto pela quantidade quanto pela qualidade.
O mínimo que se pode dizer diante desse trabalho é que ressoa, por toda parte, o êxito de Eduardo de Assis Duarte, que se dedicou por dez anos à pesquisa de textos e autores afrobrasileiros, à reflexão rigorosa sobre seus trabalhos, ao diálogo com muitos daqueles que estão em atividade, à articulação de pesquisadores em torno do tema e, o que é muito significativo, à meditação sobre a natureza da literatura afrodescendente.
A seriedade desse trabalho, seu caráter altamente respeitável, começa na vontade de saber o que é realmente a literatura afrodescendente no Brasil. Assis Duarte não parte de certezas ortodoxas, mas de dúvidas elementares, que o levaram a orquestrar uma antologia - como vemos agora - viva, pulsante, que constitui, especialmente, um convite generoso a diálogos diferenciantes sobre diferenças.
Em movimento oposto à tradição crítica não só nos estudos literários, mas também nos estudos de história e sociologia, política e economia, Literatura e afrodescendência no Brasil não opera no sentido de construir uma imagem homogênea da comunidade afrodescendente brasileira, solucionando, no plano do discurso, problemas que atravessam sistematicamente essa comunidade na vida social.
O traço marcante da Obra é precisamente a heterogeneidade da produção literária afrodescendente no Brasil, acusando a heterogeneidade que, de fato, define essa comunidade. Somos (não posso me negar) autores muito diferentes, tanto os fundadores quanto os consolidadores e, mais ainda, os contemporâneos, cada um expressando a condição afrobrasileira a sua maneira, mas enfrentando um mesmo problema: a dificuldade de se afirmar no mundo literário.
Eduardo de Assis Duarte, na abertura da Obra, vai direto ao ponto, perguntando, no rastro de Gayatri Spivak, se nós negros podemos falar na sociedade brasileira enquanto tais, ou seja, enquanto negros, sem negar a nossa própria negritude. Naturalmente, não, porque a sociedade brasileira está programada para funcionar cordialmente, e negros falando como negros perturbam essa cordialidade.
O sistema literário - que não é feito só de obra, autor e leitor, mas também de agentes, editoras, distribuidoras, livreiros e cadernos culturais, como pensa Robert Darnton - contribui, eficientemente, com essa programação, à medida que ignora a produção de poetas, ficcionistas e ensaístas negros, preferindo encarar tudo que se faz no Brasil sob o signo da uniformidade, tudo como literatura brasileira, isto é, pastiche da pior literatura estadunidense.
A antologia é um atestado eloquente - o mais eloquente, sem dúvida, de todos - de existência de uma literatura afrodescendente no Brasil, que se define por um estranhamento no seio da própria literatura brasileira, que é e não é literatura brasileira, que se alimenta de uma fértil crise identitária, reveladora, portanto, da conflituosa situação que os negros vivenciamos no país, sempre sob suspeita de toda ordem, inclusive de não escrever literatura brasileira propriamente dita (excelente suspeita).
Ao reunir dezenas de autores e pesquisadores numa Obra tão audaciosa, Eduardo de Assis Duarte logrou produzir algo que, na verdade, extrapola o espaço acadêmico, o âmbito da pesquisa, bem como o espaço editorial, o âmbito dos livros, para se afirmar como uma ação política contundente, oportuna, um divisor de águas na organização e valoração da produção literária no país. Axé babá!
Clarão 7
No início, há todos os caminhos; no meio, alguns caminhos; no fim, parece que só resta um caminho que vai-se estreitando, desacontecendo. Tanto faz ser ou ter sido determinista,fatalista, chegamos a uma condição que, sem dúvida, não corresponde exatamente ao que pensávamos sobre nós mesmos. Como estamos distantes do que éramos!, é uma constatação inquietante que fazemos no presente. Mas esse distanciamento se processou, paradoxalmente, porque queríamos ser no mundo exatamente aquilo que, segundo nós mesmos, éramos no mundo - estranhos. Queríamos que o mundo fosse tão estranho como éramos, queríamos converter o mundo em "meu" mundo, mais do que em "nosso" mundo até. Não tínhamos qualquer preocupação retórica, éramos decididamente igorantes, inimigos declarados do inimigo mundo.| ANELITO DE OLIVEIRA
sábado, 3 de dezembro de 2011
Clarão 6
Como definir esse inimigo sombrio? Passamos a vida embaraçados nessa situação. Temos um nome - mundo - que sempre ultrapassa nossa percepção, que sempre extravasa - é tudo, é nada. O nome "mundo" não é exatamente a coisa "mundo" - há uma inadequação. O sombrio, o que encobre o inimigo com que lidamos, é a marca dessa inadequação. Investir contra esse dado sombrio, dissolvê-lo, é enfrentar o inimigo. Sem enfrentamento, sem uma atitude decidida, não é possível compreender o inimigo. Enfrentar é, desde o início, compreender. Compreender o que nos confronta - o inimigo mundo. No meio da vida, imersos numa permanente desordem, tudo que temos a dizer é, de modos diversos, sobre o drama dessa relação. | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 5
E é precisamente aí que começa o mundo, quando nos descobrimos envolvidos, imbricados, misturados. Sair, distanciar-se, vai-se tornando cada vez mais impossível. Estamos presos. A consciência de não ser livre, ou totalmente livre, é o princípio de materialidade do mundo. Não se trata, ou não se trata mais, de uma questão de ideias, de mera filosofia, mas de uma questão de vida - e morte. A literatura - tudo aqui tem a ver com isso - aparece, então, como uma possibilidade de reconciliação com o mundo. É preciso reconciliar - pensava Hannah Arendt - com aquilo que nos dilacera, reconciliar no sentido de compreender o que é isso que nos dilacera. Sem reconciliação, passaremos a vida em guerra contra um inimigo que sequer conhecemos claramente, um inimigo sombrio.| ANELITO DE OLIVEIRA
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Clarão 4
Ninguém deve se envergonhar de dizer certas besteiras, como esta: é difícil dizer o que queremos dizer. Tipo de besteira bastante inteligente, que pode ser, inclusive, defendida com apoio em ninguém menos que Lacan: a linguagem é a besteira, isto é, aquilo que vem da besta, do animal. Que seja, e o é de modo intrigante: animalisamo-nos, saímos das amarras da condição humana, ao dizer tal besteira: é difícil dizer o que queremos dizer. O que quero dizer, por exemplo, ao dizer que nada se escolhe neste mundo? Não sei exatamente, mas algo como: somos resultados de forças e contraforças que atuam o tempo todo sobre nós, que nos comprimem, nos oprimem, nos deprimem desde quando começamos a estar no mundo, desde quando nos adequamos a uma determinada lógica, desde quando começamos a nos relacionar com o lado de fora de nós mesmos - desde então, não temos sossego. | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 3
A um doente metafísico,em pleno século 21, tudo que se pode dizer é que lamentavelmente não há nenhum remédio disponível na farmácia de Platão, tampouco na de Derrida. Não foi uma boa ideia, portanto, estar doente, isto é, começar a fazer perguntas, desejar conhecer o que está por trás das aparências, sair à procura de essências. Há apenas aparências atualmente -e a literatura, que é um mecanismo de atualização, apenas explicita essa realidade. Toda literatura é, por isso mesmo, realizante, fundamentalmente vinculada à realidade, e nós é que, opondo literatura e realidade, resvalamos para a terceira margem - caminho sem volta, impossível. Mas, para além da razão cínica de cada dia, nada se escolhe neste mundo - e as perguntas explodem.| ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 2
Não sei por que, ao refletir sobre literatura, logo me ocorre falar do mundo, falar da literatura em face do mundo, como se, para mim, só fosse possível falar de literatura com o mundo, pensando no mundo. Sou, afinal, metafísico?, um doente metafísico?, talvez - pergunto, pergunto-me, ou apenas cogito, assim, meio assim: um doente metafísico (é, pensando bem, parece uma boa frase), a literatura, para mim, diria respeito às coisas primeiras, ao fundamento? Certamente não, ou certamente, sim. Explicar-se não é, nunca foi, nada é fácil. Preciso refletir mais a respeito disso. O certo - ou o incerto - é que, ao pensar em literatura, logo penso no mundo. Um doente metafísico. O que vem a ser isso? | ANELITO DE OLIVEIRA
Clarão 1
Quando a vida se torna insuportável, voltamo-nos para aquilo que nos dá algum alento, ou já nos deu. Voltamo-nos para a literatura, por exemplo, para livros e autores. Nesse momento, tendemos a encontrar um sentido enorme na vida, mas que raramente dura muito tempo. Não conseguimos manter por muito tempo esse sentido porque aquilo que nos deu tanto alento em várias fases da vida já não nos chega, no presente, isolado, como uma espécie de absoluto, como algo que se justificava por si mesmo. As "Primeiras estórias" de Rosa, o "Cemetière marin" de Valéry, as "Ficciones" de Borges - tantas coisas - já não correspondem à totalidade do mundo, do nosso mundo. O mundo é mais extenso, e, pior, mais complicado. O ideal seria se restringir ao nosso mundo - ao mundo da literatura, ao mundo da religião, ao mundo da filosofia etc -, mas uma característica do mundo real hoje é a invasão agressiva de todos os mundos particulares. | ANELITO DE OLIVEIRA
domingo, 20 de novembro de 2011
POEMA | História
ANELITO DE OLIVEIRA -
A Paulina Chiziane
Primeiro os alvos
Primeiro os altos
Primeiro os astros
Primeiro os acres
Primeiro os alvos
Depois os negros
Primeiro os bancos
Primeiro as bestas
Primeiro os belos
Primeiro os bichos
Primeiro os bancos
Depois os negros
Primeiro os carros
Primeiro os corvos
Primeiro os coros
Primeiro os cactos
Primeiro os carros
Depois os negros
Primeiro os dados
Primeiro os ditos
Primeiro os dândis
Primeiro as damas
Primeiro os dados
Depois os negros
Primeiro as ervas
Primeiro as éguas
Primeiro os ecos
Primeiro os entes
Primeiro as ervas
Depois os negros
Primeiro os fortes
Primeiro as fontes
Primeiro os finos
Primeiro as feras
Primeiro os fortes
Depois os negros
Primeiro os puros
Primeiro os parvos
Primeiro os patos
Primeiro os porcos
Primeiro os puros
Depois os negros
Primeiro os últimos
Primeiro os únicos
Primeiro os unidos
Primeiro os úmidos
Primeiro os últimos
Depois os negros
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Depois os negros
Fragmento de poema concebido em meados de 2001 pelas ruas de Belo Horizonte. Apresentei-o de improviso, à maneira jazzística, em algumas situações naquele período. Escrito somente na última madrugada de 16 de novembro e revisado hoje, tarde de 20 de novembro de 2011, em Montes Claros, pensando no sentido do 20 de novembro. Dez anos de cultivo de uma mesma compreensão sobre a situação dos negros no mundo. História de uma eterna espera, recentemente apontada, a sua maneira tão comovida, pela escritora moçambicana Paulina Chiziane, numa entrevista a um canal de televisão português: o mundo muda, as questões se resolvem por toda parte, e “minha África” (dizia ela) continua a mesma, esperando por soluções que nunca chegam. Cada negro é uma África emparedada. ANELITO DE OLIVEIRA
A Paulina Chiziane
Primeiro os alvos
Primeiro os altos
Primeiro os astros
Primeiro os acres
Primeiro os alvos
Depois os negros
Primeiro os bancos
Primeiro as bestas
Primeiro os belos
Primeiro os bichos
Primeiro os bancos
Depois os negros
Primeiro os carros
Primeiro os corvos
Primeiro os coros
Primeiro os cactos
Primeiro os carros
Depois os negros
Primeiro os dados
Primeiro os ditos
Primeiro os dândis
Primeiro as damas
Primeiro os dados
Depois os negros
Primeiro as ervas
Primeiro as éguas
Primeiro os ecos
Primeiro os entes
Primeiro as ervas
Depois os negros
Primeiro os fortes
Primeiro as fontes
Primeiro os finos
Primeiro as feras
Primeiro os fortes
Depois os negros
Primeiro os puros
Primeiro os parvos
Primeiro os patos
Primeiro os porcos
Primeiro os puros
Depois os negros
Primeiro os últimos
Primeiro os únicos
Primeiro os unidos
Primeiro os úmidos
Primeiro os últimos
Depois os negros
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Primeiro primeiro
Depois os negros
Fragmento de poema concebido em meados de 2001 pelas ruas de Belo Horizonte. Apresentei-o de improviso, à maneira jazzística, em algumas situações naquele período. Escrito somente na última madrugada de 16 de novembro e revisado hoje, tarde de 20 de novembro de 2011, em Montes Claros, pensando no sentido do 20 de novembro. Dez anos de cultivo de uma mesma compreensão sobre a situação dos negros no mundo. História de uma eterna espera, recentemente apontada, a sua maneira tão comovida, pela escritora moçambicana Paulina Chiziane, numa entrevista a um canal de televisão português: o mundo muda, as questões se resolvem por toda parte, e “minha África” (dizia ela) continua a mesma, esperando por soluções que nunca chegam. Cada negro é uma África emparedada. ANELITO DE OLIVEIRA
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
ENSAIO | O crítico sem dogma
ANELITO DE OLIVEIRA - Mineiro da antiga Santa Quitéria, hoje Esmeraldas, um dos mais importantes críticos literários em atividade no país, Fábio Lucas completou 80 anos em 27 de julho passado. Não é de se estranhar, evidentemente, o silêncio em torno da efeméride: país sem memória (para dizer o mínimo). Lucas é um trabalhador incansável, referência preciosa de um tipo literário “inventado” no século XIX e hoje em vias de extinção. Nada menos que três publicações recentes atestam a vitalidade desse homem de letras inquieto: O poliedro da crítica, antologia de textos de vários momentos selecionados pelo próprio autor, O núcleo e a periferia de Machado de Assis e Ficções de Guimarães Rosa: perspectivas.
Em linhas gerais, a obra de Fábio Lucas se configura como um grande painel crítico da produção literária brasileira dos anos 1950 à atualidade, indispensável para se refletir sobre os mais significativos autores, obras e tendências contemporâneas. Nesse painel, revelam-se dois aspectos: um, de natureza documental, outro, de natureza analítica, de tal forma que se pode dizer que o crítico se empenha em documentar e analisar o que se publica de mais relevante no nosso tempo, segundo seus critérios, contribuindo, sobretudo, para a permanência da própria tradição crítica, de uma relação viva, tensa, com a obra literária.
O volume Crítica sem dogma, aparecido em 1983, é exemplar do projeto crítico de Fábio Lucas. Dezenas de autores, novos e consagrados, e obras - ensaio, romance, conto, poesia – são abordados pelo crítico, de Otto Maria Carpeaux a José Guilherme Merquior, de José Américo de Almeida a Rubem Fonseca, de Henriqueta Lisboa a Affonso Romano de Sant´Anna, passando por Fernando Sabino e Ivan Ângelo. No texto de apresentação, o autor enuncia seu sentido de crítica, destacando que “a crítica procura a inteligibilidade da obra e, por detrás desta, a do mundo”, o crítico “não realiza uma leitura fria e passiva de mero e prazeroso acumulador de informações”, é “perquiridor, deseja alcançar os porquês”.
Ainda nesse texto da coletânea em questão, Fábio Lucas discorre sobre o lugar da literatura no continente latino-americano, enunciando dados importantes para o “retrato” do crítico que sempre foi e tem sido, dados que nos permitem, especialmente, percebê-lo como um crítico latino-americano, movido pela mesma consciência aguda que animou um Rama, um Cornejo Polar e, ainda, um Candido. “A América Latina”, diz ele, “tem feito da Literatura a sua consciência: muitas vezes ela ocupa o lugar da Sociologia, da Psicologia Social, da Antropologia, da Política, no jogo de dizer nas entrelinhas o que a repressão organizada permite.” E enfatiza: “A Literatura é, deste modo, quase sempre crítica, e a crítica é muitas vezes criação literária”.
Evidencia-se, nestas linhas, um sentido insubordinado de crítica, que lhe confere um raio de atuação para além da obra literária, que é visada como espécie de acesso ao mundo. Este, por sua vez, não tem aqui uma qualidade metafísica, digamos, mas sim social, material – o mundo é, para a comunidade literária de que faz parte o crítico, a América Latina com seus dilaceramentos históricos, com seus problemas endêmicos. A literatura tem sido a consciência (atormentada, por que não dizê-lo?) desse mundo, empenho que a transforma em crítica, quando é criação, e em criação, quando é crítica. Descortina-se uma relação mutuamente transformadora, portanto, entre o continente latino-americano e sua literatura.
Crítica sem dogma aparece num momento em que a crítica literária se encontrava em plena marcha dogmática, iniciada ainda nos anos 1960, quando a atividade crítica passou a se restringir, cada vez mais, às Faculdades de Letras, com os críticos de “rodapé”, que atuavam nos cadernos culturais dos jornais, sendo desqualificados e banidos do espaço jornalístico. Além do regime autoritário em vigência, foi decisivo para esse processo a influência do Estruturalismo francês sobre pesquisadores acadêmicos brasileiros, conforme o próprio Lucas denuncia em entrevista ao “Jornal do Brasil” em 1977: “Fomos obrigados a mascar essa goma insossa, proveniente de pequenos grupos inseguros da França, em estado de perplexidade diante de sua decadência como Nação imperialista”.
Distanciado da Universidade por força do regime militar, que o fez amargar um exílio de seis anos nos Estados Unidos e Europa, o crítico não mais se reintegrou totalmente, digamos, à universidade pública brasileira e, por isso mesmo, pôde ver com agudeza o papel da própria instituição universitária na repressão à literatura, na contenção da liberdade de criação essencial ao escritor, através da adesão ao Estruturalismo. Este corresponderia, no âmbito das letras, à Teoria da Dependência, no âmbito social, quando os mais prestigiados “cientistas sociais”, como Fernando Henrique Cardoso, postulavam, nos anos 1960 e 1970, um status de nação dependente para o Brasil.
Em face de todo um dogmatismo ostentado pelos estruturalistas, Crítica sem dogma inaugura uma atitude de defesa da autonomia da literatura, na qual o gesto crítico se mostra numa relação de cumplicidade com o gesto criador com vistas a configurar um movimento de resistência da literatura brasileira a valores fomentados em centros acadêmicos estrangeiros. O dado dessa cumplicidade que, inicialmente, ressalta-se é o próprio acolhimento do texto de criação literária, por parte de Fábio Lucas, independente do gênero e do lugar social, político, econômico ou étnico do seu autor. O crítico se nos apresenta como um leitor generoso, sempre disponível para o encontro com novos textos.
Graças a esse olhar cúmplice do crítico mineiro, inúmeros autores ainda jovens nas décadas de 1960, 1970 e 1980 tiveram seus trabalhos destacados em análises pontuais que são, hoje, referências básicas para quaisquer leituras que se proponham. É o caso, inclusive, de muitos autores mineiros, como Adão Ventura, Oswaldo França Jr., Adélia Prado, Roberto Drummond, Silviano Santiago, Mário Garcia de Paiva, Ivan Ângelo e Luiz Vilela. Em textos curtos, escritos no “calor da hora” em que seus autores os divulgavam em livro, o crítico contribuiu para alargar o sentido de obra literária para além do mundo da literatura, aclarando seu fundamento societário e tornando-a, assim, acontecimento significativo para a comunidade de leitores.
Escrevendo sobre A casa de vidro, de Ivan Ângelo, Lucas nos dá elementos para compreender a produtividade crítica da sua cumplicidade com o texto do novo autor. Primeiro lembra que Lessa, em depoimento a um jornal paulista em 09 de dezembro de 1979, disse que “encara a Literatura como uma forma de conhecimento, tão válida quanto a Sociologia, a Antropologia ou outra ciência social”. Na sequência, reflete: “Eis uma tese coincidentemente de nosso repertório (...). A cada época, temos que determinar o que é literário, ou seja, as condições de admissibilidade de um tipo de produção textual na ordem literária. Na América Latina, fazer literatura é também refletir sobre a condição de terceiromundista, é enfatizar a dominação e desigualdade em termos legíveis”.
Criador e crítico, como se vê, irmanam-se, na percepção de Lucas, em torno de uma preocupação comum com uma espécie de eficácia da literatura no que diz respeito à elucidação do país, ao enfrentamento dos problemas vivenciados pelos brasileiros. O jovem criador, que então era Ivan Ângelo, enuncia um ponto de vista familiar ao crítico, que este vinha e ainda vem cultivando, à sua maneira, desde os anos 1950, mas não se trata de um ponto de vista “demodée”, superado. A vida social latinoamericana, com sua tradição de autoritarismo e desigualdade, é que “exige” a prática da literatura como “forma de conhecimento” que se renova a cada época, de modo a denunciar com clareza o que se passa em cada lugar.
Assim é que se apresenta, num primeiro plano, uma orientação ideológica na compreensão crítica de Fábio Lucas, que traz implícita uma dimensão histórica, pertinente à relação entre literatura e experiência. A obra literária, de acordo com sua percepção, constituiria – é possível pensar – um movimento a partir da história, marcado por uma vontade de racionalização crítica da realidade comum, e se cristalizaria como objeto estético pensante questionador da ordem forçosamente natural das coisas, isto é, uma ordem imposta pelas classes dominantes. Dessa busca de articulação entre os três pólos – histórico, estético e ideológico – constituintes da obra literária decorre a singularidade da produção crítica de Fábio Lucas.
Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, Belo Horizonte, 15 de outubro 2011.
Em linhas gerais, a obra de Fábio Lucas se configura como um grande painel crítico da produção literária brasileira dos anos 1950 à atualidade, indispensável para se refletir sobre os mais significativos autores, obras e tendências contemporâneas. Nesse painel, revelam-se dois aspectos: um, de natureza documental, outro, de natureza analítica, de tal forma que se pode dizer que o crítico se empenha em documentar e analisar o que se publica de mais relevante no nosso tempo, segundo seus critérios, contribuindo, sobretudo, para a permanência da própria tradição crítica, de uma relação viva, tensa, com a obra literária.
O volume Crítica sem dogma, aparecido em 1983, é exemplar do projeto crítico de Fábio Lucas. Dezenas de autores, novos e consagrados, e obras - ensaio, romance, conto, poesia – são abordados pelo crítico, de Otto Maria Carpeaux a José Guilherme Merquior, de José Américo de Almeida a Rubem Fonseca, de Henriqueta Lisboa a Affonso Romano de Sant´Anna, passando por Fernando Sabino e Ivan Ângelo. No texto de apresentação, o autor enuncia seu sentido de crítica, destacando que “a crítica procura a inteligibilidade da obra e, por detrás desta, a do mundo”, o crítico “não realiza uma leitura fria e passiva de mero e prazeroso acumulador de informações”, é “perquiridor, deseja alcançar os porquês”.
Ainda nesse texto da coletânea em questão, Fábio Lucas discorre sobre o lugar da literatura no continente latino-americano, enunciando dados importantes para o “retrato” do crítico que sempre foi e tem sido, dados que nos permitem, especialmente, percebê-lo como um crítico latino-americano, movido pela mesma consciência aguda que animou um Rama, um Cornejo Polar e, ainda, um Candido. “A América Latina”, diz ele, “tem feito da Literatura a sua consciência: muitas vezes ela ocupa o lugar da Sociologia, da Psicologia Social, da Antropologia, da Política, no jogo de dizer nas entrelinhas o que a repressão organizada permite.” E enfatiza: “A Literatura é, deste modo, quase sempre crítica, e a crítica é muitas vezes criação literária”.
Evidencia-se, nestas linhas, um sentido insubordinado de crítica, que lhe confere um raio de atuação para além da obra literária, que é visada como espécie de acesso ao mundo. Este, por sua vez, não tem aqui uma qualidade metafísica, digamos, mas sim social, material – o mundo é, para a comunidade literária de que faz parte o crítico, a América Latina com seus dilaceramentos históricos, com seus problemas endêmicos. A literatura tem sido a consciência (atormentada, por que não dizê-lo?) desse mundo, empenho que a transforma em crítica, quando é criação, e em criação, quando é crítica. Descortina-se uma relação mutuamente transformadora, portanto, entre o continente latino-americano e sua literatura.
Crítica sem dogma aparece num momento em que a crítica literária se encontrava em plena marcha dogmática, iniciada ainda nos anos 1960, quando a atividade crítica passou a se restringir, cada vez mais, às Faculdades de Letras, com os críticos de “rodapé”, que atuavam nos cadernos culturais dos jornais, sendo desqualificados e banidos do espaço jornalístico. Além do regime autoritário em vigência, foi decisivo para esse processo a influência do Estruturalismo francês sobre pesquisadores acadêmicos brasileiros, conforme o próprio Lucas denuncia em entrevista ao “Jornal do Brasil” em 1977: “Fomos obrigados a mascar essa goma insossa, proveniente de pequenos grupos inseguros da França, em estado de perplexidade diante de sua decadência como Nação imperialista”.
Distanciado da Universidade por força do regime militar, que o fez amargar um exílio de seis anos nos Estados Unidos e Europa, o crítico não mais se reintegrou totalmente, digamos, à universidade pública brasileira e, por isso mesmo, pôde ver com agudeza o papel da própria instituição universitária na repressão à literatura, na contenção da liberdade de criação essencial ao escritor, através da adesão ao Estruturalismo. Este corresponderia, no âmbito das letras, à Teoria da Dependência, no âmbito social, quando os mais prestigiados “cientistas sociais”, como Fernando Henrique Cardoso, postulavam, nos anos 1960 e 1970, um status de nação dependente para o Brasil.
Em face de todo um dogmatismo ostentado pelos estruturalistas, Crítica sem dogma inaugura uma atitude de defesa da autonomia da literatura, na qual o gesto crítico se mostra numa relação de cumplicidade com o gesto criador com vistas a configurar um movimento de resistência da literatura brasileira a valores fomentados em centros acadêmicos estrangeiros. O dado dessa cumplicidade que, inicialmente, ressalta-se é o próprio acolhimento do texto de criação literária, por parte de Fábio Lucas, independente do gênero e do lugar social, político, econômico ou étnico do seu autor. O crítico se nos apresenta como um leitor generoso, sempre disponível para o encontro com novos textos.
Graças a esse olhar cúmplice do crítico mineiro, inúmeros autores ainda jovens nas décadas de 1960, 1970 e 1980 tiveram seus trabalhos destacados em análises pontuais que são, hoje, referências básicas para quaisquer leituras que se proponham. É o caso, inclusive, de muitos autores mineiros, como Adão Ventura, Oswaldo França Jr., Adélia Prado, Roberto Drummond, Silviano Santiago, Mário Garcia de Paiva, Ivan Ângelo e Luiz Vilela. Em textos curtos, escritos no “calor da hora” em que seus autores os divulgavam em livro, o crítico contribuiu para alargar o sentido de obra literária para além do mundo da literatura, aclarando seu fundamento societário e tornando-a, assim, acontecimento significativo para a comunidade de leitores.
Escrevendo sobre A casa de vidro, de Ivan Ângelo, Lucas nos dá elementos para compreender a produtividade crítica da sua cumplicidade com o texto do novo autor. Primeiro lembra que Lessa, em depoimento a um jornal paulista em 09 de dezembro de 1979, disse que “encara a Literatura como uma forma de conhecimento, tão válida quanto a Sociologia, a Antropologia ou outra ciência social”. Na sequência, reflete: “Eis uma tese coincidentemente de nosso repertório (...). A cada época, temos que determinar o que é literário, ou seja, as condições de admissibilidade de um tipo de produção textual na ordem literária. Na América Latina, fazer literatura é também refletir sobre a condição de terceiromundista, é enfatizar a dominação e desigualdade em termos legíveis”.
Criador e crítico, como se vê, irmanam-se, na percepção de Lucas, em torno de uma preocupação comum com uma espécie de eficácia da literatura no que diz respeito à elucidação do país, ao enfrentamento dos problemas vivenciados pelos brasileiros. O jovem criador, que então era Ivan Ângelo, enuncia um ponto de vista familiar ao crítico, que este vinha e ainda vem cultivando, à sua maneira, desde os anos 1950, mas não se trata de um ponto de vista “demodée”, superado. A vida social latinoamericana, com sua tradição de autoritarismo e desigualdade, é que “exige” a prática da literatura como “forma de conhecimento” que se renova a cada época, de modo a denunciar com clareza o que se passa em cada lugar.
Assim é que se apresenta, num primeiro plano, uma orientação ideológica na compreensão crítica de Fábio Lucas, que traz implícita uma dimensão histórica, pertinente à relação entre literatura e experiência. A obra literária, de acordo com sua percepção, constituiria – é possível pensar – um movimento a partir da história, marcado por uma vontade de racionalização crítica da realidade comum, e se cristalizaria como objeto estético pensante questionador da ordem forçosamente natural das coisas, isto é, uma ordem imposta pelas classes dominantes. Dessa busca de articulação entre os três pólos – histórico, estético e ideológico – constituintes da obra literária decorre a singularidade da produção crítica de Fábio Lucas.
Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, Belo Horizonte, 15 de outubro 2011.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
RESENHA | O grito dos porcos
ANELITO DE OLIVEIRA | O horizonte preferencial da poesia sempre foi o presente, mesmo, ou sobretudo, no seu “momento futurista” (Perloff) – são apreensões do presente que movem as vanguardas das primeiras décadas do século XX – reverberar na escrita, por exemplo, a velocidade das máquinas.
Memória futura, coletânea de poemas de Paulo Franchetti publicada pela Ateliê Editorial, apenas aparentemente abre mão do tensionamento do presente. No fundo, evoca uma perspectiva de futuro para se relacionar de modo mais crítico, digamos, com o presente – e o mais candente presente, o agora.
Este modo crítico implica, claro, um método, ainda que fictício, um procedimento pensado, ironicamente pensado, é certo, como se pensa sem vontade de verdade. “Construir com método um lugar./ Equivalências, harmonias./ No espaço fechado, ou por fechar,/ Deter a fúria, despistar o medo.”
No poema sem título que se abre com esses versos, e que fecha a coletânea, fica bastante claro o projeto desse poeta, marcado, como praticamente todos na poesia brasileira contemporânea, pela obra de João Cabral e pelo Movimento de Poesia Concreta, em especial pela teoria produzida pelos Campos e Pignatari.
“Não há mérito no fácil – dizem./ Tampouco – digo – redenção/ pelo difícil”, argumenta, de maneira dialógica, a segunda estrofe do mesmo poema, à qual a terceira estrofe responde alegoricamente: “Bordadeiras, em fila,/ teimam no rude trabalho./ Talagarças se encharcam/ De suor”.
O mundo das coisas, movido intencionalmente (pois se trata de encontrar sentido para a vida) pelo trabalho humano, é assinalado – tal a “selvageria” da escrita aqui e ao longo do livro – como contraponto ao mundo das idéias, onde têm lugar (ou tiveram), por exemplo, as acaloradas discussões sobre o fácil e o difícil na poesia.
Memória futura é atravessado por uma premência de assinalar o mundo das coisas, das matérias, dos corpos, enfim, delineando o campo onde se processam as ações humanas em geral, que são, à luz de vários poemas, fundamentalmente bruscas, descontínuas, irregulares, índices – dir-se-ia com o último Merleau-Ponty – de um “ser selvagem”.
“Fui talhado para a madeira ou para o trato dos metais”, diz o poema em prosa também sem título na abertura, “Por isso estes dedos grossos e a palma larga destas mãos quadradas”, um contido e intrigante exercício de auto-genealogia, em que o poeta se denuncia como estranho em face do familiar, da sua família biológica.
Se o tema não é novo (Drummond, Cabral, Augusto de Campos e Leminski, para ficar em algumas referências básicas da poesia atual, figuraram a “anormalidade” do poeta em relação com o utilitarismo capitalista), a produtividade que sua abordagem alcança no livro de Franchetti é, no mínimo, digna de reflexão.
“Meu pai antes de mim, meu avô antes de meu pai.”, vai dizendo o poema em prosa, “E uma lista de nomes sem rosto que se afogam no esquecimento. Todos oficiaram os ritos básicos da vida. Apenas eu, com o que me deram, contentei-me com palavras”.
Contentamento que não significa uma auto-realização, contentamento descontente, para lembrar o paradoxo do sujeito amoroso camoniano, porque (e é isso que importa mais) significa uma perda do mundo das coisas, daquele mundo habitado pelos membros da família originária.
Dessa perda do mundo “real” decorre, para o sujeito, o sentimento da finitude, do esvaziamento, da falta de sentido: “Agora, sem outro peso nas mãos, envelheço sendo ainda o que está sempre chegando e olhando à volta, sem rumo, para o lugar estranho”, que é, certamente, o lugar sem lugar da poesia.
Pode-se dizer que Memória futura consiste num renitente esforço de presentificação desse lugar através de signos de organicidade, de naturalidade, como carne (“Ouvir o chamado da carne”), terra (“Colocava a terra dentro dos vasos”), fogo (“Todos os fogos queimam”) e sangue (“O sangue insiste/ Como um pensamento”).
Essa presentificação, por outro lado, não chega a integrar a poesia ao mundo das coisas, não chega a torná-la uma prática comum entre outras práticas sociais. A estranheza do lugar da poesia seria, portanto, incontornável, razão maior da melancolia – e mesmo do luto – ostentado pelo poeta.
Nas conversas que trava com seus “precursores” remotos e recentes – Yeats, Hopkins, Pound, Hilda Hilst e Ana C. –, percebe-se, especialmente, a fatalidade como traço da relação entre poeta e mundo, como o estranho está fadado a se esbarrar nos muros do “bíos”, em todos os sentidos, da vida.
Num dos mais belos poemas desta coletânea, que vale muito pelos problemas que circunscreve, diz, organicamente, o poeta Franchetti: “Na infância, inutilmente gritavam os porcos/ A caminho do abate./ Muitas vezes esses gritos me fizeram perguntar/ Para quem, por quem, com que sentido”. Assim são os poetas.
Texto publicado no Estado de Minas, Caderno Pensar, 16 de julho 2011.
Memória futura, coletânea de poemas de Paulo Franchetti publicada pela Ateliê Editorial, apenas aparentemente abre mão do tensionamento do presente. No fundo, evoca uma perspectiva de futuro para se relacionar de modo mais crítico, digamos, com o presente – e o mais candente presente, o agora.
Este modo crítico implica, claro, um método, ainda que fictício, um procedimento pensado, ironicamente pensado, é certo, como se pensa sem vontade de verdade. “Construir com método um lugar./ Equivalências, harmonias./ No espaço fechado, ou por fechar,/ Deter a fúria, despistar o medo.”
No poema sem título que se abre com esses versos, e que fecha a coletânea, fica bastante claro o projeto desse poeta, marcado, como praticamente todos na poesia brasileira contemporânea, pela obra de João Cabral e pelo Movimento de Poesia Concreta, em especial pela teoria produzida pelos Campos e Pignatari.
“Não há mérito no fácil – dizem./ Tampouco – digo – redenção/ pelo difícil”, argumenta, de maneira dialógica, a segunda estrofe do mesmo poema, à qual a terceira estrofe responde alegoricamente: “Bordadeiras, em fila,/ teimam no rude trabalho./ Talagarças se encharcam/ De suor”.
O mundo das coisas, movido intencionalmente (pois se trata de encontrar sentido para a vida) pelo trabalho humano, é assinalado – tal a “selvageria” da escrita aqui e ao longo do livro – como contraponto ao mundo das idéias, onde têm lugar (ou tiveram), por exemplo, as acaloradas discussões sobre o fácil e o difícil na poesia.
Memória futura é atravessado por uma premência de assinalar o mundo das coisas, das matérias, dos corpos, enfim, delineando o campo onde se processam as ações humanas em geral, que são, à luz de vários poemas, fundamentalmente bruscas, descontínuas, irregulares, índices – dir-se-ia com o último Merleau-Ponty – de um “ser selvagem”.
“Fui talhado para a madeira ou para o trato dos metais”, diz o poema em prosa também sem título na abertura, “Por isso estes dedos grossos e a palma larga destas mãos quadradas”, um contido e intrigante exercício de auto-genealogia, em que o poeta se denuncia como estranho em face do familiar, da sua família biológica.
Se o tema não é novo (Drummond, Cabral, Augusto de Campos e Leminski, para ficar em algumas referências básicas da poesia atual, figuraram a “anormalidade” do poeta em relação com o utilitarismo capitalista), a produtividade que sua abordagem alcança no livro de Franchetti é, no mínimo, digna de reflexão.
“Meu pai antes de mim, meu avô antes de meu pai.”, vai dizendo o poema em prosa, “E uma lista de nomes sem rosto que se afogam no esquecimento. Todos oficiaram os ritos básicos da vida. Apenas eu, com o que me deram, contentei-me com palavras”.
Contentamento que não significa uma auto-realização, contentamento descontente, para lembrar o paradoxo do sujeito amoroso camoniano, porque (e é isso que importa mais) significa uma perda do mundo das coisas, daquele mundo habitado pelos membros da família originária.
Dessa perda do mundo “real” decorre, para o sujeito, o sentimento da finitude, do esvaziamento, da falta de sentido: “Agora, sem outro peso nas mãos, envelheço sendo ainda o que está sempre chegando e olhando à volta, sem rumo, para o lugar estranho”, que é, certamente, o lugar sem lugar da poesia.
Pode-se dizer que Memória futura consiste num renitente esforço de presentificação desse lugar através de signos de organicidade, de naturalidade, como carne (“Ouvir o chamado da carne”), terra (“Colocava a terra dentro dos vasos”), fogo (“Todos os fogos queimam”) e sangue (“O sangue insiste/ Como um pensamento”).
Essa presentificação, por outro lado, não chega a integrar a poesia ao mundo das coisas, não chega a torná-la uma prática comum entre outras práticas sociais. A estranheza do lugar da poesia seria, portanto, incontornável, razão maior da melancolia – e mesmo do luto – ostentado pelo poeta.
Nas conversas que trava com seus “precursores” remotos e recentes – Yeats, Hopkins, Pound, Hilda Hilst e Ana C. –, percebe-se, especialmente, a fatalidade como traço da relação entre poeta e mundo, como o estranho está fadado a se esbarrar nos muros do “bíos”, em todos os sentidos, da vida.
Num dos mais belos poemas desta coletânea, que vale muito pelos problemas que circunscreve, diz, organicamente, o poeta Franchetti: “Na infância, inutilmente gritavam os porcos/ A caminho do abate./ Muitas vezes esses gritos me fizeram perguntar/ Para quem, por quem, com que sentido”. Assim são os poetas.
Texto publicado no Estado de Minas, Caderno Pensar, 16 de julho 2011.
domingo, 5 de junho de 2011
ANÁLISE | A política da tradição
ANELITO DE OLIVEIRA – Durante um longo tempo, a questão fundamental na vida literária brasileira foi ter uma tradição própria, diversa daquela imposta pelos colonizadores europeus. Ter uma tradição significava, de fins do século XVIII até as duas primeiras décadas do século XX, assumir no país uma identidade diferente daquela dos europeus, especialmente portugueses, uma identidade brasileira. Esse processo tem seu estímulo decisivo em dois fatos eminentemente políticos, como se sabe: a inconfidência mineira, em 1789, e a independência do país, em 1822, “citada” em 1922 pelos primeiros modernistas. Assim, ter uma tradição implica assumir uma identidade, e assumir uma identidade implica, por sua vez, entrar em conflito com outra identidade, visada como mais forte, o que nos conduz à ideia de tradição como problema, e não como - o que é estranhamente comum perceber entre nós - solução.
Enquanto se configurou como extensão reverente da tradição cultural europeia – Caminha, Anchieta,Teixeira, Oliveira etc -, a literatura foi, no Brasil, uma atividade ingênua, no mau sentido, incapaz de causar qualquer mal-estar ao colonizador, a começar pelo próprio escrevente – não escritor, para lembrar a célebre distinção de Barthes -, também ele, esse escrevente, “vestido” de colonizador. Hoje, nos exercícios de anacronia que nos habituamos a fazer, desentranhamos problemas fascinantes daquela produção textual fundante do que viria a se tornar uma literatura brasileira. Mas é preciso dizer, uma vez mais, que não havia uma intenção problematizante, digamos, ali, uma vez que essa intenção exige uma “consciência crítica”, para falar com Affonso Ávila, que só começa a se apresentar, de modo turbulento, com Antônio Vieira e Gregório de Matos e Guerra. Essa “consciência crítica”, atravessada por uma rude racionalidade, mergulhada na crise que define o sujeito barroco, é que faz emergir um problema onde só se via solução sob o signo do encantamento.
Para Vieira e Gregório, não basta abordar o entorno maravilhoso, é preciso abordá-lo e pensá-lo a um só tempo, é preciso abordá-lo e criticá-lo, a um só tempo. Trata-se de tirar as coisas do seu lugar natural, de investir contra sua naturalidade, inscrevendo-as na dinâmica historial, mais ainda: numa conflituosa dinâmica historial. As coisas não são o que são por um mero capricho da natureza, mas em função de um processo histórico conduzido a partir de determinados princípios e com vistas a atingir determinadas finalidades. Vieira e Gregório, como nos mostraram, mais recentemente, estudos de um Bosi, um Hansen, um Pécora, portam uma visão aguda sobre o seu tempo, e essa agudeza, para o propósito desta reflexão, interessa à medida que constitui índice gritante do modo problemático como uma nova civilização, a americana do Brasil, relaciona-se com aquela que a colonizou em definitivo, a europeia de Portugal. Para Vieira e Gregório, não é possível exaltar, seria falsidade exaltar, uma realidade inteiramente nova, um presente sem passado, algo estranho ao “velho mundo”. Criticando – pela via da doutrina ou da sátira -, ambos acusam a ausência e a necessidade, por outro lado, de uma tradição na cultura local, e, neste caso, tradição equivaleria a referencial de civilidade, compreendida, especialmente, como obediência.
Diz Vieira no “Sermão da Sexagéssima”:
"Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane, que é isto? Assim como Deus não é hoje menos Onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim para aprender a pregar; e vós para que aprendais a ouvir".
E Gregório, no seu denominado “Contemplando as coisas do mundo desde o seu retiro”:
"Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa."
Enunciando do fundo do conturbado mundo barroco, o pregador e o poeta colocam em relevo, evidentemente, questões complexas, operacionalizadas de modo sintético, arbitrário: cultura, civilização, verdade etc. No final do século XVIII, com o advento das Luzes, essas questões, como se sabe, receberão novos contornos, imprecisos, metodologicamente deficitários, mas ainda assim instigantes. Os neoclássicos, operando a partir de um viés restaurador de valores culturais complicados pelo Barroco, acabam por se sensibilizar para um aspecto dissonante da cultura local – seu “infame ruído”, dir-se-ia, lembrando já Cláudio Manuel -, um aspecto dissonante que decorre da natureza a que está vinculada essa cultura, que não é mesma, civilizada, da terra portuguesa. Urge compreender essa natureza que, conforme a regra do jogo artístico árcade haurida em poéticas como a de Boileau, deve funcionar como um princípio de beleza, referência, afinal, de verdade: o belo é o verdadeiro. A compreensão dessa natureza resulta, em Cláudio, numa espécie de saturação dos signos da tradição literária europeia e consequente emergência de uma profunda inquietação, que seria o traço distintivo de uma legítima tradição brasileira, investida das contradições que permeiam o tecido social brasileiro, uma contra-dicção, sem dúvida, em que muitas vozes se atritam.
Reouçamos o célebre soneto “L” de Cláudio Manuel:
"Memórias do presente, e do passado
Fazem guerra cruel dentro em meu peito,
E bem que ao sofrimento ando já feito,
Mais que nunca desperta hoje o cuidado.
Que diferente, que diverso estado
É este, em que somente o triste efeito
Da pena, a que meu mal me tem sujeito,
Me acompanha entre aflito e magoado!
Tristes lembranças! e que em vão componho
A memória da vossa sombra escura!
Que néscio em vós a ponderar me ponho!
Ide-vos; que em tão mísera loucura
Todo o passado bem tenho por sonho;
Só é certa a presente desventura."
À tradição enquanto contra-dicção, o Romantismo, em linhas gerais, opôs uma tradição nacional, instaurando a primeira e decisiva cisão no seio da literatura brasileira, ainda não avaliada a contento. Há uma linha de continuidade entre o Iluminismo e o Romantismo, bastante clara nos Suspiros poéticos e saudades de Magalhães, tanto quanto há uma linha de descontinuidade entre o Arcadismo – que mantém uma relação ambígua com o Iluminismo, conforme se depreende na Formação da literatura brasileira de Candido - e o próprio Romantismo, o que se explica, sobretudo, em função das contradições do Romantismo. Tanto quanto o Iluminismo, o Romantismo da primeira geração – Magalhães, Porto-Alegre, Dias - e da terceira – Castro Alves, Tobias Barreto – quis produzir consciência – uma linha de continuidade, portanto. Diferentemente do Romantismo, o Arcadismo se conformou a partir de um sensível estranhamento do “modelo” europeu, numa relação que caracteriza uma difícil – porque sincera – adesão ao local.
Primeiro movimento literário propriamente dito, comprometido tanto com a afirmação de uma literatura nacional quanto com a construção da nação, comprometido com a afirmação de uma literatura como parte do processo de construção da nação, o Romantismo expõe, categoricamente, a dimensão política da tradição literária, que consiste no seu caráter “inventado”, não “original”, para lembrar a distinção nietzscheana em que Foucault descobre uma espantosa produtividade para a compreensão da relação entre saber e poder. Não há, a priori, tradição nenhuma, toda tradição é inventada, e esse processo, encaminhado sempre coletivamente (autores isolados não “inventam” tampouco consolidam tradições) é, inegavelmente, político, implica escolha, seleção, divisão, inclusão e exclusão segundo uma escala de valores. O Romantismo foi, do início ao fim – se é que seu projeto já chegou ao fim -, uma empresa polêmica exatamente em função da essência ideológica que se encontra nessa escala de valores, como não poderia deixar de ser, o que denuncia esses valores como valores de uma determinada classe, não de todos que habitam o espaço social. Criando e pensando e criticando e organizando o presente e o passado literário do país, os polivalentes românticos, responsáveis pelos primeiros gestos historiográficos na literatura brasileira, deram impulso decisivo ao processo de canonização de autores que tem, como contraparte, a marginalização de autores.
Também atuaram, ao longo do período romântico brasileiro, autores como Korpo Santo, Luiz Gama e Sousândrade, hoje citados, pesquisados, valorizados, mas que ficaram relegados ao esquecimento durante décadas. Apesar de importante, necessária, essa valorização desses autores no presente, no nosso presente, não altera radicalmente a imagem que temos do passado romântico brasileiro, do nosso Romantismo, o que nos leva à compreensão da força da tradição, que a tradição é, acima de tudo, uma força que se anuncia já no modo como nos referimos a ela: no singular. O Romantismo brasileiro continua a ser representado – e cultuado e ensinado – pelas três gerações, em termos de poesia, e por Macedo, Guimaraens, Taunay, Alencar e o primeiro Machado, na prosa. Demonstração clara da força do tempo passado sobre o tempo presente, ao contrário do que geralmente pensamos, nós, os entusiasmados prisioneiros do tempo presente.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Affonso. Sousândrade: o poeta e a consciência crítica. In: O poeta e a consciência crítica. Rio de Janeiro: Summus Editorial, 1978. 2ª Ed.
BARTHES, Roland. Escritores e escreventes. In: Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1970.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
COSTA, Cláudio Manuel da. Soneto L. In: A poesia dos inconfidentes. Org. Domício Proença Filho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Machado e Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: Nau/Puc-Rio, 2008. 3ª Ed.
GUERRA, Gregório de Matos e. “Contemplando as coisas do mundo desde o seu retiro”. In: Cinco séculos de poesia: antologia da poesia clássica brasileira. Sel. e intr. Frederico Barbosa. São Paulo: Landy, 2000.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento. São Paulo: Edusp, 1994.
VIEIRA, Padre Antonio. Sermão da Sexagésima. In: Os sermões. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.
Texto publicado no livro Diálogos com a tradição: permanência e transformação, Org. Osmar Oliva, Editora Unimontes, 2010. Algumas modificações foram feitas para esta publicação.
Enquanto se configurou como extensão reverente da tradição cultural europeia – Caminha, Anchieta,Teixeira, Oliveira etc -, a literatura foi, no Brasil, uma atividade ingênua, no mau sentido, incapaz de causar qualquer mal-estar ao colonizador, a começar pelo próprio escrevente – não escritor, para lembrar a célebre distinção de Barthes -, também ele, esse escrevente, “vestido” de colonizador. Hoje, nos exercícios de anacronia que nos habituamos a fazer, desentranhamos problemas fascinantes daquela produção textual fundante do que viria a se tornar uma literatura brasileira. Mas é preciso dizer, uma vez mais, que não havia uma intenção problematizante, digamos, ali, uma vez que essa intenção exige uma “consciência crítica”, para falar com Affonso Ávila, que só começa a se apresentar, de modo turbulento, com Antônio Vieira e Gregório de Matos e Guerra. Essa “consciência crítica”, atravessada por uma rude racionalidade, mergulhada na crise que define o sujeito barroco, é que faz emergir um problema onde só se via solução sob o signo do encantamento.
Para Vieira e Gregório, não basta abordar o entorno maravilhoso, é preciso abordá-lo e pensá-lo a um só tempo, é preciso abordá-lo e criticá-lo, a um só tempo. Trata-se de tirar as coisas do seu lugar natural, de investir contra sua naturalidade, inscrevendo-as na dinâmica historial, mais ainda: numa conflituosa dinâmica historial. As coisas não são o que são por um mero capricho da natureza, mas em função de um processo histórico conduzido a partir de determinados princípios e com vistas a atingir determinadas finalidades. Vieira e Gregório, como nos mostraram, mais recentemente, estudos de um Bosi, um Hansen, um Pécora, portam uma visão aguda sobre o seu tempo, e essa agudeza, para o propósito desta reflexão, interessa à medida que constitui índice gritante do modo problemático como uma nova civilização, a americana do Brasil, relaciona-se com aquela que a colonizou em definitivo, a europeia de Portugal. Para Vieira e Gregório, não é possível exaltar, seria falsidade exaltar, uma realidade inteiramente nova, um presente sem passado, algo estranho ao “velho mundo”. Criticando – pela via da doutrina ou da sátira -, ambos acusam a ausência e a necessidade, por outro lado, de uma tradição na cultura local, e, neste caso, tradição equivaleria a referencial de civilidade, compreendida, especialmente, como obediência.
Diz Vieira no “Sermão da Sexagéssima”:
"Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane, que é isto? Assim como Deus não é hoje menos Onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim para aprender a pregar; e vós para que aprendais a ouvir".
E Gregório, no seu denominado “Contemplando as coisas do mundo desde o seu retiro”:
"Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa."
Enunciando do fundo do conturbado mundo barroco, o pregador e o poeta colocam em relevo, evidentemente, questões complexas, operacionalizadas de modo sintético, arbitrário: cultura, civilização, verdade etc. No final do século XVIII, com o advento das Luzes, essas questões, como se sabe, receberão novos contornos, imprecisos, metodologicamente deficitários, mas ainda assim instigantes. Os neoclássicos, operando a partir de um viés restaurador de valores culturais complicados pelo Barroco, acabam por se sensibilizar para um aspecto dissonante da cultura local – seu “infame ruído”, dir-se-ia, lembrando já Cláudio Manuel -, um aspecto dissonante que decorre da natureza a que está vinculada essa cultura, que não é mesma, civilizada, da terra portuguesa. Urge compreender essa natureza que, conforme a regra do jogo artístico árcade haurida em poéticas como a de Boileau, deve funcionar como um princípio de beleza, referência, afinal, de verdade: o belo é o verdadeiro. A compreensão dessa natureza resulta, em Cláudio, numa espécie de saturação dos signos da tradição literária europeia e consequente emergência de uma profunda inquietação, que seria o traço distintivo de uma legítima tradição brasileira, investida das contradições que permeiam o tecido social brasileiro, uma contra-dicção, sem dúvida, em que muitas vozes se atritam.
Reouçamos o célebre soneto “L” de Cláudio Manuel:
"Memórias do presente, e do passado
Fazem guerra cruel dentro em meu peito,
E bem que ao sofrimento ando já feito,
Mais que nunca desperta hoje o cuidado.
Que diferente, que diverso estado
É este, em que somente o triste efeito
Da pena, a que meu mal me tem sujeito,
Me acompanha entre aflito e magoado!
Tristes lembranças! e que em vão componho
A memória da vossa sombra escura!
Que néscio em vós a ponderar me ponho!
Ide-vos; que em tão mísera loucura
Todo o passado bem tenho por sonho;
Só é certa a presente desventura."
À tradição enquanto contra-dicção, o Romantismo, em linhas gerais, opôs uma tradição nacional, instaurando a primeira e decisiva cisão no seio da literatura brasileira, ainda não avaliada a contento. Há uma linha de continuidade entre o Iluminismo e o Romantismo, bastante clara nos Suspiros poéticos e saudades de Magalhães, tanto quanto há uma linha de descontinuidade entre o Arcadismo – que mantém uma relação ambígua com o Iluminismo, conforme se depreende na Formação da literatura brasileira de Candido - e o próprio Romantismo, o que se explica, sobretudo, em função das contradições do Romantismo. Tanto quanto o Iluminismo, o Romantismo da primeira geração – Magalhães, Porto-Alegre, Dias - e da terceira – Castro Alves, Tobias Barreto – quis produzir consciência – uma linha de continuidade, portanto. Diferentemente do Romantismo, o Arcadismo se conformou a partir de um sensível estranhamento do “modelo” europeu, numa relação que caracteriza uma difícil – porque sincera – adesão ao local.
Primeiro movimento literário propriamente dito, comprometido tanto com a afirmação de uma literatura nacional quanto com a construção da nação, comprometido com a afirmação de uma literatura como parte do processo de construção da nação, o Romantismo expõe, categoricamente, a dimensão política da tradição literária, que consiste no seu caráter “inventado”, não “original”, para lembrar a distinção nietzscheana em que Foucault descobre uma espantosa produtividade para a compreensão da relação entre saber e poder. Não há, a priori, tradição nenhuma, toda tradição é inventada, e esse processo, encaminhado sempre coletivamente (autores isolados não “inventam” tampouco consolidam tradições) é, inegavelmente, político, implica escolha, seleção, divisão, inclusão e exclusão segundo uma escala de valores. O Romantismo foi, do início ao fim – se é que seu projeto já chegou ao fim -, uma empresa polêmica exatamente em função da essência ideológica que se encontra nessa escala de valores, como não poderia deixar de ser, o que denuncia esses valores como valores de uma determinada classe, não de todos que habitam o espaço social. Criando e pensando e criticando e organizando o presente e o passado literário do país, os polivalentes românticos, responsáveis pelos primeiros gestos historiográficos na literatura brasileira, deram impulso decisivo ao processo de canonização de autores que tem, como contraparte, a marginalização de autores.
Também atuaram, ao longo do período romântico brasileiro, autores como Korpo Santo, Luiz Gama e Sousândrade, hoje citados, pesquisados, valorizados, mas que ficaram relegados ao esquecimento durante décadas. Apesar de importante, necessária, essa valorização desses autores no presente, no nosso presente, não altera radicalmente a imagem que temos do passado romântico brasileiro, do nosso Romantismo, o que nos leva à compreensão da força da tradição, que a tradição é, acima de tudo, uma força que se anuncia já no modo como nos referimos a ela: no singular. O Romantismo brasileiro continua a ser representado – e cultuado e ensinado – pelas três gerações, em termos de poesia, e por Macedo, Guimaraens, Taunay, Alencar e o primeiro Machado, na prosa. Demonstração clara da força do tempo passado sobre o tempo presente, ao contrário do que geralmente pensamos, nós, os entusiasmados prisioneiros do tempo presente.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Affonso. Sousândrade: o poeta e a consciência crítica. In: O poeta e a consciência crítica. Rio de Janeiro: Summus Editorial, 1978. 2ª Ed.
BARTHES, Roland. Escritores e escreventes. In: Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1970.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
COSTA, Cláudio Manuel da. Soneto L. In: A poesia dos inconfidentes. Org. Domício Proença Filho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Machado e Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: Nau/Puc-Rio, 2008. 3ª Ed.
GUERRA, Gregório de Matos e. “Contemplando as coisas do mundo desde o seu retiro”. In: Cinco séculos de poesia: antologia da poesia clássica brasileira. Sel. e intr. Frederico Barbosa. São Paulo: Landy, 2000.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento. São Paulo: Edusp, 1994.
VIEIRA, Padre Antonio. Sermão da Sexagésima. In: Os sermões. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.
Texto publicado no livro Diálogos com a tradição: permanência e transformação, Org. Osmar Oliva, Editora Unimontes, 2010. Algumas modificações foram feitas para esta publicação.
ENSAIO | Os sem-valor
ANELITO DE OLIVEIRA - A discussão sobre valores morais, éticos e culturais, encaminhada a partir de uma perspectiva transformadora, livre de quaisquer preconceitos, é imprescindível neste momento de exaltada estabilidade econômica no país, por um lado, e apreensiva instabilidade social, por outro.
Com a pobreza histórica, digamos, administrada pelo Governo Federal – o que não quer dizer solução, como atesta o recém-lançado programa “Brasil sem miséria” –, o ambiente é dos mais propícios para o enfrentamento de índices alarmantes, como o da violência urbana, do alcoolismo e consumo de drogas em geral, evidências de degradação do humano.
São índices que não podem ser contidos, tampouco revertidos, a partir de políticas públicas de ordem apenas econômica. São índices que exigem uma compreensão mais ampla, inclusive com o amparo da economia, para que possam ser operacionalizados de modo realmente eficaz.
Com efeito, é exatamente no horizonte da economia que percebemos a consequência indiscutível da crise de valores, sempre evocada pelos moralistas de plantão, para o presente e futuro do país: pessoas inativas, fora da escola, na mendicância, desempregadas, dependendo de assistência dos governos. Economicamente, essas pessoas, todo um contingente de brasileiros ainda na miséria, representam ônus para o país – presídios, SUS, bolsas, UPPs - quando poderiam representar bônus.
De um modo geral, os inativos, “sem-o-que-fazer”, “vagabundos”, são tidos como pessoas desprovidas de valores morais, éticos, culturais, religiosos, sem os considerados referenciais estruturantes da vida em sociedade, referenciais cristãos, em sua maioria, como sabemos: amor ao próximo, honradez, solidariedade, caridade, dignidade, entre outros.
Trata-se de valores definidos aprioristicamente, sobretudo em virtude de dogmas cristãos, que acabam por entrar em crise e, finalmente, dissolvem-se na experiência nua e crua da vida social, na luta pela sobrevivência. Fato natural, sem dúvida, num país marcado pelo sincretismo religioso, mas contra o qual o indivíduo resiste em função do projeto civilizatório iluminista que determinou, como não poderia deixar de ser, os contornos da sociabilidade brasileira.
Para se manter nos limites da civilização, diferenciando-se do bárbaro, o brasileiro em geral “funciona”, sem dúvida, a partir de princípios universais, seguidos pela maioria dos povos colonizados por cristãos europeus. Princípios que, num dado momento, entram em choque com suas especificidades sociais, materiais, resultantes da vida em sociedade. Nesse choque inusitado, toda uma escala de valores, assimilada à força, dilui-se como demonstração de sua inconsistência real, na vida comum, na “práxis” cotidiana.
Se os valores clássicos de ordem religiosa, filosófica, política, cultural, econômica, impostos pelo processo civilizatório, tivessem validade no cotidiano dos que vivem na linha de pobreza no país não seriam, certamente, abandonados.
O abandono desses valores se deve justamente ao fato de que não significam nada, à medida que aqueles que os ostentam – os pobres – não são valorizados, mas antes desvalorizados, relegados às margens de um país regido, historicamente, segundo uma permanente obsessão pelo absolutamente novo: um novo Regime, um Estado Novo, uma nova capital, uma nova Constituição e, assim, novos valores constantemente a superar valores decretados, pelas elites, como velhos, muitas vezes da noite para o dia, sem que sequer possam florescer e gerar os “frutos” prometidos.
A efetiva democratização, por exemplo, que deveria continuar depois da “abertura” de 1985, é, na política, um valor então ostentado com entusiasmo e logo abandonado, nos anos 1990, sem chegar a se estabelecer em sentido forte, como regime dos “polloi”, da maioria pobre. Já não se postula a democratização do país, apesar de toda a evidência de um “pensamento único”, da vigência de uma ordem ainda autoritária, agora encoberta por um cinismo insuportável. O que está por trás desta situação, do abandono da democratização como valor político?
À medida que a democratização não é mais um valor no cenário político nacional, mas um mero ingrediente retórico dos estabelecidos, é natural que o contingente de excluídos, de injustiçados por uma ideia bastante restrita de democracia, não se responsabilize mais pelo espaço público, não se preocupe com a preservação de valores fundamentais para a “saúde” do espaço público, como a tolerância.
Cenas comuns nos centros urbanos – grandes, médios e até pequenos – são agressões gratuitas, das mais “leves” às mais pesadas, de um olhar a um palavrão ou um disparo de arma de fogo, como se as pessoas tivessem ido ali para exercitar sua vontade de agredir.
Como resposta a este quadro de guerra, administrações públicas investem quantias exorbitantes em projetos de reurbanização, em novas instalações governamentais, a fim de deixarem, elas mesmas, o quanto antes o centro da cidade, o espaço historicamente consagrado como público, com a ilusão de garantir segurança, tranquilidade e produtividade aos burocratas.
Como uma espécie de compensação, as antigas instalações governamentais são convertidas em centros culturais, como se a cultura pudesse resolver o problema que assola o espaço público – a banalização da violência –, pudesse acalmar as pessoas, discipliná-las.
Realmente, isso pode surtir efeito em relação a um certo número de pessoas, ainda não totalmente adulterada pela experiência da cidade, os rebeldes sem causa da classe média, por exemplo. Mas a possibilidade é mínima disso surtir efeito em relação à multidão de pessoas que vai para o centro das cidades diariamente para “ganhar a vida”, para as quais o centro é um espaço de vivência da dura realidade capitalista.
Essas pessoas têm, na verdade, um problema político com a cidade, que consiste na experiência da injustiça que caracteriza, decisivamente, sua relação com a cidade dos anos 1990 para cá.
Quando a democratização era um valor político, diretamente vinculado a um ideal de justiça, o grande contingente dos sem-valor de hoje agia, sem dúvida, segundo uma perspectiva de cuidado, embalado pela canção de Milton e Brant: “há que se cuidar da vida”, “há que se cuidar do mundo”. Cuidar era, então, fazer justiça.
Hoje, sob a égide de uma ordem estatal excludente, esse contingente exibe, com razão, um descaso pelo espaço público, atitude que precisa ser pensada como algo politicamente motivado, não como algo resultante de um excesso de democracia trazido pela famigerada “abertura”.
A motivação, no caso, parte daqueles que, alçados às esferas de poder público, investem, absurdamente, em processos de precarização da democracia, de minimização de liberdades individuais sob o argumento – cínico, claro – de que estão investindo na sustentabilidade do social.
Na verdade, as pessoas em geral – pobres, em sua maioria – interessam, mais do que nunca, como números, ou fontes de pesquisa, para o poder público, não como humanos, tampouco cidadãos portadores de direitos. São os sem-valor, de quem os moralistas interessados ainda por cima cobram valores morais.
segunda-feira, 11 de abril de 2011
ARTIGO | Sobre a tragédia no Rio
ANELITO DE OLIVEIRA - Parece que não temos saída dentro do mundo para dimensões paradisíacas, por mais que as busquemos. Parece que estamos fadados a vivenciar infernos de vária ordem, que se apresentam por toda parte, com ou sem motivo. Como não falar disso, por um lado, e como falar apenas disso, por outro? Creio que é preciso despertar outros horizontes, sempre, mas não fingir que a realidade nua e crua não existe, e com sua razão de ser, com seus fundamentos peculiares em cada lugar, a cada momento.
Em relação à tragédia no Rio, é preciso considerar duas coisas, no mínimo: a vulnerabilidade das escolas públicas brasileiras de todos os níveis e a condição de vítima do assassino, vítima da espetacularização da violência praticada pela cinematografia vulgar dos EUA, pelas TVs brasileiras, especialmente a Globo, pela submúsica de rappers norte-americanos e brasileiros, por certa subliteratura policialesca brasileira e estrangeira, também, por fundamentalistas de várias seitas e religiões.
A atitude terrorista de Wellington Menezes constitui a reprodução da violência por aquele que foi violentado simbolica e realmente. De um ponto de vista lógico, entendemos que nada justifica qualquer tipo de crime, que todo crime é injustificável, mas é claro que a mente de um criminoso - a partir do momento em que o sujeito decide cometer um crime - não funciona mais a partir de preceitos lógicos, claro que trata-se de uma mente que assumiu o ilógico como sua lógica.
Não há outra esfera senão a social para se entender quaisquer ações criminosas, por mais que nos pareçam coisas de outro mundo, uma vez que foi na sociedade que essas ações se configuraram. Sujeito de uma sociedade belicosa, que se recusa - em plebiscito - a abrir mão de suas armas, Menezes não é, como a mídia vem alardeando, o único, o principal, autor de uma tragédia sangrenta, que marcará definitivamente a vida de tantas pessoas, especialmente a dos pais das crianças.
Na verdade, ele é co-autor, ao lado de políticos corruptos, empresários e celebridades irresponsáveis que deixam as escolas públicas relegadas às traças, que não se preocupam efetivamente com a erradicação da cultura da guerra e estabelecimento de uma cultura da paz no país, que não se preocupam com a garantia de caminhos mais inteligentes, mais produtivos, para a juventude.
Não nos enganemos: Menezes é produto da "banalidade do mal" (Arendt) no Brasil do século XXI, de conteúdos maléficos ofertados pelas TVs e pela Internet, que toma conta do país cada vez mais, enquanto a educação pública, único alicerce para uma vida social justa, não para de agonizar, o que faz de qualquer escola pública um alvo potencial de toda uma geração de degenerados.
terça-feira, 5 de abril de 2011
ARTIGO | Assim seja
ANELITO DE OLIVEIRA - Não abandonei este espaço, embora possa parecer - são dois meses desde a última postagem. Estou novamente aqui e gostaria, antes de mais nada, de agradecer àqueles (as) que têm me seguido e àqueles (as) que me leem volta e meia. Creio que já possa retomar as escritas depois de uma longa reflexão sobre o sentido de manter um blog. Não é a primeira vez que me vejo incerto sobre esse sentido, numa situação crítica. Novamente, concluo que o sentido passa pelo cerco à expressão que os próprios meios de comunicação tradicionais - rádios, tvs, jornais, revistas e editoras - impõem há vários anos no Brasil a todos (as) que são o que são. A transformação do "Mais!" em "Ilustríssima", na Folha de S. Paulo, é exemplo disso. No lugar de debates, futilidades. O esvaziamento do "Suplemento Literário de Minas Gerais" é exemplo disso. No lugar de literatura, camaradagens. Não há espaço nos meios de comunicação estabelecidos para dissonâncias, só para louvações. É uma situação que, no âmbito da literatura, vai tomando conta cada vez mais da internet, com as revistas online reunindo grupos de amigos, uns elogiando os outros, numa eterna repetição do Modernismo de 22. Sem dúvida, o cerco, melhor, o fechamento do cerco, à livre expressão é um dos traços mais eloquentes da inexistência de democracia real no país. Certamente, nunca existiu, talvez porque a democracia seja algo de índio, de negro, de mulher, de doente - de um lado considerado incongruente com uma ideia safada de Brasil. Nada melhor para ilustrar essa ideia safada de Brasil que o Big Brother de Pedro Bial. Sim, precisamente, mesmo que inconscientemente, meu silêncio nestes dois meses tem a ver com isso: o país é este - se alguém ainda tem dúvida -, aquele bando de vagabundos rindo da nossa cara no BBB e tratados como heróis, e como escrever em face deste país? Mas claro, a literatura é um escrever contra, sempre, contra tudo que nos humilha, que nos enoja, que nos entristece, que nos desmerece. O que dizemos na literatura, com a literatura, não é mesmo possível, nem será possível, dizer em outro lugar. O blog pode ser, deve ser, um espaço de resistência ao que está aí nos oprimindo a cada dia. E aqui estarei, a partir de agora, sem rosto, sem biografia, sem curriculum (a biografia de um escritor são suas palavras e silêncios desde sempre), uma voz no anonimato, uma nova identidade, a outra. Assim seja, aqui neste território impossível (a literatura) no velho mundo das possibilidades rentáveis.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
POESIA | Poemas mortais
ANELITO DE OLIVEIRA -
A Frederico Barbosa
Luís Eustáquio Soares
Narlan Mattos
Jairo Faria Mendes
Joca Wolff
Jomard Muniz de Brito
e Jorge Salomão
1.
É melhor retornar à poesia
É melhor desistir de problematizações supostamente inteligentes para corresponder a demandas de pessoas supostamente inteligentes que são, no fundo, profundamente estúpidas
É melhor não problematizar ideias supostamente interessantes que são, no fundo, profundamente desinteressantes
É melhor retornar à poesia
Seja lá o que isso signifique
Apenas pelo fato de que não consiste em problematizações supostamente inteligentes de que ninguém, obviamente, tomará conhecimento
É melhor retornar à poesia
É melhor retornar ao lugar de onde parti ao lugar onde alguém desinteressado está a ver a vida
Seja lá onde for
É melhor suspender ansiedades burocráticas
É melhor não esperar por nada
Retornar apenas
À poesia
É melhor retornar e não sair mais de lá
Ficar lá
Sozinho
Em meio às coisas sem importância nenhuma
Lá dentro do mundo
Alheio aos espetáculos urbanos
2.
Às vezes alguém compra pão
Numa padaria qualquer que encontra pela frente
Ao final da tarde
Para encontrar algum sentido na vida
Ainda
Às vezes alguém
Sem fome nenhuma
Entra numa padaria qualquer
E pede 100 gramas de salgado
Sem se importar com nomes
Apenas salgados
E uma xícara de café
Para encontrar algum sentido na vida
Ainda
Mesmo que seja por alguns minutos
Só isso
3.
Quando diremos a verdade?
Quando dizer a verdade será melhor que estar empregado?
Quando diremos a verdade mesmo se por isso formos demitidos?
Quando dizer a verdade será melhor que dizer mentiras estratégicas?
Quando diremos apenas a verdade,
Não mais que a verdade,
Só a verdade?
4.
Fede maconha, mas ninguém fuma maconha na rua, na cidade, na região, no estado, no país, em lugar nenhum,
Ninguém assume que fuma maconha aqui, todos são santos, não só não fumam maconha, não usam droga nenhuma, são contra todas as drogas, a começar pela maconha, são contra a discriminalização das drogas no país, inclusive da maconha.
Fede maconha no meio da noite, mas ninguém fuma maconha por aqui, todos são santos, todos são sérios, todos são puros,
E é estranho, portanto, que esteja fedendo maconha nesta hora, que esse cheiro forte atravesse a janela e entre aqui neste quarto, enigmaticamente,
Como se nada estivesse acontecendo.
Como sempre, nada nunca acontece por aqui.
Sempre estivemos em Dogville.
5.
Nada precisa de perfeição.
Como está, está perfeito, tal como pode ser. Mas queremos beleza,
E por beleza entendemos o que somos – beleza é a imagem que cultivamos.
Tudo que não somos, que não é como somos, não nos agrada.
E passamos grande parte da vida a lutar contra o mundo.
Não é uma coisa, ou algumas, que não estão de acordo com nossa ideia de beleza.
O mundo todo é horrível aos nossos olhos.
Mesmo o que dizem que é belo, que todos admiram, acaba por nos desagradar mais
cedo ou mais tarde.
Por isso, destruímos tudo a nossa volta.
A cada olhar, a cada toque, a cada respiro, acionamos nosso ódio contra o mundo.
Não suportamos nada nem ninguém.
No fundo, o que nos dá prazer na vida é a capacidade de matar
Com que nascemos.
6.
Waly tentava escrever o mundo, que não era, nunca foi, passível de ser escrito, escrevível.
Waly ultrapassava o mundo sempre que tentava escrever o mundo – o mundo escapava, automático, nos seus olhos.
Waly, o desejante, ultrapassava o mundo
Ou era – é possível pensar – ultrapassado pelo mundo sempre que tentava, às pressas, escrever o próprio mundo.
Escrevia o caos no lugar do mundo, o outro lado do cosmos, o que estava lá, abaixo do mapa, desconhecido.
Com razão, admirava Merleau-Ponty, o mundo não é alcançável. Alias, nenhuma coisa é alcançável nesta vida – mundo é, na verdade, “mundo”.
Waly queria tirar as aspas não só do mundo, mas de todas as coisas. Waly queria desaspar tudo a sua volta, sobretudo as pessoas, como quem desossa animais, para que tudo fosse agressivamente vivaz.
Nas suas mãos vorazes, tudo urrou - palavras, imagens, sensações – por um instante mais além do que cotidianamente é, tudo deixou de ser e voltou a ser, todavia,
O quase, o suportável, a promessa.
Waly esbarrava na razão e lá se indignava e de lá falava quando tentava, na sua colérica solidão, escrever este mundo.
7.
Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver.
Nossa pretensão humana chega ao ponto de ignorar a coisa ridícula que somos, a coisa ignorante que somos, a coisa limitada que somos.
Não estamos preparados para nada.
Ninguém nos preparou para nada.
Um gesto grosseiro nos trouxe aqui. Outro gesto, igualmente grosseiro, nos levará daqui.
Se há algo que queremos evitar é a nossa própria condição humana num mundo cínico. Se há algo que queremos esquecer é o que temos sido.
Temos sido a enganação. Para o mundo. Para os outros. Para nós mesmos. Temos sido o que não somos.
A enganação se consolidou como nossa única condição de ser. Enganar, enganar-se, para ser feliz.
Uma felicidade enganosa.
A enganação é a nova feição da nossa ignorância. A enganação é a velha feição da nossa ignorância.
Ignorantes, desconhecemos nossa própria infelicidade. Ignorantes, rimos, felizes, da cara da nossa infelicidade. Ignorantes, temos vivido a infelicidade como felicidade.
Temos sido a enganação.
Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver.
Morreremos ignorantes, como temos vivido, ignorantes.
Sertão, janeiro 2011
A Frederico Barbosa
Luís Eustáquio Soares
Narlan Mattos
Jairo Faria Mendes
Joca Wolff
Jomard Muniz de Brito
e Jorge Salomão
1.
É melhor retornar à poesia
É melhor desistir de problematizações supostamente inteligentes para corresponder a demandas de pessoas supostamente inteligentes que são, no fundo, profundamente estúpidas
É melhor não problematizar ideias supostamente interessantes que são, no fundo, profundamente desinteressantes
É melhor retornar à poesia
Seja lá o que isso signifique
Apenas pelo fato de que não consiste em problematizações supostamente inteligentes de que ninguém, obviamente, tomará conhecimento
É melhor retornar à poesia
É melhor retornar ao lugar de onde parti ao lugar onde alguém desinteressado está a ver a vida
Seja lá onde for
É melhor suspender ansiedades burocráticas
É melhor não esperar por nada
Retornar apenas
À poesia
É melhor retornar e não sair mais de lá
Ficar lá
Sozinho
Em meio às coisas sem importância nenhuma
Lá dentro do mundo
Alheio aos espetáculos urbanos
2.
Às vezes alguém compra pão
Numa padaria qualquer que encontra pela frente
Ao final da tarde
Para encontrar algum sentido na vida
Ainda
Às vezes alguém
Sem fome nenhuma
Entra numa padaria qualquer
E pede 100 gramas de salgado
Sem se importar com nomes
Apenas salgados
E uma xícara de café
Para encontrar algum sentido na vida
Ainda
Mesmo que seja por alguns minutos
Só isso
3.
Quando diremos a verdade?
Quando dizer a verdade será melhor que estar empregado?
Quando diremos a verdade mesmo se por isso formos demitidos?
Quando dizer a verdade será melhor que dizer mentiras estratégicas?
Quando diremos apenas a verdade,
Não mais que a verdade,
Só a verdade?
4.
Fede maconha, mas ninguém fuma maconha na rua, na cidade, na região, no estado, no país, em lugar nenhum,
Ninguém assume que fuma maconha aqui, todos são santos, não só não fumam maconha, não usam droga nenhuma, são contra todas as drogas, a começar pela maconha, são contra a discriminalização das drogas no país, inclusive da maconha.
Fede maconha no meio da noite, mas ninguém fuma maconha por aqui, todos são santos, todos são sérios, todos são puros,
E é estranho, portanto, que esteja fedendo maconha nesta hora, que esse cheiro forte atravesse a janela e entre aqui neste quarto, enigmaticamente,
Como se nada estivesse acontecendo.
Como sempre, nada nunca acontece por aqui.
Sempre estivemos em Dogville.
5.
Nada precisa de perfeição.
Como está, está perfeito, tal como pode ser. Mas queremos beleza,
E por beleza entendemos o que somos – beleza é a imagem que cultivamos.
Tudo que não somos, que não é como somos, não nos agrada.
E passamos grande parte da vida a lutar contra o mundo.
Não é uma coisa, ou algumas, que não estão de acordo com nossa ideia de beleza.
O mundo todo é horrível aos nossos olhos.
Mesmo o que dizem que é belo, que todos admiram, acaba por nos desagradar mais
cedo ou mais tarde.
Por isso, destruímos tudo a nossa volta.
A cada olhar, a cada toque, a cada respiro, acionamos nosso ódio contra o mundo.
Não suportamos nada nem ninguém.
No fundo, o que nos dá prazer na vida é a capacidade de matar
Com que nascemos.
6.
Waly tentava escrever o mundo, que não era, nunca foi, passível de ser escrito, escrevível.
Waly ultrapassava o mundo sempre que tentava escrever o mundo – o mundo escapava, automático, nos seus olhos.
Waly, o desejante, ultrapassava o mundo
Ou era – é possível pensar – ultrapassado pelo mundo sempre que tentava, às pressas, escrever o próprio mundo.
Escrevia o caos no lugar do mundo, o outro lado do cosmos, o que estava lá, abaixo do mapa, desconhecido.
Com razão, admirava Merleau-Ponty, o mundo não é alcançável. Alias, nenhuma coisa é alcançável nesta vida – mundo é, na verdade, “mundo”.
Waly queria tirar as aspas não só do mundo, mas de todas as coisas. Waly queria desaspar tudo a sua volta, sobretudo as pessoas, como quem desossa animais, para que tudo fosse agressivamente vivaz.
Nas suas mãos vorazes, tudo urrou - palavras, imagens, sensações – por um instante mais além do que cotidianamente é, tudo deixou de ser e voltou a ser, todavia,
O quase, o suportável, a promessa.
Waly esbarrava na razão e lá se indignava e de lá falava quando tentava, na sua colérica solidão, escrever este mundo.
7.
Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver.
Nossa pretensão humana chega ao ponto de ignorar a coisa ridícula que somos, a coisa ignorante que somos, a coisa limitada que somos.
Não estamos preparados para nada.
Ninguém nos preparou para nada.
Um gesto grosseiro nos trouxe aqui. Outro gesto, igualmente grosseiro, nos levará daqui.
Se há algo que queremos evitar é a nossa própria condição humana num mundo cínico. Se há algo que queremos esquecer é o que temos sido.
Temos sido a enganação. Para o mundo. Para os outros. Para nós mesmos. Temos sido o que não somos.
A enganação se consolidou como nossa única condição de ser. Enganar, enganar-se, para ser feliz.
Uma felicidade enganosa.
A enganação é a nova feição da nossa ignorância. A enganação é a velha feição da nossa ignorância.
Ignorantes, desconhecemos nossa própria infelicidade. Ignorantes, rimos, felizes, da cara da nossa infelicidade. Ignorantes, temos vivido a infelicidade como felicidade.
Temos sido a enganação.
Não estamos preparados para morrer, tampouco para viver.
Morreremos ignorantes, como temos vivido, ignorantes.
Sertão, janeiro 2011
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