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sábado, 6 de novembro de 2010

ARTIGO | Coisa agônica

ANELITO DE OLIVEIRA - Livro sem destino, produção da Editora Unimontes, é o quinto trabalho de Osmar Pereira Oliva, um autor que está decidido a construir uma obra poética. Antes, apareceram As esquinas dos homens (2002), Canção obliqua (2004), Poemas do abismo & alguns ecos de Minas (2008) e Monumentos de palavras (2009). Com este trabalho, completam-se cinco publicações em menos de uma década. Realmente, não é pouca coisa num país onde publicar ainda permanece um desafio, sobretudo publicar poesia.
A poesia que pulsa neste Livro sem destino, assim como a dos livros anteriores, tende a nos remeter um pouco à razão dessa perseverança na caminhada. Não se trata de uma razão meramente literária, mas, sobretudo, de uma razão existencial, cuja compreensão impõe o tensionamento de dados cruciais tanto da experiência estética mais recente e mais remota quanto de uma certa experiência pensante, para não dizer filosófica.
Livro sem destino dá continuidade a um modo de relacionamento entre poeta e linguagem que destoa fundamentalmente daquele que se tornou hegemônico na literatura brasileira de fins dos anos 1950 até meados dos anos 1980, que tem num Mário Faustino, num Age de Carvalho, numa Orides Fontela e num Antônio Fernando de Franceschi, poetas reflexivos, algumas de suas melhores referências.
Esse relacionamento é marcado pela desconfiança sobre a possibilidade de a linguagem dizer totalmente o que o sujeito, digamos, deseja dizer a outrem, concretizando um diálogo na esfera intersubjetiva, para além do face-a-face cotidiano. Naturalmente, essa desconfiança teve e tem sua motivação num Mallarmé, num Montale, num Guillén, num Cabral, bem como num Wittgenstein, num Heidegger e num Adorno.
À luz desses autores, ou à sombra do drama de escrever que eles acabaram por fazer emergir, a linguagem, mesmo sendo linguagem poética, não seria altamente significativa para representar o campo do sensível. Seria caracterizada por uma pobreza endêmica, uma coleção de lugares comuns, um código convencionado para o uso de homens práticos, enfim, um obstáculo à expressão de uma inteligibilidade outra.
Esta questão, como se sabe, esteve no centro dos debates sobre poesia nos anos 1970 e 1980 e alimentou reações de todo tipo no meio literário – éticas, políticas, estéticas, morais etc – até cair no esquecimento nos anos 1990, especialmente no Brasil, quando a diversidade de procedimentos literários passou a ser aclamada como positiva, interessante, politicamente correta, conseqüência de uma exaltada democratização da cultura.
Um livro que hoje anda esquecido, como tantos que deram à poesia um lugar especial entre os saberes, era uma das principais referências para esses debates naquele tempo, sempre evocado: Linguagem e silêncio, de George Steiner. Ali se coloca, de modo claro e produtivo, a situação crítica dos poetas em face da linguagem: não se trata de falso dilema, mas de algo diretamente vinculado à dinâmica historial, ao mundo desalmado em que vivemos.
Nos poemas de Livro sem destino, a linguagem diz o que se passa na interioridade de um sujeito, o que por si só já é índice de uma espécie de reconciliação entre poeta e linguagem: vemo-los, dir-se-ia, de mãos dadas a conduzir um processo de significação bastante regular, sem sobressaltos no plano do enunciado. Todavia, essa regularidade parece atravessada por um desatino existencial, uma danação, que soa como índice de uma crise no plano da enunciação, ali onde, obviamente, o sujeito não domina o todo de que é parte.
Já a partir do seu título sugestivo, este poema, com o qual o livro se abre, convida-nos a pensar nesse plano, na totalidade do dizer:

Revelação


É da escuridão que saio sempre
E quanto mais a luz sobre mim incide
Mais me apago
Um corpo morto avulta e vai diminuindo
Até sumir de todo.


Ao reconhecer o lugar de onde emerge como ambiente privado de luz, o sujeito nos estimula a compreender o seu drama a partir de um horizonte romântico, como algo vinculado a uma essência humana de que ele seria o único portador, donde resultaria sua diferença em relação a outrem, sua qualidade de poeta. Isso numa primeira leitura. O que esse poema quer revelar – e revela já – é que a privação de luz constitui uma fatalidade peculiar ao sujeito, que a escuridão é sua condição, seu modo dramático de ser para o mundo.
Assim é que esse sujeito acaba por se revelar também como sujeitado nessa cena de enunciação em que se encontra envolvido, acaba por se revelar como objeto onde parece estar situado apenas como sujeito, como falado onde parece ser apenas o que fala. Deriva dessa situação, a meu ver, a fertilidade do poeta Osmar Pereira Oliva: estar imerso na escuridão, num lugar de indeterminações, alimenta um incessante desejo de saber sobre o “é” das coisas, desejo que se tem apresentado como a própria razão de ser da obra.
Nos livros anteriores, o foco desse desejo, da vontade de saber, foi a humanidade (As esquinas dos homens), a alteridade (Canção obliqua), a identidade (Poemas do abismo & alguns ecos de Minas) e a história (Monumentos de palavras). Agora, neste Livro sem destino, o foco é o corpo, que, ao contrário daqueles temas enfocados, atua sobre a linguagem como uma espécie de contraforça, exigindo, como forma de garantia mesma da inteligibilidade estética do que se diz, como referência de corporeidade, uma expressão mais orgânica, menos idealizante.
Nos poemas aqui reunidos, percebe-se facilmente a luta entre um conhecimento racional sobre o corpo, com todos os seus pré-juízos morais, e uma experiência de estar num corpo, de se saber, paradoxalmente, sendo em junção com o que não é, ali no meio da matéria impura, pecaminosa. Essa luta poderia cessar, alias, poderia até nem se dar, já que se aceitou, como dádiva cristã, o sacrifício evocado na epígrafe. Mas não: um sujeito luta em meio a um discurso, e a poesia se afirma, uma vez mais, como coisa agônica, sem destino.


Texto publicado como prefácio a "Livro sem destino", de Osmar Pereira Oliva, Editora Unimontes, 2010. Algumas alterações foram feitas para esta publicação.

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