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domingo, 25 de dezembro de 2011

APROXIMAÇÃO | Derek Walcott

LOVE AFTER LOVE


The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.


Derek Walcott




AMOR APÓS AMOR



Virá o tempo
Quando, exaltado,
Você cumprimentará a si mesmo aparecendo
Na sua própria porta, diante do seu próprio espelho,
E cada um dará um sorriso de boas vindas,

Dirá senta aqui. Coma.
Você amará de novo o estranho que você mesmo foi.
Vinho. Pão. Seu coração regressará novamente
A si mesmo, ao estranho que tem te amado

Por toda a vida, mas que você tem ignorado
Em função de outro, que conhece você de cor.
Livre-se das cartas de amor na sua estante,

Das fotografias, das memórias desesperadas,
Apague sua imagem no espelho.
Senta. Tem festa na sua vida.



Aproximação Anelito de Oliveira




Traduzir é tarefa angustiante. O que se diz originalmente numa língua não são palavras, mas uma relação íntima com o real. Palavras são índices dessa relação, mas não a relação mesma. Na poesia, esse processo fica mais claro. Daí a convicção de muitos - minha, também - de que poesia não é traduzível. Volta e meia, todavia, vem a vontade de fazer pelo menos uma aproximação entre um código e outro, entre duas margens. Tradução como aproximação. Para além de querelas teóricas, este poema de Derek Walcott escreve difusamente o que experienciamos, sobretudo, nesta época do ano.
| ANELITO DE OLIVEIRA

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Clarão 15

Estamos em guerra com o mundo desde o início, até mesmo os mais apaziguados, ou, principalmente, os mais apaziguados, sempre em guerra íntima com o mundo, dissimulando seus conflitos para que ninguém fique sabendo, até a hora da explosão final, falência total dos órgãos, perda total de tudo. Lembro-me, após recordar o extraordinário trovador paraibano, do poeta Waly Salomão gritando num evento, poucos meses antes de morrer: que paz o quê? Poesia é guerra! O slogan do evento era "poetas pela paz" - yorubárabebaiano Waly. A guerra, a desarmonia, com o mundo é uma forma de se resistir a converter-se em essência do mundo, em ser o mundo estabelecido pelos donos do mundo. Desde que nos entendemos por gente, estamos perdendo essa guerra, caindo e levantando e voltando a cair até o dia em que o mundo nos impõe a pena capital - nossa dignidade consiste em não entregar os pontos. | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 14

Há um descompasso, uma desarmonia, entre o que realmente somos e o que o mundo realmente é. Não somos o que o mundo nos obriga a ser na cotidianidade, nem o mundo é o que desejamos que ele seja. Desde que nos entendemos por gente... - como esquecer desta frase? Marca dois momentos: um em que não nos entendíamos por gente, outro em que passamos a nos entender por gente. Diz ainda que houve um tempo em que não éramos gente, tempo sobre o qual não temos o que dizer, tempo esquecido. O que éramos, então, quando não sabíamos que éramos gente? Ainda não tínhamos chegado ao mundo, ainda não tínhamos aceitado o acordo - prescrito pelos donos do mundo - para se estar no mundo. Desde que nos entendemos por gente, estamos numa profunda desarmonia com o mundo. Uma voz apenas como exemplo, e basta: "vontade de viver mais/ em paz com o mundo e comigo" (Chico César). | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 13

Chegar ao mundo - chega-se ao mundo. Dizer isso pressupõe que não se está naturalmente no mundo, que está-se distanciado do mundo, sem que se saiba, também, onde realmente está-se. Pode-se discorrer sobre isso, claro, recorrendo a toda a tradição metafísica, e tudo resultará apenas num insolúvel problema metafísico. Nossa perturbação, minha, é mais material que essencial, deriva do estar situado para além da essência, como pensava Emmanuel Lévinas (Autrement qu´être ou au-delà de l´essence), diversamente sendo. Chegar ao mundo é participar da essência do mundo, compartilhar dessa essência, converter-se, no limite, à essência-mundo. Essa essência, definida antes da nossa chegada ao mundo, aprioristicamente, antes da nossa experiência do mundo, portanto, é a negação do que realmente somos. | ANELITO DE OLIVEIRA

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

POESIA | Cinco assombros

ANELITO DE OLIVEIRA -


Escritos em momentos diferentes, de meados dos anos 1990 a meados da primeira década deste novo século, estes poemas abaixo, que vejo sob o signo do assombro, foram publicados na Antologia de Poesia Afrobrasileira, organizada por Zilá Bernd e editada pela Mazza Edições neste fim de 2011.




MEIO-FIO

Negros
Como bichos

Uns passam
E olham

Uns olham
E cospem

Uns sentem
E correm

Negros
Como lixos



A MÃO


A mão que escreve é
A mesma, escrava,
Que apodrece, que
Me afaga, mas que
Também me esmaga,
Já não é uma mão,
Mas, sim, minha mãe,
Esta mão que escreve,
Escava e me enegrece.



A PORTA

Bato na porta
De mim mesmo
Bato, urro
Esmurro o silêncio
Não estou em casa
Não tenho estado
Aqui, nem mesmo
Sei se ainda moro
Aqui, tampouco há
Quanto tempo saí,
Se é que saí



ALÉM DA PELE


quem
mais
(além da pele)
fala comigo perto de
você
você aquém do outro
e fora do todo
ouvido
eu osso de sons
sendo
no lixo a sós entre
escombros
sem
nem mesmo
nem nunca
o céu
esta carne rude e
incolor
esta coisa
quem
onde
quando até o corpo
é terra
pode vir
a ser
por trás da fumaça
do carvão
dentro do cru
contido
crítico
coração
?





BRANCURA NEGRA


Estou branco
Muito mais branco
Profundamente mais branco
Mais
Muito mais
Amargamente mais branco
Que esta folha de papel tão branca sobre a mesa
A emitir incansavelmente seus brancos
E me lembrar que estou branco
Como a tristeza mais negra
Da sua brancura tão branca
Neste mundo
A esta hora da tarde
De mais nada

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

ENSAIO | Evocação de "Evocações"

ANELITO DE OLIVEIRA - Livro empenhado não só em expor questões de vária ordem – histórica, social, estética, existencial, ética, religiosa etc -, mas também em propor veios operatórios para essas questões, Evocações, com sua feição hibrida de testamento de um poeta e inventário de um tempo, recorre a Edgar Allan Poe para enunciar, claramente, uma espécie de método negativo de apreensão da qualidade da alma.
Em “Ídolo mau”, que se abre com epígrafe do espelho Villier de L´Isle Adam, chega-se à ideia do bem a partir de um tensionamento da ideia do mal, que não constituiriam dimensões pré-determinadas, pré-estabelecidas, aprioristicamente fechadas, mas dimensões moventes, passíveis de alteração, abertas ao porvir.
Há, portanto, um binarismo – bem e mal – a estruturar o texto, mas que tem valor apenas elementar, enquanto índice, pode-se dizer, de mundanidade, de relação com o mundo em geral, de tal forma que também se pode dizer que esse binarismo é parte da proposição do método negativo de apreensão da qualidade da alma: sob a égide da racionalidade binária ocidental, lançam-se os dados da questão.
Também a moralidade, que se desdobra quase que naturalmente da recorrência ao binarismo bem e mal, exerce ali, na operacionalização da questão, uma função elementar, uma vez que não é de “mores”, de costume, que se trata, mas, rigorosamente, de “ethos”, de interioridade da ação, uma vez que é de Pensamento que se trata, do Pensamento como possibilidade de salvação para o “proclamador da Fome, da Peste, da Guerra”.
O Pensamento em questão – grafado no texto com “P” maiúsculo – teria, assim, uma força reparadora em relação à exterioridade sociohistórica, compreensão tornada possível numa intercessão pontual com Poe, se concordamos, seguindo a sugestão do autor, que realmente não se trata de qualquer pensamento, de mera expressão de uma ordem racionalista da própria “ratio”. Nos primeiros parágrafos de “Ídolo mau”, lemos:

De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
Estás agora preso à calceta de sentimentos negros e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à calceta de sentimentos negros.
Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.
Como a ave noturna e luceferina do – Nunca mais! – desse peregrino e arcangélico Poe – como essa ave noturna, pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.
E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da noite, da grande noite do Nada, convulsamente soluçarem e só vês errar os espectros lívidos da Saudade arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.
De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo, feio, torto, te avassalou supremamente, que a própria origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te, repele-te.
Tu não morrerás mais!

(CRUZ E SOUSA, Obra completa, Rio, Nova Aguilar, 1995, p. 616-617)

Claro está que não se trata apenas da ave, mas da ave de um significante, da ave cuja identidade sombria, noturna, constituiu-se artificialmente, construiu-se, como resultado surpreendente de um longo esforço de pensamento que teve lugar na Poesia.
Do significante “Nunca mais!” emerge a imagem de uma desilusão que não pertence ao poema, que não é do poema, mas sim ao lado de fora, ao externo, ao mundo, e que por isso mesmo coloca o poema em relação com o mundo: o poema não constitui um fora do mundo, um fora da história, não está alienado do mundo, tampouco está subordinado ingenuamente ao mundo.
A recorrência ao Corvo-significante, enquanto imagem da desilusão com o mundo, é, por si só, reconhecimento da positividade de um pensamento que se processa pela via da negatividade, negando o que não é – o artifício como mundo – para afirmar o que é – o mundo como artifício.
Não há em “Ídolo mau”, assim como em “The raven” (POE, The raven and other favorite poems, New York, Dover Publications, 1991), uma opção da parte do poeta entre as duas dimensões do mundo, uma opção ideológica, claro que não. Há uma relação texto-mundo que nos permite entrever um tensionamento dessas duas dimensões, que se dá num mais além da naturalidade sacrificada pelo processo de modernização, dado que atravessa as práticas literárias do século XIX.
No limite, o que interessa a Cruz e Sousa é dar a ver os traços que singularizam sua “alma”, que a constituem como sua própria alma, portanto, dar a ver a sua interioridade. Ocorre que essa interioridade só existe em relação com o mundo, como dimensão subjetiva que só alcança objetividade no mundo.
Logo, no poema de Poe como na prosa de Cruz, há algo de uma redução fenomenológica do mundo: o mundo, objetivamente, é solidão, é cinismo, é artifício, “constructo” na “ratio”, que, paradoxalmente, também não é o mundo, ou seja, não é o artifício que decide sobre a qualidade das coisas, que decide o que elas realmente são – porque artificial, no sentido lato, tudo é: tanto o mundo quanto o poema, a razão está por toda parte.
A fertilidade da intercessão Cruz/Poe consiste, afinal, no aguçamento do problema da relação sujeito-objeto, poeta-mundo, resultando na confirmação daquele ponto de vista de Paul Valéry (Variedades, São Paulo, Iluminuras, 1991, p. 194), segundo o qual “é a execução do poema que é o poema”.


Fragmento de ensaio publicado na Revista USP, N. 90, São Paulo, Junho/Agosto 2011. Este ano, como se sabe, completaram-se 150 anos de nascimento de Cruz e Sousa (1861). O que os donos das letras pátrias fizeram? Nada, claro.

Clarão 12

O mundo não existe para quem trabalha de sol a sol em lavouras de café do sul de Minas Gerais e de arroz na China, para quem passa a noite cozinhando carvão no Jequitinhonha ou fugindo da morte nos matagais de Darfour, para quem tem que enfiar a cara no crack ou vender o sexo, ou tudo ao mesmo tempo e mais, para sobreviver nos grandes centros urbanos do país. Não podem perder o mundo aqueles que nunca tiveram o mundo, enquanto uma totalidade inteligível, que sempre estiveram alijados do mundo, mas que sempre estiveram em busca do mundo - afinal, por que se mover, de qualquer forma, se não for por uma complementação?, de tal maneira que todo movimento é denúncia de um malestar no "é", no agora. Não podem perder o mundo, portanto, os pobres, os negros, os judeus, os islâmicos, os loucos, os doentes, os índios, os aborígenes, as mulheres, os pigmeus, os comunistas, os poetas - eles ainda não chegaram ao mundo. | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 11

Há uma passagem de Deleuze, nas suas Conversações, das mais marcantes: nós perdemos definitivamente o mundo. Volta e meia, essa frase ressoa nos meus ouvidos. Fico me perguntando o que quer dizer isso para além da Geração 68 francesa, à qual o pensador indomável está vinculado. Perder o mundo ainda em vida, sem ter, aparentemente, saído do mundo. Então, estar vivo não corresponde a uma relação de pertencimento com o mundo, a ter o mundo. Pode-se estar vivo sem ter posse do mundo, estar vivo e sem mundo. Mas houve um tempo em que se teve o mundo, em que o mundo era nosso. Depois, chegou um outro tempo em que perdemos definitivamente o mundo. Mas - e isso é intrigante - é possível que muitos estejam no mundo com o sentimento de que perderam o mundo sem nunca terem tido realmente esse mundo, sem nunca terem chegado ao mundo. Quem são eles? | ANELITO DE OLIVEIRA

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

RESENHA | Fazendo a literatura afrobrasileira existir

ANELITO DE OLIVEIRA - Organizada por Zilá Bernd, a Antologia de poesia afrobrasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil, que acaba de sair pela Mazza Edições, reedição atualizada de trabalho aparecido em 1992 sob o título de Poesia negra brasileira, é mais um gesto significativo para o necessário abalo das verdades estabelecidas no campo literário brasileiro com a contribuição de críticos, historiadores, pesquisadores, professores e, mais ainda, de jornalistas ignorantes.
A exemplo do que fiz aqui há pouco a propósito de Literatura e afrodescendência, antologia organizada por Eduardo de Assis Duarte e publicada pela Editora UFMG, também quero dizer, em face dessa antologia de Zilá Bernd (pesquisadora insuspeitável), que o fato de ser um dos autores elencados deixa-me numa situação meio desconfortável para dizer algo a respeito, sobretudo elogiar - e quero elogiar, inclusive, o primoroso trabalho gráfico-editorial.
O ideal seria, e é, que outros dissessem, avaliassem, criticassem, mas, sinceramente, não tenho muita esperança, ou quase nenhuma, quanto a isso. A mesquinharia tomou conta da vida sociocultural brasileira, dos meios de comunicação associados aos governos, da academia burguesa. E ressoa, desde sempre, um silêncio estratégico, sistemático, em torno da produção literária - não só criativa, mas também científica - de afrobrasileiros no país, como se essa produção não existisse, ou, de fato, não devesse existir.
Nomes como Luiz Gama, Lino Guedes, Solano Trindade, Oliveira Silveira, Oswaldo de Camargo, José Carlos Limeira, Ana Cruz, Jussara Santos, entre tantos outros que as duas antologias nos apresentam, não existem para as agências - escolas, faculdades, editoras, redações - e agentes - professores, pesquisadores, críticos, editores, jornalistas - do sistema literário brasileiro. Incluo-me entre esses inexistentes.
Trata-se de um fato grave demais, gravíssimo, para ser ignorado, e que sempre foi e continuará sendo ignorado em nome de um suposto bom funcionamento da literatura brasileira, em nome de um mito de literatura brasileira que remonta aos primeiros românticos, isto é, literatura brasileira como expressão de civilização brasileira - e os negros, como os índios e as mulheres, seriam uma ameaça a essa civilização.
Para o grupo étnico hegemônico nas Américas - não se trata de problema só da América do Sul, claro -, o grupo dos não-negros (pouco importa como seus membros se considerem etnicamente), o grupo que é maioria nos espaços de poder(é isso que conta mesmo) não é interessante que os negros existam totalmente, de todos os modos possíveis, mas que eles existam precariamente, apenas de alguns modos, sobretudo aqueles menos privilegiados, menos valorizados, os consagrados modos negros de existir.
É interessante, assim, que os negros existam para o trabalho braçal, corporal, para a carvoeira e o futebol, mas não para o trabalho mental - "o" trabalho, segundo a tradição etnocêntrica. A literatura, refinado trabalho mental, não seria para negros, portanto, sobretudo negros brasileiros, entes oriundos de uma cultura oral. O racismo científico, definitivamente, não é coisa do século XIX, ou, podemos pensar, o século XIX ainda não terminou no Brasil.
De um modo geral, a antologia de Zilá Bernd, assim como a de Eduardo de Assis, estimula-me a pensar que o reconhecimento da produção literária dos afrobrasileiros não pode se dar isoladamente, sem um trabalho pelo reconhecimento real - não retórico, como é comum no Brasil - dos valores históricos, culturais e econômicos dos afrobrasileiros, sem um trabalho político, portanto, empenhado na correção das desigualdades materiais e simbólicas que marcam as relações entre negros e não-negros.
Esse trabalho deveria começar urgentemente pelo "forçamento" (Badiou) do Governo Federal, através do seu Ministério da Educação, para que adquira exemplares das antologias e os distribua nas escolas e faculdades públicas do país, que leve os autores participantes das antologias para falar com alunos, professores e pesquisadores nessas muitas instituições. É um absurdo que todos os governos brasileiros nada tenham feito até hoje de inteligente, sério, pela literatura afrobrasileira.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Clarão 10

Então, oponho mundo e realidade, gosto de opostos. Gosto? Já nem sei. Digamos que esteja aí, às claras, essa oposição - parece-me que está aí. A realidade é um recorte do mundo, um formato, um traço - arbitrário, como não poderia deixar de ser. Há, por trás disso, algum, alguns responsáveis por esse recorte - a realidade é o recorte interessado do mundo. Este é aquilo que extravasa a realidade, todas as margens da realidade, as extensas extensões, as contrarrealidades. A série de valores, que nos impõem, impuseram, como sendo a literatura, expressa apenas o ponto de vista dos que recortaram a realidade no mundo. A literatura, representando essa série de valores, é uma simplificação do mundo. A literatura mesma, portanto, é uma transposição da realidade, uma desrealização da realidade, um movimento de instauração do mundo. | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 9

Interessante que eu, logo eu, pense em literatura, ou querelas literárias - como podem dizer desdenhando os cínicos -, interessante, para não dizer estranho. Se me encontro do lado do mundo das coisas, envolvido em relações viscerais, o ideal seria esquecer a literatura e toda e qualquer dimensão subjetiva. Mas o fato é que sempre vi e continuo vendo a literatura como algo dentro do mundo. Dante é um exemplo fatal da mundanidade da literatura, Goethe não menos, Cruz e Sousa, totalmente. Há, então, uma discórdia entre aquilo que sinto como literatura e a série de valores que nos impõem como literatura. Internalizamos - à força - essa série de valores como sendo a literatura, e é justamente essa série de valores que reverenciamos no lugar da literatura. Essa série de valores realmente tende a se esfacelar no contato com o mundo - não com a realidade. | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 8

A literatura - e as artes e o pensamento de um modo geral - pode viver confortavelmente distante do mundo das coisas, alienada. Mas será uma vivência sem qualquer importância, uma espécie de morte. Para chegar a ter importância real, é preciso que a literatura se aproxime da vida como ela é, assuma um caráter mundano - ainda que nada disso seja consensual, objetivo, contratual. Nessa aproximação, é grande a possibilidade de a literatura não se suportar, entrar em crise, esfacelar-se. Por isso mesmo costumamos ter, desde o início, uma preocupação excessiva com a literatura, uma disposição para cuidar da literatura, como se esse fosse o nosso destino. A literatura passa, então, a ser um nome para uma entidade sagrada, que precisa ser apenas reverenciada. O que está por trás, no meio e na frente disso? | ANELITO DE OLIVEIRA

domingo, 4 de dezembro de 2011

RESENHA | Acontecimento editorial

ANELITO DE OLIVEIRA - O grande acontecimento editorial deste 2011, no âmbito dos estudos literários, é Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, quatro volumes organizados por Eduardo de Assis Duarte - um em parceria com Maria Nazareth Fonseca -, belo produto da Editora UFMG.
Sou um dos autores incluídos no trabalho, o que me deixa numa condição meio desconfortável para dizer algo, sobretudo elogiar o trabalho. Mas minha presença, claro, é apenas um detalhe, como a de outros autores pouco conhecidos, sem prêmios e sem livros publicados por grandes editoras - que é o que conta mesmo na vida literária fomentada pela indústria cultural.
O importante é o conjunto da obra, o grande número de autores que ali se encontram, tanto criadores quanto pesquisadores - e, no caso destes, muitos não negros, convictos sobre a importância de se ler criticamente essa produção. O conjunto da obra é simplesmente espantoso, tanto pela quantidade quanto pela qualidade.
O mínimo que se pode dizer diante desse trabalho é que ressoa, por toda parte, o êxito de Eduardo de Assis Duarte, que se dedicou por dez anos à pesquisa de textos e autores afrobrasileiros, à reflexão rigorosa sobre seus trabalhos, ao diálogo com muitos daqueles que estão em atividade, à articulação de pesquisadores em torno do tema e, o que é muito significativo, à meditação sobre a natureza da literatura afrodescendente.
A seriedade desse trabalho, seu caráter altamente respeitável, começa na vontade de saber o que é realmente a literatura afrodescendente no Brasil. Assis Duarte não parte de certezas ortodoxas, mas de dúvidas elementares, que o levaram a orquestrar uma antologia - como vemos agora - viva, pulsante, que constitui, especialmente, um convite generoso a diálogos diferenciantes sobre diferenças.
Em movimento oposto à tradição crítica não só nos estudos literários, mas também nos estudos de história e sociologia, política e economia, Literatura e afrodescendência no Brasil não opera no sentido de construir uma imagem homogênea da comunidade afrodescendente brasileira, solucionando, no plano do discurso, problemas que atravessam sistematicamente essa comunidade na vida social.
O traço marcante da Obra é precisamente a heterogeneidade da produção literária afrodescendente no Brasil, acusando a heterogeneidade que, de fato, define essa comunidade. Somos (não posso me negar) autores muito diferentes, tanto os fundadores quanto os consolidadores e, mais ainda, os contemporâneos, cada um expressando a condição afrobrasileira a sua maneira, mas enfrentando um mesmo problema: a dificuldade de se afirmar no mundo literário.
Eduardo de Assis Duarte, na abertura da Obra, vai direto ao ponto, perguntando, no rastro de Gayatri Spivak, se nós negros podemos falar na sociedade brasileira enquanto tais, ou seja, enquanto negros, sem negar a nossa própria negritude. Naturalmente, não, porque a sociedade brasileira está programada para funcionar cordialmente, e negros falando como negros perturbam essa cordialidade.
O sistema literário - que não é feito só de obra, autor e leitor, mas também de agentes, editoras, distribuidoras, livreiros e cadernos culturais, como pensa Robert Darnton - contribui, eficientemente, com essa programação, à medida que ignora a produção de poetas, ficcionistas e ensaístas negros, preferindo encarar tudo que se faz no Brasil sob o signo da uniformidade, tudo como literatura brasileira, isto é, pastiche da pior literatura estadunidense.
A antologia é um atestado eloquente - o mais eloquente, sem dúvida, de todos - de existência de uma literatura afrodescendente no Brasil, que se define por um estranhamento no seio da própria literatura brasileira, que é e não é literatura brasileira, que se alimenta de uma fértil crise identitária, reveladora, portanto, da conflituosa situação que os negros vivenciamos no país, sempre sob suspeita de toda ordem, inclusive de não escrever literatura brasileira propriamente dita (excelente suspeita).
Ao reunir dezenas de autores e pesquisadores numa Obra tão audaciosa, Eduardo de Assis Duarte logrou produzir algo que, na verdade, extrapola o espaço acadêmico, o âmbito da pesquisa, bem como o espaço editorial, o âmbito dos livros, para se afirmar como uma ação política contundente, oportuna, um divisor de águas na organização e valoração da produção literária no país. Axé babá!

Clarão 7

No início, há todos os caminhos; no meio, alguns caminhos; no fim, parece que só resta um caminho que vai-se estreitando, desacontecendo. Tanto faz ser ou ter sido determinista,fatalista, chegamos a uma condição que, sem dúvida, não corresponde exatamente ao que pensávamos sobre nós mesmos. Como estamos distantes do que éramos!, é uma constatação inquietante que fazemos no presente. Mas esse distanciamento se processou, paradoxalmente, porque queríamos ser no mundo exatamente aquilo que, segundo nós mesmos, éramos no mundo - estranhos. Queríamos que o mundo fosse tão estranho como éramos, queríamos converter o mundo em "meu" mundo, mais do que em "nosso" mundo até. Não tínhamos qualquer preocupação retórica, éramos decididamente igorantes, inimigos declarados do inimigo mundo.| ANELITO DE OLIVEIRA

sábado, 3 de dezembro de 2011

Clarão 6

Como definir esse inimigo sombrio? Passamos a vida embaraçados nessa situação. Temos um nome - mundo - que sempre ultrapassa nossa percepção, que sempre extravasa - é tudo, é nada. O nome "mundo" não é exatamente a coisa "mundo" - há uma inadequação. O sombrio, o que encobre o inimigo com que lidamos, é a marca dessa inadequação. Investir contra esse dado sombrio, dissolvê-lo, é enfrentar o inimigo. Sem enfrentamento, sem uma atitude decidida, não é possível compreender o inimigo. Enfrentar é, desde o início, compreender. Compreender o que nos confronta - o inimigo mundo. No meio da vida, imersos numa permanente desordem, tudo que temos a dizer é, de modos diversos, sobre o drama dessa relação. | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 5

E é precisamente aí que começa o mundo, quando nos descobrimos envolvidos, imbricados, misturados. Sair, distanciar-se, vai-se tornando cada vez mais impossível. Estamos presos. A consciência de não ser livre, ou totalmente livre, é o princípio de materialidade do mundo. Não se trata, ou não se trata mais, de uma questão de ideias, de mera filosofia, mas de uma questão de vida - e morte. A literatura - tudo aqui tem a ver com isso - aparece, então, como uma possibilidade de reconciliação com o mundo. É preciso reconciliar - pensava Hannah Arendt - com aquilo que nos dilacera, reconciliar no sentido de compreender o que é isso que nos dilacera. Sem reconciliação, passaremos a vida em guerra contra um inimigo que sequer conhecemos claramente, um inimigo sombrio.| ANELITO DE OLIVEIRA

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Clarão 4

Ninguém deve se envergonhar de dizer certas besteiras, como esta: é difícil dizer o que queremos dizer. Tipo de besteira bastante inteligente, que pode ser, inclusive, defendida com apoio em ninguém menos que Lacan: a linguagem é a besteira, isto é, aquilo que vem da besta, do animal. Que seja, e o é de modo intrigante: animalisamo-nos, saímos das amarras da condição humana, ao dizer tal besteira: é difícil dizer o que queremos dizer. O que quero dizer, por exemplo, ao dizer que nada se escolhe neste mundo? Não sei exatamente, mas algo como: somos resultados de forças e contraforças que atuam o tempo todo sobre nós, que nos comprimem, nos oprimem, nos deprimem desde quando começamos a estar no mundo, desde quando nos adequamos a uma determinada lógica, desde quando começamos a nos relacionar com o lado de fora de nós mesmos - desde então, não temos sossego. | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 3

A um doente metafísico,em pleno século 21, tudo que se pode dizer é que lamentavelmente não há nenhum remédio disponível na farmácia de Platão, tampouco na de Derrida. Não foi uma boa ideia, portanto, estar doente, isto é, começar a fazer perguntas, desejar conhecer o que está por trás das aparências, sair à procura de essências. Há apenas aparências atualmente -e a literatura, que é um mecanismo de atualização, apenas explicita essa realidade. Toda literatura é, por isso mesmo, realizante, fundamentalmente vinculada à realidade, e nós é que, opondo literatura e realidade, resvalamos para a terceira margem - caminho sem volta, impossível. Mas, para além da razão cínica de cada dia, nada se escolhe neste mundo - e as perguntas explodem.| ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 2

Não sei por que, ao refletir sobre literatura, logo me ocorre falar do mundo, falar da literatura em face do mundo, como se, para mim, só fosse possível falar de literatura com o mundo, pensando no mundo. Sou, afinal, metafísico?, um doente metafísico?, talvez - pergunto, pergunto-me, ou apenas cogito, assim, meio assim: um doente metafísico (é, pensando bem, parece uma boa frase), a literatura, para mim, diria respeito às coisas primeiras, ao fundamento? Certamente não, ou certamente, sim. Explicar-se não é, nunca foi, nada é fácil. Preciso refletir mais a respeito disso. O certo - ou o incerto - é que, ao pensar em literatura, logo penso no mundo. Um doente metafísico. O que vem a ser isso? | ANELITO DE OLIVEIRA

Clarão 1

Quando a vida se torna insuportável, voltamo-nos para aquilo que nos dá algum alento, ou já nos deu. Voltamo-nos para a literatura, por exemplo, para livros e autores. Nesse momento, tendemos a encontrar um sentido enorme na vida, mas que raramente dura muito tempo. Não conseguimos manter por muito tempo esse sentido porque aquilo que nos deu tanto alento em várias fases da vida já não nos chega, no presente, isolado, como uma espécie de absoluto, como algo que se justificava por si mesmo. As "Primeiras estórias" de Rosa, o "Cemetière marin" de Valéry, as "Ficciones" de Borges - tantas coisas - já não correspondem à totalidade do mundo, do nosso mundo. O mundo é mais extenso, e, pior, mais complicado. O ideal seria se restringir ao nosso mundo - ao mundo da literatura, ao mundo da religião, ao mundo da filosofia etc -, mas uma característica do mundo real hoje é a invasão agressiva de todos os mundos particulares. | ANELITO DE OLIVEIRA