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quarta-feira, 24 de junho de 2009

UNIVERSIDADE | Janine e a USP

ANELITO DE OLIVEIRA - Paul Valéry tinha um certo desdém por aqueles que se davam ao trabalho de formular perguntas para as quais, no seu entendimento, já tinham resposta. Tipo de situação que se apresenta no artigo de Renato Janine Ribeiro sobre a crise na USP (“Que universidade é essa?”, Folha de S. Paulo, Mais!, 21 de junho 2009). Ora, na pergunta do seu título já se revela a resposta: é a universidade distante da realidade comum, experienciada diariamente pela maioria das pessoas. “Essa” - demonstrativo para coisas, seres ou situações distantes - é a universidade pública brasileira em geral, estadual ou federal. O modo de ser universidade que a USP expõe neste momento não é patrimônio de São Paulo, mas do país. Um modo complicado, que está a exigir, ano após ano, descomplicação, compreensão, para que sobre ele se possa atuar de maneira adequada. Óbvio que, para resolver um problema, é preciso enfrentá-lo adequadamente, abrindo mão de soluções pré-determinadas.
A crise na USP tem ensejado contribuições expressivas para esse enfrentamento. A de Janine não é mais uma, mas uma outra contribuição bastante especial em virtude da sua relação direta com a Capes, órgão responsável por parte da regulação da pesquisa universitária no país. No seu artigo, falam o professor da USP e o ex-diretor de avaliação da Capes no período de 2004/08. Disso, sobretudo, decorre uma espécie de “harmonia pré-estabelecida” na argumentação, que acaba por relativizar os dados objetivos da questão. O primeiro desses dados é que, se a “USP é a melhor universidade da América do Sul”, como Janine abre seu artigo afirmando, não há por que negar a existência efetiva de um “povo USP”, formado por seus professores, pesquisadores, alunos e servidores técnico-administrativos. É esse “povo” que vem, ao longo de tantos anos, pesquisando, escrevendo, editando, ministrando aulas, aprendendo, mantendo a burocracia, cuidando do patrimônio edificado, vigiando, cozinhando, tomando conta do lixo etc.
A USP é obra do “povo USP”, assim como as outras universidades públicas são obras dos seus respectivos “povos”. Ao “povo UFMG”, cabe o reconhecimento pelo que aquela universidade é, ao “povo UNB” também e assim sucessivamente. Não é questão de mérito, de “meritocracia”, mas de reconhecimento, daquilo que implica uma problemática afim da democracia tanto quanto da epistemologia: não há democracia nem conhecimento sem reconhecimento também do que está escondido, invisibilizado, na história: a “cicatriz” de Ulisses no célebre texto de Auerbach. Dizer que “o povo que existe é o paulista, que sustenta a USP” é bastante simpático, desperta a admiração daqueles que, situados nos diversos degraus da pirâmide social, não cessam de acusar as universidades públicas de elitistas, burguesas e excludentes. Mas, na verdade, esse tipo de colocação constitui um lugar comum, naturalmente demagógico, sobre instituições públicas nos chamados Estados de Direito Democráticos. Rigorosamente, acaba por dissolver a especificidade na generalidade, o concreto na abstração, simplificando o que deve ser enfrentado em sua complexidade.
A existência do “povo USP” não pode ser pensada, ao contrário do que Janine parece sugerir, a partir de uma formal recorrência a palavras com “fumos” de conceito que nos foram legadas politicamente, mediante relações de poder, pelos gregos e romanos antigos. O que o “povo USP” é, bem como o que são os demais “povos” das outras universidades públicas brasileiras, deve ser compreendido a partir da história social brasileira, pois resulta do corpo-a-corpo com essa história, não com outra. Esses “povos” exibem, como não poderia deixar de ser, um sentido próprio de povo, de democracia, poder e autoridade. Seu sentido de povo, por exemplo, não é exclusivista: o “povo USP”, assim como os “povos” das outras universidades públicas, não se concebe em relação de oposição com os paulistas, mas antes de complementação. Uma polarização entre dois povos, como está clara na reflexão de Janine, tem enorme valor para aqueles que, inimigos da universidade pública, querem desqualificá-la, valendo-se, antes de mais nada, do expediente do estigma, do rótulo, para dotar o “desafeto” de uma dimensão exótica.
Como povo paulista, o “povo USP”, ao contrário do que Janine absurdamente afirma, os servidores, docentes e alunos, sobretudo estes, não recebem nada de graça. Pagam impostos, contribuem com a sua parte para a efetivação, na cotidianidade, do que constitui o “comum”, para lembrar Hannah Arendt, da comunidade. Homens e mulheres, ricos e pobres, pretos, brancos etc na USP são, evidentemente, idênticos aos demais paulistas em face do “comum”, uma identificação que se amplia como diferenciação altamente legítima: São Paulo torna possível o “povo USP”. É parte dessa diferenciação, sem dúvida, o mal-estar que se revela em forma de crise a cada outono na USP. E que é positivo, legítimo, à medida que se trata de exposição daquele “desejo” que, como o próprio Renato Janine Ribeiro postulou num dos seus ensaios, faz parte da natureza da democracia: desejo de participar das decisões, de ser visto e ouvido, de ser sujeito, enfim, das ações que concernem a toda a comunidade. Que mal há nisso?
Sim, para aqueles que são autoridades na USP e nas demais universidades públicas brasileiras, e que não têm tempo para cuidar do sentido estético encerrado na “auctoritas”, o mal reside exatamente no desejo de democracia, de forma que isso, esse desejo, não é desejo pelo desejo, manifestação com um fim em si mesmo, baderna. Trata-se, para as autoridades, de desejo de poder, que é denúncia de que, segundo o próprio “povo”, falta poder nas mãos do “povo” e, por outro lado, há muito poder nas mãos da cúpula, das autoridades. Acionada, a polícia chega para caracterizar o tipo de poder de que as autoridades se veem investidas: poder real, mecanismo de dominação. Para Janine, autoridade, enquanto “auctoritas”, não se confunde com poder, enquanto “kratos”, o que a realidade nua e crua acaba por contestar, mais uma vez, numa universidade pública brasileira.
A Reitoria da USP, valendo-se da colaboração da polícia, exerce um poder autoritário, a exemplo do que fazem as demais instituições tidas como democráticas fora da universidade (como falar em diferença entre poderes públicos no país?), com a mesma finalidade: conter o desejo legítimo de uma coletividade numa democracia. O “povo USP”, então, deveria suportar o autoritarismo, o processo de eleição indireta para Reitor e outras questões que o oprimem porque a Universidade, segundo Janine, “é um meio para certos fins que a nossa sociedade consensuou democraticamente”, porque a qualidade científica poderá ser ameaçada em função de uma “redução da autoridade ao poder”, porque o mais importante é a autonomia da Universidade etc etc. Ou seja, para Janine, é preferível deixar tudo essencialmente como está porque o que importa mesmo é a essência. Impossibilidade da democracia? Não me lembro desse consenso na sociedade brasileira.







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