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segunda-feira, 27 de abril de 2009

MANCHA | Movimento-Amilcar

ANELITO DE OLIVEIRA - De repente, Amilcar de Castro (1920/2002). A lembrança desse ícone de uma "pensée sauvage" na produção artística dos anos 50 para cá. Não só brasileira, mas geral. De um específico - territorial, cultural, econômico etc - a uma desespecificação. Outra margem, outra mancha, a mancha da margem. Em face da sua obra, é sempre o mesmo soco: não basta estar, é preciso ser. Estar, no sentido de uma consciência sobre a própria localização, é uma condição-impulso. Como tal, insuficiente. Ser é o próprio impulso. Há, sem dúvida, uma ontologia em Amilcar. Com finalidade poética, não filosófica. Claro. Escuro. Onde o sujeito de um conhecimento em Amilcar se localiza é lá - no escuro. Lá, naquela privação de luz, ele está. Não sendo. Desejoso de chegar a ser. Daí o movimento. Para fora. Para dentro. Para o meio. Movimento bruto que racha a matéria. O movimento de uma verdade. Movimento bruto de um puro ser. O movimento-Amilcar para lembrar aqui (no fragmento da imagem no cabeçalho, gravura da última fase do artista mineiro) um fato: os 50 anos do "Manifesto Neoconcreto" (1959).

sexta-feira, 24 de abril de 2009

LITERATURA | Poema inédito

ANELITO DE OLIVEIRA - O que está em questão, há muito, é a própria possibilidade da poesia num mundo tão desgraçado. Os poetas podem fingir que não – e frequentemente o fazemos -, mas é esta a questão. Clara para os “construtores” e “destruidores” da modernidade – um Rilke, um Al Berto. A possibilidade da poesia, não do poema, a possibilidade do todo de uma experiência, não apenas de uma parte. O todo é impossível num mundo partido em partes amargamente desiguais. Para inscrever a impossibilidade desse todo como resultante de uma amarga desigualdade, esta balada sobre “o mais cruel dos meses” do Eliot de “The waste land”.


Balada de abril


1



Tudo nos faltará. Sempre.
Sempre que tentarmos encontrar.
Sempre que sairmos a procurar pelo mundo.
Tudo nos faltará quando começarmos a perguntar.


Quando pisarmos o pé na porta de entrada da razão, tudo nos
Faltará. Como sempre nos faltou. Como desde sempre nos faltou
Depois de uma noite de chuva. Logo que acordávamos depois daquelas
Longas noites de chuva. Não havia nada mais no mundo. Tudo tinha acabado.
Olhávamos e não encontrávamos senão a ausência da ação encantadora, do que se
Convertia em encantamento. Tudo nos faltava, tudo nos falta agora ainda, tudo nos falt
Ará sempre que nos voltarmos para nós mesmos. Sempre que buscarmos em nós m
Esmos o que sentimos que perdemos. Sempre que formos nós mesmos o caminho Pa
Ra chegar ao que nos falta. Sempre que nos enfrentarmos como referência
Do mundo.


É o próprio mundo que nos faltará nesse instante. Tudo nos
Faltará sempre que formos o contrário do mundo. Enquanto nos
Quisermos como o contrário do mundo. Enquanto estivermos
Fora ou dentro do mundo. Tudo nos faltará como uma
Espécie de tragédia da razão. Tudo nos faltará
Como sensação de abismo. Tudo nos faltará
Como desconhecimento do que somos.
Tudo nos faltará e nos matará
Sempre que a vida não
For suficiente.
Sempre.

2



Enquanto os carros passam, escorado num pilar que ostenta, lá em cima, uma placa de pare, hesitando entre duas possibilidades igualmente relevantes -
Continuar ou interromper,
Buscando solidariedade numa coisa, como quem já não sabe onde está, de quê mesmo se trata, de quê tudo é feito agora.
Agora que a tarde desvanece, agora que a noite acontece.
Não, não basta que tudo isso seja tempo, tampouco bastaria, ou basta já, que tudo isso seja espaço.
Explicações, não bastam.

Continuar ou interromper a caminhada vai-se tornando uma questão. Escuta apenas o escarcéu desta questão, apenas te envolve a solidão das questões, o embaraço.
O embaraço cinza.
Alguém não falta aqui para comunicar o que está em jogo. Comunicar seria abrir um jogo no mesmo campo.
Estar no asfalto é parte da questão, do embaraço que perfaz a questão, ali de onde é preciso sair.
Os carros passam. Rápidos, urgentes, vivazes.

Continuar ou interromper não vêm ao caso para mundos diferentes. Não é preciso viver tanto para saber disso, naturalmente. Mas certamente foi preciso viver enquanto para chegar a isso.
Tanto e enquanto. Talvez eu me aproxime da questão que ali me embaraçava pensando em quantidade e qualidade, tentando apreender o furta-cor dessa cor correndo – enquanto estou passando:
Verde, verde-claro, tenro, mãe, verde simples, raso, verde pobre, terno, verde longe, longe, longe, mãe –


3

Longe como o passado, que, então, vem ao caso como ausência, que, então, desperta o eu como fonte de sentido
O eu que não está mais ali, que agora está aqui, escondido neste que se apresenta desolado, isolado neste que não mais não mais
Busca abrigo
Este parado, escorado no pilar que grita pare, não busca nenhum abrigo, não acredita em abrigo, sabe que ninguém o abrigará, que já não se abriga ninguém no mundo

A alguém, jogando, diria a este respeito:
Todos obrigam, tudo é obrigação.
Alguém é desnecessário para que a linguagem continue sendo possível. Basta apenas este eu como aquele pobre verdejar, sobretudo isso, pela parede da casa à beira da avenida aparecendo através da janela aberta


Os carros passam.
Os carros passarão.
Tudo isso que é presente
precisa passar.
O presente passageiro
precisa passar.
Para que nos esqueçamos,
para que nos esqueçamos.
É melhor que nos esqueçamos.
Todos: eu, você, o mundo.
Os carros passam.
Os carros passarão.



Montes Claros, 04 de abril de 2009