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sexta-feira, 7 de maio de 2010

RESENHA | Vontade de clareza

ANELITO DE OLIVEIRA - Lançado no final do ano passado em edição da Nankin, A casa deles, coletânea de contos de Ana Paula Pacheco, marca a estreia na ficção de uma autora que já publicou em 2006, pela mesma editora, o ensaio Lugar do mito, sobre Guimarães Rosa. Seus contos vinham aparecendo em revistas literárias nos últimos anos. Foram cultivados pacientemente até tomarem a forma que, pela precisão de linguagem e pelo equilíbrio da voz narrativa que ostentam, parece ser realmente deles, não do gênero literário, dos leitores, do sistema, da convenção vigente, enfim.
O sentido de pertencimento que se enuncia no título pinçado no Kafka d´A construção e explicitado em epígrafe (“Aqui não importa que se esteja na própria casa, pois o fato é que se está na casa deles”) é relevante para a compreensão desse livro repleto de sutilezas, que, no fundo, muito pouco tem a ver com a prosa mais celebrada atualmente, sempre com sabor de novela da globo e cinema americano. Trata-se de abordar, n´A casa deles, o que está fora do domínio, digamos, do narrador, aquilo – sensações, condições, situações – que é de outrem, que é “deles”, e que o narrador quer apenas perceber de perto, em detalhe.
Para tanto, esse narrador se aproxima cuidadosamente dos seus temas, como se deles nada conhecesse, numa atitude de recusa aos pré-juízos inerentes ao “ser social” (Lukács), as senhas comuns, afinal, da sociabilidade. A cada passo, revelam-se, de modo natural, dimensões significativas da vida cotidiana no mundo urbano: crueldade (“Água”, “Cães e gatos”, “Supergato”, “A 20.000 pés”), solidão (“A outra avó”, “Benedita Pingas”), amor (“Ele”, “Medida”), autoconhecimento (“Centro”, “15 x 15”), morte (“Copos brancos”, “Elevador”, “Copos brancos II”).
Obviamente construída - e desprovida de ímpetos de mascaramento desta fatalidade moderna -, a naturalidade da linguagem nos permite uma compreensão desinteressada daquilo que estamos acostumados a ver a partir de um único ângulo, sempre de modo “familiar”, pejorativo, empobrecedor. Não vemos, por exemplo, a viúva de um Brigadeiro do último período militar no país, tema do sarcástico “A 20.000 pés”, pelo ângulo de depositária de uma memória outra sobre o Brasil. Tampouco vemos uma mendiga, tema do lírico “Benedita Pingas”, pelo ângulo da afetividade, como sujeito que teve lá suas felizes experiências amorosas.
Ver de novo parece, de fato, ser um projeto narrativo nesse livro atravessado por uma vontade de clareza sensível, digamos, diretamente vinculado a uma tradição da objetividade na prosa brasileira que remonta a Machado, passa por Graciliano e Dyonélio, sofistica-se em certo Rosa, certa Clarice e certa Lygia até encontrar em Raduan Nassar, Zulmira Ribeiro Tavares e Modesto Carone, nas últimas décadas, seus principais nomes. Ver de novo, não para “corrigir” o já visto, mas para despertar dimensões adormecidas do visível, procedimento de que são exemplos os contos “Duas negras” e “Jardim”, duas pequenas obras primas do trabalho narrativo hoje.
Tema e estilo aproximam as duas narrativas: exploram relações familiares de modo reflexivo, colocando em relevo elementos que tornam essas relações relevantes para a compreensão da condição humana, que contribuem para que a “casa deles” se transfigure em casa nossa também, constitua uma imagem da casa dos humanos em geral, do mundo. Em “Duas negras”, esse elemento é a devoção de duas mulheres ao trabalho doméstico; em “Jardim”, é a paradoxal intimidade e repulsa na relação entre pai e filho, o drama, em clave pós-dramática, da alteridade.
Vendo de novo, pela lente de Ana Paula Pacheco, temas tão “batidos”, conseguimos perceber, sobretudo, a produtividade do “estranho”, no sentido freudiano do “unheimilich”, nas relações familiares, como aquilo que não se sabe, o indefinido, atua decisivamente sobre a identidade do sujeito, mantendo-o harmonizado consigo mesmo. Tanto em “Duas negras” quanto em “Jardim”, encontramos um narrador que transita com admirável lucidez pelo labirinto do sentido e do aparente nonsense, cônscio de que luz e sombra, realidade e fantasia, são partes indissociáveis do real, que, por isso mesmo, não poderia deixar de ser complexo.
Na contramão daquele “narrador enganoso” postulado por John Gledson a propósito de Machado, encontramos nesses dois contos, como ápice de um processo que permeia a coletânea, um narrador que se esforça para não se enganar e, consequentemente, não estabelecer uma relação cínica, irresponsável, aética, com seu leitor. “Dizem que um narrador que vê com os próprios olhos”, lemos em “Duas negras”, “tem mais direito às suas dúvidas. Em determinadas situações, penso ser o mais indicado. Para contar uma história entre duas mães, não seria dispensável a isenção”. E, assim, podemos ver a questão central da formação sócio-histórica brasileira, que é a racial, para além dos estereótipos corriqueiros.
Sem sobressaltos, como quem não quer nada, o narrador de “Jardim” enuncia a dificuldade maior de, narrando, não se enganar, recorrendo, para tanto, à poesia: “Ele combinava com aquilo tudo porque sua figura cinzenta trazia uma certa leveza, um traço rápido porém vigoroso, sem violência ao quadro em volta. Algo da poesia do engano, como o que falei sobre o concreto ao ar livre, coberto de verde. Mas poesia tem limites, não posso deixar que me traiam por causa dela”. A questão, para o narrador de Ana Paula Pacheco, não é apenas narrar, mas narrar o que realmente conta, significa e acrescenta em meio a um mundo de signos enganosos.



Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 01 de maio de 2010.