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domingo, 14 de junho de 2009

LITERATURA | Lama revisited

ANELITO DE OLIVEIRA - Em 2000 – quase dez anos já! –, publiquei o poema-livro Lama pela Orobó Edições, lançado numa noite de chuva (tudo a ver) em Belo Horizonte, na livraria Scriptum, então point da poesia. Era um trabalho que estava “pronto” desde 1997, com o qual havia ficado envolvido desde 1994. Quanta estranheza acabou suscitando este fato! Quatro anos para escrever isso?! Quatro anos para “desescrever” isso, eu me dizia compreensivamente. Se fosse um suposto romance, com suas duas mil páginas de banalidades supostamente interessantes, ninguém estranharia, claro. Mas, a exemplo de tantas figuras ilustres – Mallarmé, Rubião -, não se tratava de escrever apenas mais uma coisa literária. Queria – sempre o desejo! – ir além, para além da convenção. Aonde cheguei com isso? Até agora não sei, tanto que continuo envolvido com esse texto, sobretudo com questões que lhe dizem respeito. Por exemplo, a relação entre dizível e visível em poesia, como adequar essas duas dimensões, como “resolver” a inadequação fundamental entre essas duas dimensões. Há alguns anos, fiz uns reparos na primeira edição, chegando a esta feição – que aqui disponibilizo -, em vias de sair em papel, talvez agora no segundo semestre ainda ou no ano que vem. Lama é apenas um problema de poesia, cuja dignidade passa, necessariamente, pelas circunstâncias individuais, sociais e estéticas em que foi operacionalizado.







LAMA


2ª edição, revista e modificada








“Caminho dia e noite
como um parque desolado”


Vicente Huidobro











A José Benedito Rocha (in memoriam)
e Valdeir do Rosário,
fora da literatura, no meio da vida







Neste tête-à-tête comigo
Paisagens num abismo
Sóis rachados na janela
Paraísos enforcados
Por todo lado nuvens
E nuvens dormem nuas
Pássaros inutilizados
Na aragem uma chuva
Petrificada rumor de
Ossos secos cantando
Dentro de mim roendo
O tempo mais fundo
Uma coisa contra tudo
E outra abaixo dela o
Bate estrondo quedas
Corpos duros atirados
Num muro áspero de
Cimento e silêncio tal
Qual pobreza o negro
Contra o azul um soco
A noite em fúria nas
Entranhas do dia no
Meio das coxas desta
Tarde partindo a luz
Que se parte por fora
Por dentro quebrando
Vidros de pensamentos
Sobre o chão na lama
Do chão e na sua alma
O furor aceso as feridas
Chuva a rolar sobre a
Laje ideias saindo das
Coisas para uma noite
Nascendo perdida crua
E presa entre paredes
Água afogando todos
Os sentidos envolvendo
Tudo como uma luva
Esquecida no canto do
Passado nas gargantas
Escuras dos cantos e
Cantos e olhos perto de
Baratas as mãos entre
Os dentes inutilizadas
O pênis arrefecido no
Perfume do sono e ela
A boca costurada como
Uma estrela surda nos
Braços abstratos leves
E vis e brancos neves
Nevadas pés flutuando
Cabides livros pedras e
Penas mudos no quintal
Um tempo quebrado
Volta tudo se reparte
Novos cacos para
Velhas partes de um
Corpo que arde num
Tecido de cicatrizes
Tecer palavras como
Quem esquece de tudo
Caminhando em meio
A suaves folhagens de
Um parque fundo mas
Tão vazio de tudo ali
A sorver flora e fauna
Os ouvidos escondidos
Dentro do bolso imundo
Os olhos soterrados no
Submundo da alma o
Nariz morto nas verdes
Velhas águas de uma
Gripe não sei se o céu
Merece o azul o sono
Inventa outra arte os
Dedos cavam neste ir
De deserto e mar sem
Nada além de sombras
Do aquém não sei se
Ao fim haverá sol para
Estar sob esquecer e
Sair abrir uma porta
Olores de outra música
Nesta sesta aberta entre
Árvores vento de luzes
Brisas de filme mudo
Gestos palavras livres
No ar tudo vai volta
Relógio disparado e
Ouço o que é a morte
Com sua frieza cacto
Toco um dedo ali na
Pestana dessa mulher
Amarela lago de nada
Fonte de lama noites
Tristes diviso fogos
Explodem nos meus
Ombros
Pedaços de tempos
Despedaçados mãos
De crianças abertas
Vozes esmagadas na
Praça de cansaço e
Tristeza suspiros de
Sufoco abandonos na
Calçada choque nos
Olhos bêbados ela a
Morte cresce aquela
Tarde retorna furada
Jorrando sangue eu e
Ela andando no meio
Da chuva a chover
Penetrar um espelho
Dilacerado onde um
Olho derrapa e corta
O corpo resiste a ver
Olhando um tempo e
Atrás dele o desvisto
Pergunta que se faz
Resposta que não vem
Uma lança se lança
Às costas do sentido
Ponto de convergência
Enigma depois atrito
Fresta para o proibido
O sono crescendo para
Dentro do pesadelo e
O corpo lento agora
Que a cabeça quase
Dormente pensa pura
Rolando lúcida sobre
O tempo entre sons a
Se soltar andando cega
Como bois de silêncio
Um olho está dizendo
Paisagens ouvidas ao
Ir através da neblina
Parece que abro mais
Além do aberto o olho
Da morte com o pé que
Piso
Em cada dia que passo
Sob a curva da noite
Que todo dia realiza
Nas costas das coisas
Sinto flácido levando
Nas mãos algo que
Deve ser a morte com
Sua sombra de aço por
Baixo de todos os sons
E letras girando sobre
O papel resisto indo
Para dentro do abismo
Os tempos voltam uma
Nau ao longe num mar
Nervoso no centro de
Mim esta voz rasgando
Lâmina rouca nesses
Dias de alegria gritos
Bandeiras e apitos e
O oco da vida rindo
Agora a tarde caindo
Inútil contra a tarde
Folha triturada por um
Inseto azul começar a
Morrer lentamente ler
Gota deslizando na telha
Vozes tardes voando
Quando nada sangrava
Eles faziam festas na
Tela inocentes da vida
Lâmpada murchando
Sol só não sonha céu
Sentido não sente ou
Os ponteiros seguem
Loucos estando ébrios
Um eu que corra sobre
O caminho onde andava
Naquela tarde comigo
Quando a noite cresceu
O sol estava parado ali
Vigiando como um sinal
E eu passou mudo como
Um farol
O que já vi outrora
Agora uma dor desmancha
A festa o filme o falso
Todas as imagens ilusórias
E ressoa renitente apenas
Esta voz a apodrecer como
Lençol velho ao sol de um
Lugar cortante
E este tempo quando o
Corpo fumaça rolando
Incessantemente vapor
Qualquer dentro deste
Quarto essa tarde ou
Naquela ou dentro de
Outra distante de mim
Se deitando entre as
Flores amarelas e o
Muro e o lixo e o ouro
E a usura de tudo numa
Cidade enquanto as
Coisas ardem e morrem
Entre as pessoas e a
Roupa das pessoas
Comigo e com elas nós
Sem cores perdidos e
Perdendo-se a perder
De vista gotas sopros
Estrelas encardidas
No meio da noite sem
Ninguém e todos mas
Sem ninguém e pobres
Soltos nas ruas bares
E becos encharcados
De cerveja babando
Desilusão tragando e
Cheirando cagando na
Privada suja urinando
Caminhando sem rumo
Pelas ruas invernadas
Frutos de nada apenas
A sombra fria a sombra
Silenciosa de silêncio
Que nunca mais vai ser
Vida

Um comentário:

  1. Anelito de Oliveira, gostei do que li aqui, a sua preocupação com a literatura , contagia com magia diante do que observei, meus cumprimentos, um belíssimo momento cultural, que somante vem a somar ao mundo das letras, com admiração,
    Efigênia Coutinho
    Escritora

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