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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

RESENHA | A potência do ficcional

ANELITO DE OLIVEIRA - O segundo livro de Leida Reis, A invenção do crime, publicado pela Record, é um caso literário significativo neste ano em vários sentidos, daqueles que suscitam inquietações que nos parecem dignas de exposição pública. Primeiramente no sentido da formação de uma autora: é o retorno de um nome que estreou discretamente em 1991, com um livro de contos de título altamente sugestivo, The cães amarelos (de presente), edição da própria autora de que poucos tomaram conhecimento, e que é, seguramente, um dos trabalhos narrativos mais relevantes aparecidos ao longo daquela década em Minas Gerais. Foram nada menos que 19 anos de silêncio, período em que parecia que a escritora era mais um dos tantos que aparecem e desaparecem constantemente na vida literária, vítimas de um sistema complicado, para dizer o mínimo, em que o sucesso não raro custa a própria alma, exigindo um rompimento com os princípios mais “sagrados” do indivíduo, uma renúncia à autenticidade. Escritores que não se rendem aos esquemas de produção e circulação impostos pela indústria cultural, que implicam relações simbólicas e materiais, geralmente são marginalizados.
A invenção do crime mostra que Leida Reis esteve num silêncio produtivo durante todo esse período, empenhada na construção de um estilo “seu” num tempo em que o estilo, assim como outros elementos clássicos, deixou de ser um valor real na cultura, nas artes, na literatura, em que não ter estilo passou a ser uma atitude louvável, desejável até como mecanismo de facilitação de vendas. Nestas duas décadas, anos 90/00, abertas efetivamente com as “quebras de tradição” político-econômica nos anos 80, estilo passou a significar uma espécie de afirmação da noção de identidade como coisa fixa, eterna, o que, como pensa Stuart Hall, tornou-se impraticável na pós-modernidade, quando as identidades se tornaram flexíveis, ocasionais. Construir um estilo é, neste cenário de desestilizações, tarefa arriscada, à medida que pode ser interpretado, na cínica cultura letrada em que nos encontramos, como ostentação de uma identidade, de um modo próprio de escrever, quando não ter identidade é mais vantajoso, significando que se tem todas as identidades, uma para cada situação. A autora atravessa com ânimo invejável essa questão, forjando seu estilo em meio a ecos de autores brasileiros e estrangeiros em atividade.
De certa forma, o esforço da escritora neste livro consiste em encontrar um ponto fixo, uma referência auto-sustentável, para estruturar um discurso razoável, verossímil, sobre o agora, sobre este espaço-tempo que se define por uma permanente fluidez, por uma dinâmica de fluxos em todos os segmentos, dado responsável por toda sorte de complicações: social, cultural, ética, política, econômica etc. Essa referência é encontrada numa imagem que há muito está em evidência como sendo ideal do sujeito pós-moderno: um homem “semiesquizofrênico”, como ele mesmo se define, célebre escritor mineiro, amigo de Mia Couto e Agualusa, figura com mais de 60 anos, morador de BH, autor de romances policiais, leitor, naturalmente, de Poe, Agatha Christie, Conan Doyle e outros nomes do cânone policialesco. A partir desse narrador estereotipado – e por isso mesmo “mais” real –, Leida Reis articula seu romance (evidentemente, também um metarromance, ocupado com a reflexão sobre a arte de narrar) a duas questões decisivas na contemporaneidade ocidental, em termos literários e culturais, que já provocaram tantas páginas, como as de Benjamin, Foucault, Ricoeur e, no Brasil, de Silviano Santiago: a questão do sujeito e a da narrativa.
Valendo-se cautelosamente, sem exageros fáceis, do suspense dos romances policiais, o narrador d´A invenção do crime, num procedimento bastante comum na literatura e no cinema neste tempo de entusiasmo globalizante, leva-nos a cinco lugares diferentes (Líbia, Rio de Janeiro, Angola, Romênia, São Paulo), relatando situações aparentemente criminosas, antes de chegar ao ponto crítico da obra, digamos: o universo de um escritor “sui generis”, já que nem todo escritor tem o hábito de dar 32 voltas e meia (!) agarrado ao seu cão no apartamento, dotado de uma consciência crítica sobre a complexidade da “psique” que lhe permite administrar sem sobressaltos a própria loucura. O perfil estranho desse narrador, que só encontramos no último longo capítulo do livro, fundamenta, ao final das contas, a estranheza de que se reveste a narrativa dos acontecimentos ao longo dos cinco capítulos anteriores: um narrador estranho narra coisas estranhas, cuja compreensão exige uma elucidação do seu ponto de vista, donde emana a especificidade de sua percepção. Dizer que esse ponto de vista é o da literatura – como não? – é um lugar-comum que, automaticamente, conduz-nos à velha pergunta sobre o que pensa, então, a literatura a respeito do entorno de que se alimenta, bem como a respeito de si mesma.
Segundo o ponto de vista do narrador deste novo livro de Leida Reis, o maior castigo que um criminoso pode receber não é a prisão, o tradicional confinamento atrás das grades, nem mesmo a morte física, civil ou moral, mas sim o desaparecimento do mundo visível, do convívio social a que está acostumado, a partir de um apagamento de todos os elementos que configuram sua identidade – documentos, bens materiais e simbólicos, relações pessoais etc: é o que se passa com um traficante de armas na Líbia, com um traficante de drogas no Rio e com um Promotor de Justiça na Romênia, por exemplo. O maior castigo é, portanto, a invisibilização do sujeito, o que significa que, para o narrador, existência pressupõe visibilidade, que quem não é visto não existe efetivamente. A base do novo “método” punitivo é o polêmico conceito de desconstrução de Jacques Derrida, conhecido, claro, por um escritor cultivado, leitor de Freud e Althusser. Tornar criminosos invisíveis, apagar tudo que os constitui enquanto sujeitos num determinado lugar no mundo, equivaleria a uma aplicação – não ao pé-da-letra, como o narrador enfatiza a fim de realçar sua honestidade intelectual e garantir credibilidade à sua narrativa – do conceito de “desconstrução” de Derrida.
Um “método” de punição tão inovador, haurido na filosofia contemporânea, acaba por demandar um personagem igualmente novo para colocá-lo em prática – que o narrador considera como ápice da sua obra de escritor –, cujo nome é apenas Herói, sempre grafado com “H” maiúsculo, índice fundante, naturalmente, do mundo da literatura ocidental. Disso, dessa aproximação irônica de dois campos de conhecimento tão convergentes quanto divergentes entre si, literatura e filosofia, decorre a fertilidade romanesca d´A invenção do crime. Ali aonde nem mesmo a filosofia derridiana chega – porque se restringe ao campo conceitual, como pontua o narrador –, no meio da realidade como ela é, com sua avalanche de surrealidades, a literatura, com sua força de imaginação, avança, livre das amarras de um pensamento lógico, com a finalidade precípua de ativar o campo das impossibilidades. O Herói, com “H” maiúsculo sempre a realçar sua auto-suficiência, funciona como um agente do impossível em relação a uma problemática premente neste século, que vitima um enorme contingente de pessoas por toda parte: a criminalidade vinculada ao tráfico de drogas e outras tantas mazelas sociais.
Aproximando ironicamente literatura e filosofia, sem intenção de praticar uma pernóstica literatura filosofante, a ficção de Leida Reis logra um desvio da narrativa policial vulgar, praticada pelo pior Rubem Fonseca e seus imitadores no país, em favor de uma perquirição sobre o lugar da literatura num mundo criminal, onde, como nunca, a moda é matar, até porque, em países como Brasil e Angola, a punição é para poucos. Como a literatura pode contribuir para mudar essa situação, uma vez que não pode ficar indiferente a isso pelo simples fato de que a razão de ser da literatura é o humano, pelo simples fato de que a literatura é referência de humanidade? A invenção do crime nos faz pensar na liberação da potência do ficcional como contribuição importante a esse processo, isto é, no enfrentamento da realidade a partir de um “método” não-realista, que não reproduz a lógica estúpida da realidade social – no caso, aquela: para cada crime bárbaro, um castigo mais bárbaro ainda –, com o qual não se tenta corrigir momentaneamente a realidade, mas superá-la. À luz de um tal “método”, a realidade, com seus crimes e outros “prazeres”, resulta de uma invenção tanto quanto a literatura, motivo pelo qual não há sentido na subordinação desta àquela, como fazem os realistas de hoje e sempre, condenando a literatura ao pequeno mundo decadente das “belas letras”, sem nexo com o mundo comum de cada dia.


Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 30 de outubro de 2010.

sábado, 6 de novembro de 2010

ARTIGO | Coisa agônica

ANELITO DE OLIVEIRA - Livro sem destino, produção da Editora Unimontes, é o quinto trabalho de Osmar Pereira Oliva, um autor que está decidido a construir uma obra poética. Antes, apareceram As esquinas dos homens (2002), Canção obliqua (2004), Poemas do abismo & alguns ecos de Minas (2008) e Monumentos de palavras (2009). Com este trabalho, completam-se cinco publicações em menos de uma década. Realmente, não é pouca coisa num país onde publicar ainda permanece um desafio, sobretudo publicar poesia.
A poesia que pulsa neste Livro sem destino, assim como a dos livros anteriores, tende a nos remeter um pouco à razão dessa perseverança na caminhada. Não se trata de uma razão meramente literária, mas, sobretudo, de uma razão existencial, cuja compreensão impõe o tensionamento de dados cruciais tanto da experiência estética mais recente e mais remota quanto de uma certa experiência pensante, para não dizer filosófica.
Livro sem destino dá continuidade a um modo de relacionamento entre poeta e linguagem que destoa fundamentalmente daquele que se tornou hegemônico na literatura brasileira de fins dos anos 1950 até meados dos anos 1980, que tem num Mário Faustino, num Age de Carvalho, numa Orides Fontela e num Antônio Fernando de Franceschi, poetas reflexivos, algumas de suas melhores referências.
Esse relacionamento é marcado pela desconfiança sobre a possibilidade de a linguagem dizer totalmente o que o sujeito, digamos, deseja dizer a outrem, concretizando um diálogo na esfera intersubjetiva, para além do face-a-face cotidiano. Naturalmente, essa desconfiança teve e tem sua motivação num Mallarmé, num Montale, num Guillén, num Cabral, bem como num Wittgenstein, num Heidegger e num Adorno.
À luz desses autores, ou à sombra do drama de escrever que eles acabaram por fazer emergir, a linguagem, mesmo sendo linguagem poética, não seria altamente significativa para representar o campo do sensível. Seria caracterizada por uma pobreza endêmica, uma coleção de lugares comuns, um código convencionado para o uso de homens práticos, enfim, um obstáculo à expressão de uma inteligibilidade outra.
Esta questão, como se sabe, esteve no centro dos debates sobre poesia nos anos 1970 e 1980 e alimentou reações de todo tipo no meio literário – éticas, políticas, estéticas, morais etc – até cair no esquecimento nos anos 1990, especialmente no Brasil, quando a diversidade de procedimentos literários passou a ser aclamada como positiva, interessante, politicamente correta, conseqüência de uma exaltada democratização da cultura.
Um livro que hoje anda esquecido, como tantos que deram à poesia um lugar especial entre os saberes, era uma das principais referências para esses debates naquele tempo, sempre evocado: Linguagem e silêncio, de George Steiner. Ali se coloca, de modo claro e produtivo, a situação crítica dos poetas em face da linguagem: não se trata de falso dilema, mas de algo diretamente vinculado à dinâmica historial, ao mundo desalmado em que vivemos.
Nos poemas de Livro sem destino, a linguagem diz o que se passa na interioridade de um sujeito, o que por si só já é índice de uma espécie de reconciliação entre poeta e linguagem: vemo-los, dir-se-ia, de mãos dadas a conduzir um processo de significação bastante regular, sem sobressaltos no plano do enunciado. Todavia, essa regularidade parece atravessada por um desatino existencial, uma danação, que soa como índice de uma crise no plano da enunciação, ali onde, obviamente, o sujeito não domina o todo de que é parte.
Já a partir do seu título sugestivo, este poema, com o qual o livro se abre, convida-nos a pensar nesse plano, na totalidade do dizer:

Revelação


É da escuridão que saio sempre
E quanto mais a luz sobre mim incide
Mais me apago
Um corpo morto avulta e vai diminuindo
Até sumir de todo.


Ao reconhecer o lugar de onde emerge como ambiente privado de luz, o sujeito nos estimula a compreender o seu drama a partir de um horizonte romântico, como algo vinculado a uma essência humana de que ele seria o único portador, donde resultaria sua diferença em relação a outrem, sua qualidade de poeta. Isso numa primeira leitura. O que esse poema quer revelar – e revela já – é que a privação de luz constitui uma fatalidade peculiar ao sujeito, que a escuridão é sua condição, seu modo dramático de ser para o mundo.
Assim é que esse sujeito acaba por se revelar também como sujeitado nessa cena de enunciação em que se encontra envolvido, acaba por se revelar como objeto onde parece estar situado apenas como sujeito, como falado onde parece ser apenas o que fala. Deriva dessa situação, a meu ver, a fertilidade do poeta Osmar Pereira Oliva: estar imerso na escuridão, num lugar de indeterminações, alimenta um incessante desejo de saber sobre o “é” das coisas, desejo que se tem apresentado como a própria razão de ser da obra.
Nos livros anteriores, o foco desse desejo, da vontade de saber, foi a humanidade (As esquinas dos homens), a alteridade (Canção obliqua), a identidade (Poemas do abismo & alguns ecos de Minas) e a história (Monumentos de palavras). Agora, neste Livro sem destino, o foco é o corpo, que, ao contrário daqueles temas enfocados, atua sobre a linguagem como uma espécie de contraforça, exigindo, como forma de garantia mesma da inteligibilidade estética do que se diz, como referência de corporeidade, uma expressão mais orgânica, menos idealizante.
Nos poemas aqui reunidos, percebe-se facilmente a luta entre um conhecimento racional sobre o corpo, com todos os seus pré-juízos morais, e uma experiência de estar num corpo, de se saber, paradoxalmente, sendo em junção com o que não é, ali no meio da matéria impura, pecaminosa. Essa luta poderia cessar, alias, poderia até nem se dar, já que se aceitou, como dádiva cristã, o sacrifício evocado na epígrafe. Mas não: um sujeito luta em meio a um discurso, e a poesia se afirma, uma vez mais, como coisa agônica, sem destino.


Texto publicado como prefácio a "Livro sem destino", de Osmar Pereira Oliva, Editora Unimontes, 2010. Algumas alterações foram feitas para esta publicação.

sábado, 4 de setembro de 2010

ARTIGO | Da surdina

ANELITO DE OLIVEIRA - Quanto tempo se gasta para fazer algumas coisas aparentemente muito fáceis? Um comentário sobre dez pequenos poemas inéditos, por exemplo, quanto tempo é necessário? Tudo muito relativo, claro. Para alguns, apenas uns minutos. Para outros, um ano, uma eternidade. Depende.
Em meados de 2008, recebi, em Montes Claros, uma coletânea de poemas, exatamente dez, de uma pessoa que eu não sabia que se dedicava ao ofício já tão ignorado pelos “pós-humanos”. Solicitou-me um comentário crítico, caso considerasse válido.
Logo li os textos, esbocei em dezembro daquele ano um escrito, comentei com a autora, mas acabei por deixar a conclusão da tarefa para um outro momento, que só agora chega. Tarde, talvez muito tarde.
Bárbara Ide é o nome em questão, ainda sem livro publicado e, pelo visto, sem inserção em periódicos e eventos de poesia mais “aparecidos”. Vive em Montes Claros.
Nesta retomada da tarefa de comentar seus poemas, ocorre-me, inicialmente, notar que poetas que realmente contam, historicamente, tendem a se esconder, como que numa atitude de resistência à cultura do espetáculo, espécie de oposto da poesia.
Com o título genérico de “Sobre a terra: ensaio poético”, a concisa coletânea de poemas da autora traz a marca do esconderijo, do que se faz distante dos holofotes da promíscua vida literária brasileira, lá na surdina.
Do ponto de vista da dicção, são poemas arrastados, que fluem com “dificuldade”, como quem respira em condições anormais, situação que, sem dúvida, é índice de uma vontade do sujeito de enunciar o que se passa num lugar subterrâneo, no seu “esconderijo”.
A forma, em linhas gerais, expõe a relação paradoxal entre experiência e pensamento, a abordagem racionalizante de situações dilaceradoras – a angústia, a solidão, o sofrimento -, que, discutível a partir de uma perspectiva adorniana, não deixa de ser produtiva.
Os temas abordados por Bárbara Ide revelam, em consonância com os elementos formais que se dão a ver, um interesse pela interioridade, pelo invisível que constitui a “profundidade do visível” (Merleau-Ponty) – o amor, o ser, o escrever.
Do seu “esconderijo”, a poeta se percebe em detalhe e lança um olhar estranho, inusitado, sobre o já-visto, enunciando uma compreensão sobre o amor, por exemplo, como “eterna dívida”, de que ninguém jamais se livra, cujas marcas ficam gravadas até nos ossos.
Com uma linguagem seca que pode parecer objetividade realista, mas que importa muito mais enquanto esforço no sentido de conferir plasticidade ao texto, Bárbara Ide encerra seu poema de amor – terrível, sem dúvida –, intitulado “O esqueleto”, sob o signo da fatalidade: “Haverá sempre/ Um esqueleto insepulto sobre a terra”.
Esse olhar fatal, a fatalidade que emerge desses versos, é de grande valia para a depreensão da inteligibilidade dessa poética que, certamente, vem de longe, que apenas se entremostra nos dez poemas de “Sobre a terra”, com seu subtítulo – “ensaio poético” – acenando, de modo ambíguo, para um horizonte reflexivo.
Poemas como “O ser”, “A poesia” e “Os fantasmas” afirmam, com mais precisão, esse horizonte e também revelam a consequência desse horizonte, da disposição de pensar poeticamente, em relação ao ponto de vista consagrado, visível, sobre esses temas.
“O ser”, a pretexto de configurar um auto-reconhecimento do sujeito enquanto gênero, acaba por enunciar uma contestação da noção de identidade eternamente estabelecida: “Quando sofro/ não sou nada./ Sou gente./ Só isto”. A especificidade, enquanto situação de sofrimento do sujeito, destrói a generalidade, enquanto espécie feminina, mulher.
Nos poemas “A poesia” e “Os fantasmas”, o ofício de escrever é abordado a partir de perspectivas diversas, uma interacionista, com uma dose de ironia “séria”, e outra propositiva, interessada na fundamental em arte – como não? – imposição de um ponto de vista próprio sobre os demais.
À beira do prosaico, “A poesia” diz: “Li hoje,/ em um suplemento literário,/ alguém, que deve ser importante,/ defendendo a poesia (...) Só não disse/ que poetar é cheirar todos os cheiros,/ é queimar o último fogo,/ é roçar o último pedaço,/ é sorver a última partícula de oxigênio”.
Mais incisivo, “Os fantasmas” – que traz à tona o famigerado texto de Freud sobre os escritores criativos – diz: “não se escreve em busca do perdão,/ da compreensão, da permissão,/ da tolerância,/ (e menos ainda)/ da piedade de terceiros./ Escreve-se para apaziguar/ o próprio inferno”.
Não é, naturalmente, tarefa fácil, motivo pelo qual muitos abortam suas escritas no “esconderijo” e outros tantos saem do “esconderijo” para desaparecer no anonimato do espetáculo cotidiano, bestializados.
Há algo de trágico no exercício honesto da criação poética, e da arte de um modo geral – uma tragicidade, um “agon”, um conflito, que tudo arrasta – tempo, espaço, afeto etc. Os poemas de Bárbara Ide, corajosamente, tocam nisso. Que sejam compartilhados.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

POEMA | Elegia para Wilson Bueno

Assim se mata um homem:
com uma facada no pescoço
Assim se mata um homem:
com uma facada bem no pescoço
exemplarmente, estrategicamente,
Assim se mata um homem:
à traição, por trás, bem de perto,
de um modo certeiro, de uma vez,
Assim se mata um homem:
na sua própria casa, na sua
sala, no seu mundo particular,
lá!, onde era, podia ser, todo,
Assim se mata um homem:
para que todos saibam depois,
muito tempo depois, para que um
irmão o encontre, para que ninguém
possa salvá-lo, para que um irmão
possa se encontrar com o terror
e se despedaçar, para que todos
saibam que ninguém está seguro
neste mundo, para que todos
saibam que a casa é parte do
mundo, mas enfim, enfim, para
que todos, ingênuos, cínicos,
trouxas, saibam, no seio da
classe média brasileira, que país
é este, mata-se um homem como
se mata um bicho, de um modo
selvagem, mata-se não mais um
homem, mas um homem outro, não
um homem outro a mais, mas um
dos últimos homens outros num tempo
de desumanizações, como prova da
desumanização cotidiana, por
isso mesmo mata-se um homem
como se mata um porco, mata-se
um homem assim, com uma
facada na garganta, para que
o jorro de sangue corra pela face
e se confunda com as lágrimas,
para que, como água de represa agora
aberta, desrepresada, agora em
fúria escorra e inunde, porra!,
a terra toda de realidade, da
realidade dos realistas, da estúpida
realidade dos realistas capitalistas
racistas machistas, para o triunfo
dessa insuportável realidade, mata-se
um homem que resistia à realidade,
que desobedecia a realidade, que
desrealizava a realidade, mata-se
um homem com o rigor brutal da
realidade, com uma facada no
pescoço, para deixar bem claro,
uma vez mais, como a realidade é,
como a realidade age, o que é a
realidade, a barbárie, o sangue,
o crime, o sofrimento, a dor, a dor,
Assim, para que não fique nenhuma
dúvida sobre o poder destruidor
da realidade, assim, sangrando,
mata-se um homem, fazendo-o
urrar como um boi no matadouro,
castigando-o impiedosamente até
cair como um pedaço nojento de
carne e osso, como um castigo por
ter ousado sonhar, por ter sido um
sonho andante, como um castigo
por ter ousado sentir, por ter
sido um sentimento ao vivo,
enfim, como um castigo por
ter sido apenas e apenas ter
estado para ser, condena-se
e mata-se na surdina, na própria
casa, covardemente, de um
modo vil, condena-se e mata-se,
com uma facada bem no pescoço,
com uma perversidade que só
o mais animal dos animais, só,
ninguém mais, o bosta absoluto,
o racional, o civilizado, o crente,
o fiho de Deus, o que crucificou,
por amor a Deus, o próprio filho
de Deus, uma perversidade que ele,
o mesmo homem, o homem ele mesmo,
só ele consegue ter, com essa perversidade,
mata-se um homem outro, não um
outro homem apenas, não mais um
homem outro a mais, um artista,
Assim, com uma facada fatal bem
no pescoço, rasgando a voz,
decapitando grotescamente a fonte
de humanidade, mata-se um homem
outro para deixar bem claro, mais
uma vez na história, que os homens
outros (Cristo, Trotski, Lorca, Che,
Malcom) não têm lugar neste mundo



Anelito de Oliveira
Foz do Iguaçu, manhã-tarde de 02/06/10,
Céu do Brasil, trajeto Foz do Iguaçu-Rio de Janeiro,
entardecer de 03/06/10

sexta-feira, 7 de maio de 2010

RESENHA | Vontade de clareza

ANELITO DE OLIVEIRA - Lançado no final do ano passado em edição da Nankin, A casa deles, coletânea de contos de Ana Paula Pacheco, marca a estreia na ficção de uma autora que já publicou em 2006, pela mesma editora, o ensaio Lugar do mito, sobre Guimarães Rosa. Seus contos vinham aparecendo em revistas literárias nos últimos anos. Foram cultivados pacientemente até tomarem a forma que, pela precisão de linguagem e pelo equilíbrio da voz narrativa que ostentam, parece ser realmente deles, não do gênero literário, dos leitores, do sistema, da convenção vigente, enfim.
O sentido de pertencimento que se enuncia no título pinçado no Kafka d´A construção e explicitado em epígrafe (“Aqui não importa que se esteja na própria casa, pois o fato é que se está na casa deles”) é relevante para a compreensão desse livro repleto de sutilezas, que, no fundo, muito pouco tem a ver com a prosa mais celebrada atualmente, sempre com sabor de novela da globo e cinema americano. Trata-se de abordar, n´A casa deles, o que está fora do domínio, digamos, do narrador, aquilo – sensações, condições, situações – que é de outrem, que é “deles”, e que o narrador quer apenas perceber de perto, em detalhe.
Para tanto, esse narrador se aproxima cuidadosamente dos seus temas, como se deles nada conhecesse, numa atitude de recusa aos pré-juízos inerentes ao “ser social” (Lukács), as senhas comuns, afinal, da sociabilidade. A cada passo, revelam-se, de modo natural, dimensões significativas da vida cotidiana no mundo urbano: crueldade (“Água”, “Cães e gatos”, “Supergato”, “A 20.000 pés”), solidão (“A outra avó”, “Benedita Pingas”), amor (“Ele”, “Medida”), autoconhecimento (“Centro”, “15 x 15”), morte (“Copos brancos”, “Elevador”, “Copos brancos II”).
Obviamente construída - e desprovida de ímpetos de mascaramento desta fatalidade moderna -, a naturalidade da linguagem nos permite uma compreensão desinteressada daquilo que estamos acostumados a ver a partir de um único ângulo, sempre de modo “familiar”, pejorativo, empobrecedor. Não vemos, por exemplo, a viúva de um Brigadeiro do último período militar no país, tema do sarcástico “A 20.000 pés”, pelo ângulo de depositária de uma memória outra sobre o Brasil. Tampouco vemos uma mendiga, tema do lírico “Benedita Pingas”, pelo ângulo da afetividade, como sujeito que teve lá suas felizes experiências amorosas.
Ver de novo parece, de fato, ser um projeto narrativo nesse livro atravessado por uma vontade de clareza sensível, digamos, diretamente vinculado a uma tradição da objetividade na prosa brasileira que remonta a Machado, passa por Graciliano e Dyonélio, sofistica-se em certo Rosa, certa Clarice e certa Lygia até encontrar em Raduan Nassar, Zulmira Ribeiro Tavares e Modesto Carone, nas últimas décadas, seus principais nomes. Ver de novo, não para “corrigir” o já visto, mas para despertar dimensões adormecidas do visível, procedimento de que são exemplos os contos “Duas negras” e “Jardim”, duas pequenas obras primas do trabalho narrativo hoje.
Tema e estilo aproximam as duas narrativas: exploram relações familiares de modo reflexivo, colocando em relevo elementos que tornam essas relações relevantes para a compreensão da condição humana, que contribuem para que a “casa deles” se transfigure em casa nossa também, constitua uma imagem da casa dos humanos em geral, do mundo. Em “Duas negras”, esse elemento é a devoção de duas mulheres ao trabalho doméstico; em “Jardim”, é a paradoxal intimidade e repulsa na relação entre pai e filho, o drama, em clave pós-dramática, da alteridade.
Vendo de novo, pela lente de Ana Paula Pacheco, temas tão “batidos”, conseguimos perceber, sobretudo, a produtividade do “estranho”, no sentido freudiano do “unheimilich”, nas relações familiares, como aquilo que não se sabe, o indefinido, atua decisivamente sobre a identidade do sujeito, mantendo-o harmonizado consigo mesmo. Tanto em “Duas negras” quanto em “Jardim”, encontramos um narrador que transita com admirável lucidez pelo labirinto do sentido e do aparente nonsense, cônscio de que luz e sombra, realidade e fantasia, são partes indissociáveis do real, que, por isso mesmo, não poderia deixar de ser complexo.
Na contramão daquele “narrador enganoso” postulado por John Gledson a propósito de Machado, encontramos nesses dois contos, como ápice de um processo que permeia a coletânea, um narrador que se esforça para não se enganar e, consequentemente, não estabelecer uma relação cínica, irresponsável, aética, com seu leitor. “Dizem que um narrador que vê com os próprios olhos”, lemos em “Duas negras”, “tem mais direito às suas dúvidas. Em determinadas situações, penso ser o mais indicado. Para contar uma história entre duas mães, não seria dispensável a isenção”. E, assim, podemos ver a questão central da formação sócio-histórica brasileira, que é a racial, para além dos estereótipos corriqueiros.
Sem sobressaltos, como quem não quer nada, o narrador de “Jardim” enuncia a dificuldade maior de, narrando, não se enganar, recorrendo, para tanto, à poesia: “Ele combinava com aquilo tudo porque sua figura cinzenta trazia uma certa leveza, um traço rápido porém vigoroso, sem violência ao quadro em volta. Algo da poesia do engano, como o que falei sobre o concreto ao ar livre, coberto de verde. Mas poesia tem limites, não posso deixar que me traiam por causa dela”. A questão, para o narrador de Ana Paula Pacheco, não é apenas narrar, mas narrar o que realmente conta, significa e acrescenta em meio a um mundo de signos enganosos.



Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 01 de maio de 2010.

sábado, 17 de abril de 2010

POLÍTICA | Mais uma besteira

ANELITO DE OLIVEIRA - Há quase oito anos, Lula diz suas besteiras diárias e nós, a maioria numérica da população, esforçamo-nos para compreendê-lo, como se esta fosse nossa condição “sine qua non” de brasilidade: estar do lado do Brasil passou a significar não discordar do que o presidente espontâneo diz. Na recente Conferência Nacional de Educação em Brasília, Lula voltou a se gabar de ser o presidente que mais fez e faz pela educação, a tal ponto que considera difícil, quase impossível, ser superado.
Com a modéstia que lhe é peculiar, disse até que gostaria de ser superado, mas não há ninguém neste país para superá-lo, especialmente em função do seu histórico: o primeiro presidente sem diploma universitário – e mais: com um vice da mesma estirpe. Lula exemplifica a grandeza do seu governo em matéria de educação com as muitas universidades federais que criou, com o programa de reestruturação de universidades, o Reuni, e com programas de apoio a alunos de faculdades privadas, como FIES e ProUni.
De fato, é inegável a realidade nova no ensino superior hoje, sobretudo no que diz respeito ao acesso tanto a instituições públicas quanto privadas. A política de cotas para negros e programas de educação a distância, como a Universidade Aberta do Brasil (UAB), têm dado uma contribuição inestimável para esse processo – que vai além da questão financeira – de acessibilidade ao ensino superior, imprimindo, em meio a polêmicas de vária ordem, uma outra feição curricular, metodológica, espacial e pedagógica ao meio universitário.
Tudo isso é realidade nova, mas não chega a configurar a necessária revolução na educação brasileira porque, naturalmente, ensino superior não corresponde à totalidade da educação, mas apenas a uma parte – bastante pequena, inclusive, num país continental. Mas Lula se dá por satisfeito, não só porque é de responsabilidade da União a educação superior, cabendo às unidades federativas e aos municípios a responsabilidade, respectivamente, pelo ensino médio e fundamental. Por que, afinal, essa satisfação?
Não é preciso ser especialista em nada, educador ou educando, nem mesmo ter diploma de curso superior ou inferior, para perceber a precariedade do sistema educacional brasileiro como um todo: escolas públicas, faculdades e universidades que são, em sua maioria, excelentes praias baianas, fumódromos cariocas, passarelas paulistas, quitandas mineiras e sucursais de grupos econômicos, menos instituições sérias, comprometidas com a produção e difusão de conhecimento, empenhadas na formação de legítimos cidadãos para transformar, desde as entranhas, a sociedade brasileira.
A verdade é que, como nunca na história deste país, o sistema educacional está impotente diante de uma sociedade que se complica cada vez mais, exigindo pesquisas rigorosas, propostas ousadas e soluções consistentes. A razão prática, clara, dessa impotência é a desvalorização salarial do trabalhador da educação – professor, pesquisador, técnico-administrativo -, que é previsível no âmbito privado, mas é simplesmente inconcebível no âmbito público. Uma realidade histórica que Lula, numa gritante traição ao processo que o consagrou, sequer se esforçou para alterar.
As greves constantes na educação são apenas demonstrações mais eloquentes do mal-estar dos trabalhadores da área, efeitos de uma causa que poucos conseguem entender e, num exercício de ignorância interessada, perguntam: o que querem os professores? Com certeza, não querem altos salários, motivo pelo qual acabam voltando às suas atividades normais depois de míseros reajustes ou não, engolindo as mágoas secas e repondo aulas. O que os professores querem é o reconhecimento real, não apenas retórico, do lugar essencial da educação na sociedade, que se traduziria num salário justo e em investimento em ensino, pesquisa e extensão.
Por não ser professor, por ser um presidente sem diploma de curso superior (e que gosta muito dessa condição), Lula não tem esse tipo de percepção, coisa de idealista. Fala de educação como quem fala de – sempre! – futebol: descontraidamente, irresponsavelmente. Está satisfeito com o que fez e faz porque sabe que “suas” universidades, em sua maioria, são reinos amigos, comandados por gente interessada nos muitos esquemas, redutos de mesquinhos. Sabe que os banqueiros que lucram com a educação universitária privada estão felizes como nunca. Sabe, enfim, que mentira repetida à exaustão acaba por se tornar verdade incontestável no país do oba-oba.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

POESIA | Alguns

A Valentim Facioli



Alguns não podem tomar partido
Porque já são o partido

Alguns não podem tomar partido
Porque já estão partidos

Porque são o que o partido fez
Com eles com elas com todos

Com todas que o partido filiou
Onde quer que tenha atuado

Ou ainda esteja atuando, eles,
Elas, os alistados do partido,

Agora são apenas uma parte do
Processo que os partiu, não são

Mais o que eram um dia, foram
Partidos como madeira bruta em

Carvoeira, foram partidos ao
Meio, ao lado, ao centro, abaixo,

Ao fundo, em cima, partidos a
Golpes de machado, partidos

Aleatoriamente e, à maneira
Histórica, queimados, nas cinzas,

As partes desiguais vão revelando
O processo que se processou,

Partes que já não pertencem a um
Mesmo todo, pedaços de muitas

Árvores de uma mesma vida agrária,
Que o partido sempre exaltou nos

Movimentos pela cidade, que agora
Se desconhecem porque foram

Reduzidos a partículas contraditórias
Porque foram convertidos em coisas

Que agora se confrontam num só
Corpo que agora não cabem num

Mesmo corpo, o corpo do homem
Partido, do precariamente humano,

Para alguns, não há partido a tomar
Porque já tomaram todos porque

Já partiram tudo que tinham a partir,
Para alguns, não é mais possível

Tomar partido como expressão de
Determinada causa porque não há

Mais a dimensão da causa, não há
Uma verdade em causa, há apenas,

Como efeito das tantas causas, este
Desconhecimento do que se é no

Mundo agora com suas velhas urnas
Cercadas pelos mesmos candidatos


Anelito de Oliveira

domingo, 4 de abril de 2010

RESENHA | Poesia-baleia

ANELITO DE OLIVEIRA - Os trabalhos de Guilherme Mansur, um dos raros poetas em atividade ainda dignos de nota, são sempre desconcertantes, tanto pelo que revelam quanto pelo que velam. Quando nos encontram (porque se dirigem a um encontro com outrem pelo mundo), logo nos inquirem em muitas dimensões – cultural, ambiental, humana. Não é fácil, diante de criações tão sutilmente pensadas, formular uma resposta no mínimo razoável. Há um risco muito grande de, por excesso ou escassez, desviar do horizonte ultra-sensível que o poeta põe em relevo nos muitos suportes com que lida – instalação, cartão-postal, jornal, livro etc.
No final do ano passado, apareceu, produzido pela Gráfica Ouro Preto, “Bahia baleia”, um caderno de “haikais e deZENhos da caixa de cachalotes, movidos por um encontro com as baleias jubartes”, como se lê na abertura, na Ponta do Apaga Fogo, em Arraial d´Ajuda. Encontro insólito, que encontra (e isso é de grande importância) uma sintonia no produto livro, também insólito, como os demais de Mansur, construído de modo afim do artesanal, não como mera nostalgia da aura, mas como uma espécie de ultrapassamento dos lugares comuns da técnica, no caso, da técnica consagrada pelo mercado editorial.
Coisa para ver antes e para ler, nesta sequência, “Bahia baleia” se impõe pelo formato horizontal, pela economia de signos, pela tensão entre preto e branco, pela aspereza do papelão na capa, pelo peso do papel branco do miolo, enfim, pela sua consistência de objeto. Somados, esses elementos realçam a sobriedade de uma poética que, cultivada ao longo de mais de três décadas, encontra-se seguramente no seu ápice livresco, em termos de produtividade semântica no espaço-livro. No “corpo” dos haikais, o poeta inscreve seu desejo de fazer nas palavras, não com estas, algo além das palavras.
Alargado por traços estranhos, esse “corpo” dos textos acaba por figurar, a partir de uma perspectiva includente, a dimensão extramundana das baleias, seu “corpo” excessivo aos olhos cartesianos da humanidade moderna. Nesse trato do “material” baleia, para lembrar os formalistas russos, o “procedimento” animalizante de Mansur revela sua singularidade: não se trata apenas de falar de uma espécie em extinção, mas de fazer baleias nas palavras, de enunciar uma poesia-baleia. Nesse processo, no qual se conjugam a delicadeza do poeta e a densidade do artista gráfico, as palavras são a metade de uma arte, cuja outra metade é um silêncio crítico.
“Bahia baleia” não nos diz tudo, não é plenamente discursivo, apenas em função da brevidade que distingue a forma haikai, mas porque é produto de um poeta mallarméano, para quem o ideal continua sendo sugerir, um modo de preservar o objeto do dizer. O silêncio que ali se encontra é, portanto, de natureza estética, fundamentalmente, mas não só: no vestígio dessa natureza, uma outra se apresenta, que é aquela de ordem ética. Os haikais de Mansur estão investidos de uma indignação em face das agressões ambientais de um modo geral, e do extermínio de baleias, em especial. No fundo, essa indignação constitui, para o poeta aqui, um problema poético.
Este problema talvez possa ser formulado, em termos sintéticos, assim: como dizer o horrendo, a realidade, sem desdizer a beleza, o encantamento? Mansur escreve num haikai: “ondas da bahia/ uma baleia salta/ sambaleia”, e noutro: “esqueleto na areia/ ossos de canoa/ restos de baleia”. O encontro do poeta com seu tema é tão prazeroso quanto doloroso, e o silêncio acaba sendo uma saída para a contenção tanto da exaltação – previsível – do eu quanto da sua – compreensível – indignação. Disso decorre a criticidade desse silêncio, que, precisamente, a mancha, deformando as palavras, presentifica: presença monstruosa, violação tecnológica do mundo natural, contra a qual o poeta se coloca.
Com estas sutis meditações sobre a condição das baleias, Guilherme Mansur logra meditar, evidentemente, sobre a própria condição da poesia num mundo “shopping center”, movido a interesses mesquinhos. Rara como baleias, a poesia também é uma espécie em extinção, ameaçada exatamente por aqueles que querem ver utilidade em tudo, pelo fato de ser um inutensílio, como Leminski, a quem Mansur dedica seu “Bahia baleia”, gostava de dizer. Mas, na sua solidão, o poeta resiste: “escritos sobre baleia/ leia você ou não leia/ mar cheio de baleias”.

sábado, 3 de abril de 2010

LITERATURA | Criação

A oferenda


Veja, e depois me fale o que achou. Deixou sobre a mesa e foi saindo. Nunca mais voltou. Não sei onde andará, se continua vivendo por ali. Minto: fiquei sabendo outro dia que continua vivendo por ali, que ainda anda na noite. Talvez não seja tão difícil sua localização, o mundo é pequeno, cada vez mais, as noites sóbrias. Não sei exatamente o que lhe diria, sempre me vem à lembrança a enfermidade daquele nosso amigo. A oferenda tinha a ver com ele, com o fim do século passado. Nunca soube por que eu, tão distante, deveria ver. Tampouco soube por que deveria falar sobre o que veria. Não sei se me ocupei dessa questão objetivamente naqueles dias, eram tantas coisas, tantas pessoas, tantas imagens. Mas agora, aqui, tudo chega a me intrigar. A força de uma intriga é o que há de mais intrigante num sujeito. A ponto de chegar a não haver mais autonomia do que intriga nem do que está intrigado. Devia ver. E, num tempo, vi. A primeira vez foi como se já tivesse visto, e fiquei pensando se tivesse sido como se jamais tivesse visto. Sentir isso era algo bastante óbvio, coisa de quem está cansado de significados. A segunda vez foi como se eu tivesse passado a vida inteira evitando ver o que via ali. Passei alguns dias inquirindo o que estava por trás da natural resistência a tantos encontros, refletindo sobre a razão de tantos desencontros. E então, na terceira vez, comecei a compreender que não havia distância entre ver e ser naquele instante, que tudo se amalgamava numa mesma instância, numa noite-viver. Evidentemente, eu me havia resgatado do fundo de um esquecimento involuntário, reencontrava-me depois de tanto tempo naquele olhar, especialmente. Lá, no lado de dentro da noite, o desamparo era uma forma fundante de conhecimento. No limite, a morte. Inútil, dolorido, tentar explicar acontecimentos, encenações de um mundo inexplicável. Apenas ver, devia ver. Viagem do século XX.

sexta-feira, 12 de março de 2010

LITERATURA | Criação

Não pense


Erra. Você não pode acertar mesmo. Desiste disso. Continue errando. Experimente errar de maneiras que ainda não errou. Errar é uma questão de maneira. Não de mania, como você quer pensar, às vezes. Essa sua pressa é sempre problemática.
Talvez seja mesmo a fonte fundamental do problema. Você é muito impulsivo. Você não aprendeu com ninguém. Nem mesmo trouxe do seu berço. Sim, digamos que você queira fantasiar um berço como parte da sua origem ursprung. Você é excessivamente educado.
Precisa errar mesmo até atingir um outro jeito de ser, mais certo sobre o que não é. Você tem muita certeza, barreira. Somente errando chegará lá. Siga por aquela rua, está vendo? Vá indo, indo, indo - até chegar lá na frente.
Quando estiver perto da Estação da Luz, não olhe pra trás. Você precisa entrar mais na cidade desconhecida, descer, girar, sentir. Você precisa conhecer um pouco do seu desconhecimento. Daqui de cima, tudo é muito triste.
Há que encontrar a noite onde ela se perde - pense nisto como uma verdade orgânica. Encontrar, há de, não para nomeá-la, mas para perder-se com ela, nela, em tudo. Quando a encontrar, deixará de ser totalmente você no mundo.
Não há dúvida, consciência, que seu medo reside aí. Mas você precisa enfrentá-lo, sob pena de não chegar nunca a lugar nenhum. Lá, onde você nunca esteve, tudo são entranhas intramundanas a sua espera. Para que tome parte, tem que atravessar o todo em que todos, tudo, perdem-se.
Natural que você não encontre o caminho: ainda não inventou esse caminho. Não tem caminhado - tem pensado. Errar é isso. Não pense que possa ser outra coisa. Pensar é.

quinta-feira, 11 de março de 2010

LITERATURA | Criação

O depósito

Chorava copiosamente, e não era um romance alencarino. A realidade, daquele jeito, estava ali. Bem de frente - ali. Olhava para ela como quem não pudesse fazer mais nada. Tudo estava feito, não tinha como refazer nada. Precisava aceitar que tinha acontecido. Ninguém acreditaria se tentasse dizer que não, que não lhe dizia respeito. Aquele olhar era uma forma de consolo: as pessoas erram, sabe como é, nunca estão totalmente concentradas em suas tarefas, cada vez mais atarefadas, mil coisas, stress, stress. Seu erro tinha sido dos mais humanos, precisava entender isso, nada de mais, apenas um vacilo. Não podia insistir em dizer que não tinha errado, tinha sim, e agora era o momento de reconhecer. Reconhecendo, assumiria a responsabilidade por aquilo. Tinha direito a contar sua versão, claro, claro, mas não destituiria o fato do lugar onde já estava alojado. Ela, a atenciosa atendente, estava ali para ouvir. Bebe água, bebe. Como não tinha nada dentro do envelope quando o abriram à noite?! Estava lá, ela mesma tinha se encarregado de organizar tudo, temendo exatamente que algo acontecesse, algo que jamais pudesse acontecer. Consultem as imagens de ontem, já foram consultadas, não apareço lá?, não temos certeza, como não?, estava muito cheio, uma multidão de gente, estive bem ali por volta de três da tarde, quero ver as imagens. Claro, poderiam permitir que visse as imagens, mas elas acabariam até por complicar a situação. Gostariam de pensar, para o seu bem, que talvez não fosse ela a única responsável pelo fato: alguém teria colocado o envelope em seu nome, digamos, uma hipótese, que alguém tivesse feito isso, normal. O importante mesmo não era o fato de ela aparecer ali efetivando o procedimento, tudo muito superficial, mas a qualidade da substância do procedimento. Tinha que pensar nisso, na qualidade daquilo, não na quantidade que estava em jogo. O envelope estava vazio, vazio, completamente vazio, sem nada, um absurdo! Quem acreditaria nela? Imagens, imagens! Melhor acabar tudo ali. Bebe mais água, bebe.

terça-feira, 9 de março de 2010

LITERATURA | Criação

A ameaça

Era preciso encontrar os pontos que ameaçavam o projeto, isolar um por um e submetê-los a uma análise rigorosa, ter clareza absoluta sobre causa e efeito de cada aspecto da questão, não deixar nada escapar, nada mesmo, qualquer vacilo poderia ser fatal, levar tudo pra água abaixo, entenderam?, e olhava como quem já sabia o tipo de reação que suscitaria naquele momento, deixaria os interlocutores surpresos, até perplexos, não tinham conhecimento profundo sobre construção de solidez, como algo nasce e cresce e cresce, sempre cresce, só cresce, como se negócio não fosse, como se fosse, na verdade, uma espécie de natureza, tão natural quanto a que encontramos no mundo, sem marcas de artifício, confundida com a percepção das pessoas de tal forma, de tal forma, vejam bem, que todos acabam trabalhando para o seu crescimento, para o crescimento desse mundo maravilhoso, todos felizes, todos sorrindo, rico ri à toa, mal sabem que, que, não, sim, a questão aqui é exatamente como não deixar que algo menor, insignificante, atrapalhe o projeto, eliminar, antecipadamente, quaisquer possibilidades de fracasso que possamos encontrar pela frente, elementos que possam inviabilizar o alcance dos nossos objetivos, que são muitos, devidamente distribuídos no tempo, curto, médio, longo prazo, o que queremos, afinal?, vocês sabem, sabemos, por isso estamos aqui, o que queremos justifica todo o sacrifício deste momento, é assim mesmo que as coisas começam, daqui a alguns anos, já com a solidez do empreendimento totalmente garantida, à medida que esse projeto fizer parte da vida cotidiana das pessoas, tornar-se um mecanismo de respiração, é, é assim mesmo, poderemos dizer, orgulhosamente, o quanto valeu a pena esta tarde de reflexão sobre aquilo que ameaça nosso projeto, foi pra isso que vieram aqui, não é mesmo?, a ameaça, acalmem-se.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

POLÍTICA | Perdidos

ANELITO DE OLIVEIRA - Devo atribuir o longo silêncio ao grau de intranquilidade que este ano naturalmente exala pelo país afora. A política não deveria ocupar o lugar que ocupa na vida de cada um de nós, como gostaríamos que não!, mas ocupa, e tudo tende a ficar mais brutal se insistimos em achar que não. No momento, encontramo-nos entre o pior, o mais pior e o pior ainda etc etc, uma situação que é, sobretudo, o escancaramento da política como destruição da política - palmas para Lula e seu PT alianceiro.
O que Dilma, Serra, Marina e Ciro - principais atores em cena - representam de autêntico, de diferente, de si-mesmo, em relação a Lula? Efetivamente, nada. Ninguém ostenta um projeto novo para o país, como se não houvesse mais possibilidade de novidade em termos societários por aqui, como se a história tivesse chegado ao fim com a ascensão petista ao poder federal.
O que Marina e Ciro, com seu desejo ardente de dizer alguma coisa comovente, dizem é o que, nos limites da situação, o Governo Lula tanto já disse. Ciro, com seu ânimo nordestino, acaba até por acrescentar algo em termos de repolitização da discussão, mas Marina, com sua toada climática, apenas alimenta um perigoso desvio das contradições sócio-históricas que demandam a ação política.
E estamos apenas no início de um ano com eleições para cargos executivos e legislativos, federais e estaduais. Sem dúvida, já vimos quase tudo em termos federais e alguma surpresa, se houver, surgirá em termos estaduais. E aí Lula entra novamente no jogo, como um fantasma onipresente - bom, para seus aliados, fãs, fiéis etc, mas péssimo para a política em si.
Lula entende que o importante é o PT preservar o comando do Governo Federal, garantindo a vitória de Dilma Roussef, deixando os Estados em segundo plano, nas mãos de aliados como PMDB, por exemplo. Falando bem a língua do presidente: os Estados devem funcionar como bucha de canhão para o PT ganhar a guerra.
Há nisso, antes de mais nada, um reflexo de concepção autoritária de poder que o PT, assim como os demais partidos no Brasil, trazem de nascença. Nessa concepção, para lembrar Hannah Arendt, o mandatário ocupa o topo da pirâmide, donde comanda seus subordinados, distribuídos entre os demais níveis.
Lula está pensando, então, na manutenção de Brasília, do topo da pirâmide federativa, e assim dá o golpe decisivo na cultura política de base que o próprio PT fomentou ao longo dos anos 80. Claro, já naquela década, o sonho - que Dilma e os assessores de Lula mais prestigiados não sonharam juntos com os então xiitas - era chegar ao topo da pirâmide, mas não para fazer o mesmo que todos que estiveram lá sempre fizeram: usar o interior do país, o Brasil profundo, apenas como massa de manobra para a conquista e manutenção de um poder paradoxalmente impotente: o que o PT fez ou faz nestes oito anos de impossível na nova ordem social mundial? Nada, absolutamente nada.
Claro que uma retomada da cultura política de base neste momento seria um gesto até dignificante para o partido, um raro presente de aniversário de 30 anos. Mas não. O PT, que em Minas Gerais tem um Patrus Ananias, com tantos quadros em SP e Rio, prefere concordar com o presidente pretensioso e provinciano em que Lula se converteu, o homem que reduz a complexidade inerente à política à banalidade do futebol, que só se interessa por gols, gols, gols: ninguém mexe em time que tá ganhando.
Estamos perdidos, para não dizer outra coisa.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

CULTURA | A alma do lixo

ANELITO DE OLIVEIRA - Começo aqui a nova safra, com uma imagem de Valdeir do Rosário no cabeçalho substituindo aquela de Sophie Calle. Trata-se de um dos 15 trabalhos da série "Os enjaulados", com a qual o artista mineiro investe numa inquietante ressignificação de imagens e suportes encontrados ao acaso em suas andanças por Belo Horizonte.
Na imagem acima, quem se entremostra é o poeta italiano Cesare Pavese (1908/1950), aquele que só saiu da "jaula" existencial pela via do suicídio. Outras figuras seminais do século XX foram pinçadas pelo artista, do fundo do monturo editorial com o qual convive diuturnamente, para essa série, como o crítico de arte pernambucano Mário Pedrosa (1901/1981).
Com uma obra já extensa, que vem se construindo discretamente ao longo das últimas duas décadas, Valdeir do Rosário nasceu em Bocaiúva (1968) e está radicado há vários anos em Belo Horizonte, com passagens pelo Rio de Janeiro e Diamantina. Artista versátil, transita, desde o início, pelo desenho, pintura, objeto, colagem, instalação etc.
Participou de algumas exposições coletivas na capital mineira nos últimos anos e de algumas iniciativas culturais, não chegando ainda a reunir seus trabalhos numa exposição individual propriamente dita. Essa pouca aparição pública é parte, sem dúvida, de sua personalidade artística, diz algo sobre uma conduta bastante particular.
Distante dos holofotes, é artista na contramão da cultura do espetáculo, envolvido pelo próprio fazer, exilado em sua própria arte. Tal postura já se insinuava em seus primeiros trabalhos, quando investia na exploração de temas estranhos não só em relação à arte brasileira, mas também em relação à cultura e ao meio-ambiente brasileiros.
Um dos seus primeiros trabalhos, realmente digno de atenção, foi a tela "Cangurus", índice de uma espécie de deslocamento de imaginário que acabou por se tornar uma constante na obra de Rosário. "Os enjaulados" são, certamente, índice desse deslocamento, que seria natural se se restringisse apenas a conteúdo, constituindo um procedimento irônico, arte que se faz com recursos da antiarte.
Todavia, a questão fundamental de Rosário não é a arte em si, mas a vida, e não a sua vida - o que resultaria numa atitude meramente lírica -, mas a vida em geral, não só a vida humana, mas também a vida dos bichos, a vida das coisas, a vida das cores, a vida do mundo, como se vê em séries como "Bichos sem conteúdo", "Livro aberto ao mar", "Todos sob tempestade" e "Mundo sobre mundo".
A "anima", a alma, aquilo que move a vida, é o que transparece como alvo do seu gesto artístico, seja no excesso de cor, na economia do traço ou na busca incansável de objetos plenos de sentido pelas ruas da cidade grande, numa vontade incontível de encontrar a humanidade imersa no lixo produzido a cada dia. Uma "matéria animada", para lembrar Giordano Bruno, é o que se ressalta na obra de Valdeir do Rosário.
Conheça o trabalho do artista no site http://www.valdeirdorosario.com.br/