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sábado, 31 de outubro de 2009

JORNALISMO | Incidentes de outubro

ANELITO DE OLIVEIRA - O mês de outubro começou e terminou com dois incidentes terríveis em Belo Horizonte, os quais, além de me chamar a atenção, acabaram por me tocar, chocar, entristecer, por razões humanas e culturais: o AVC sofrido pelo jornalista, crítico literário e poeta Alécio Cunha e a morte prematura do artista plástico Fernando Fiúza. São dois dos nomes mais expressivos do cenário cultural e jornalístico da capital mineira, com uma contribuição extraordinária, constante, há anos, e pelos quais sempre tive respeito e admiração. Não cheguei a conhecer Fiúza pessoalmente; talvez o tenha até avistado alguma vez - sua imagem na foto (no "Hoje em Dia" de ontem, diário onde Alécio construiu sua brilhante carreira de jornalista cultural) me parece familiar, correspondendo, alias, à sobriedade que sempre percebi no seu trabalho.
Alécio Cunha, por sua vez, sempre foi um entusiasta das ações culturais que encaminhei ao longo dos anos 90 em Belo Horizonte: o jornal "Não", a revista "Orobó", os livros da Orobó Edições, o Suplemento Literário de Minas Gerais; foi o primeiro a revelar um olhar pró-ativo, na imprensa belorizontina, sobre a minha ida para o Suplemento, atitude que se manteve ao longo dos quase cinco anos em que estive à frente da criatura de Rubião, mesmo nos momentos em que, no próprio “Hoje em Dia”, o poeta Marcelo Dolabela, movido por questões menores, pedia renitentemente ao governador a minha “cabeça”. Super-sociável, Alécio, no exercício do jornalismo, sempre esteve ao lado da generosidade, da solidariedade, configurando-se como um exemplo de dignidade profissional.
Sempre me vi como um amigo seu e sempre o tive como um amigo raro, um grande companheiro de geração, um dos poucos em que se encontram inteligência e sensibilidade sinceras. Quando lancei meu primeiro livro solo em 2000, o fracassado Lama, Alécio estampou notícia e resenha na capa do caderno de cultura do “Hoje em Dia”. Quando publicou seu primeiro livro em 1999, o surpreendente Lírica caduca, escrevi uma resenha no Segundo Caderno do jornal "Estado de Minas", acolhida por um outro escritor e jornalista mineiro admirável, Jorge Fernando dos Santos, que a estampou com o título de “O peso e a prisão em Lírica caduca”. Com o título original – “O peso e a prisão” -, segue aqui essa reflexão sobre Alécio poeta nascente, na esperança de tantos outros encontros, projetos, conversas pela vida.

O peso e a prisão

ANELITO DE OLIVEIRA - O primeiro livro de Alécio Cunha, Lírica caduca (Por Ora, 1999), encontra seu mérito, sobretudo, na coragem de um “eu” confessar seu fracasso, ainda que, talvez, contra sua própria vontade: “(não suporto)” , está escrito ali no encerramento de um poema que parece se empenhar justamente em descrever uma paisagem poética, um cenário de poesia . O encerramento se conecta imediatamente com o título do texto, que é “Anjo manco”, o impossibilitado de caminhar normalmente, aquele que, arrastando-se, não consegue ir muito longe, logo se cansa e para. Realmente – pensamos ao final da leitura – era preciso que um “eu” se anunciasse para que aquele título alcançasse uma maior coerência: a caminhada é insuportável porque falta segurança nas pernas. Contudo, se não estamos no chamado “mundo real” de que falamos comumente e sim numa “realidade de signos” (Haroldo de Campos), é válido perguntar pelo motivo dessa insegurança.
Por força do lugar geográfico que o homem habita, este lugar-Minas, e da atmosfera poética brasileira que o artista respira atualmente, o poema de Alécio Cunha é concentrado em si mesmo, não nomeia nada além de seu próprio corpo que, na verdade, não passa de uma sombra, a ilusão de um corpo, um mito apenas, logo: o autor apenas deseja nomear quando pensa estar nomeando. A insegurança do poeta, seu reconhecimento metonímico indireto, como “anjo manco”, desestabilizado, demonstra uma certa insatisfação com essa incapacidade do poema, estabelecida pelos seus censores disfarçados, de nomear algo mais que si mesmo, de sair de sua sombra. Alécio Cunha não concorda com esse veredicto, não suporta esse quadro supostamente exótico, quer alcançar o fora do poema, trazer esse fora para dentro, mas o poeta, sua máscara-mecanismo para realizar tal gesto, é manco, falta-lhe agilidade para dar o salto, falta-lhe aquela “rapidez” sustentada por Ítalo Calvino como uma das qualidades estéticas fundamentais para o próximo (este) milênio.
Desta visada, outra questão se apresenta, colocando-se mesmo como pano de fundo do mínimo drama do poeta: a tradição poética, que tem inegável presença no trabalho em questão, é um peso, mas o instante poético, a atual cena neoparnasiana que se verifica no Brasil, é uma prisão. Depreende-se um posicionamento ativo diante da tradição mais longínqua e mais recente em poemas como “Pós-Baudelaire”, “Nau Caetana” e, principalmente, “Lendo Drummond”, que tem a astúcia sempre desejável de articular texto e lugar: “exigir da pedra/nenhuma explicação/ pelos caminhos”. Dir-se-ia que o poeta tem consciência de que é preciso desdizer, romper com uma “lírica caduca”, bem como é preciso colocar algo no lugar, pois esse algo é que denuncia a presença de alguém por trás de uma linguagem. É preciso dizer, mas dizer o quê? De uma latente incerteza decorre uma frustração generalizada neste primeiro livro de Alécio Cunha, um constante “fracasso-êxito” (Sartre) que aponta para uma colocação do desatino da existência moderna antes das convenções morais pós-modernas.
Frustração encontra-se, por exemplo, no final do poema que dá título à pequena coletânea, “Lírica Caduca”, e em “Geográfica”. No primeiro: “há uma gota de sangue/em cada luar”; no começo e fim do segundo: “desesperar resposta/desesquecer o tapa/ (...) sumir do mapa”. Ambos estão longe de serem perfeitos do ponto de vista da construção, vão-se enfraquecendo lentamente como se quisessem desistir de sua própria realização, como se se realizassem a contragosto, um enfraquecimento que acaba por constituir o anteclímax da frustração final. No rastro dessa frustração é preciso ver, contudo, o traçamento de uma rápida cartografia da “agoridade”, do espaço-tempo que reúne o ontem e o hoje, passado e presente, Modernismo e Pós-vanguarda. Essa frustração é uma contribuição significativa do poeta Alécio Cunha, principalmente à medida que faz emergir Mário de Andrade (“Há uma gota de sangue em cada poema”) num ponto sanguíneo, o que parece estar dizendo, analogicamente, que o poeta só pode existir como tragédia, não?
Texto publicado no jornal Estado de Minas, Segundo Caderno, em 1999, aqui redigitado por Guilherme Fernando, menino nosso, que Alécio conheceu quando pequeno e sobre quem me perguntava duas semanas antes de adoecer, no mês de setembro último, quando nos reencontramos na redação do Hoje em Dia depois de quase cinco anos de distanciamento em função dos meus muitos deslocamentos.

JORNALISMO | 17 vezes ali havendo

ANELITO DE OLIVEIRA - De fato, chegou ao fim, há dias, o segundo movimento sob o signo do que estou entendendo por havência – e, desde então, contemplo o silêncio a distância de quem estranha. Estou reconhecendo, nesta última noite de outubro, que a 17a carta foi a última, deve ficar como a última, contrariando até a mim mesmo, que relutava que fosse a última: escrever é resistir a desistir, desejar o desejar. Mas continuar dizendo assim, tentando dizer – já que admito, de um certo horizonte, a possibilidade de nada efetivamente ter sido dito 17 vezes ali havendo -, seria ultrapassar o limite que, neste acontecimento escritural, interessa apenas forçar: além dali é surreal, ainda que ali mesmo o seja a seu tanto já também. O que há, uma havência, está no limite do que não há, da ausência. As cartas se destinaram a essa situação, a dar a ver uma cartografia do corresponder, a havência disso que se faz contra a solidão.

domingo, 25 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima sétima carta




devo parar de te escrever.
não porque você esteja suficientemente escrita, mas porque a vontade de escrever é só sua - e infinita: uma espécie de morte.
a escrita, lançada daqui, não te alcança.
no fundo, te perde no desejo mesmo de te alcançar
{você bosque demais.
pede notícias, exterioridades, significados -
sempre a ânsia de ter o mundo mais perto.
não há o que remeter para além deste -
o remetente.
a carta é o que não chega a ser -
e, na sua insuficiência,
arfando como um urso na neve,
é.




lembranças.




eu

sábado, 24 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima sexta carta





por si só, bastante como se apresenta, incessante movimento no mesmo lugar, indo, vindo, indo - mas não, falta, falto ali, devo faltar,
então, explicações, palavras contra o que está sendo, para desfazer o que quer ser, que ainda não chegou a - e a janela, aberta, fecha
-se, ali, lembra, não mais percebe o aberto, a eternidade se dando a ver, como no poema de rilke, sem a apreensão da finitude, puro animal vendo,
a lembrança, os comprometimentos, o trabalho o trabalho o tripalium!, o mundo como tortura, os outros como inferno - explicações,
o verdejante amanhecer dos singelos povoados, o amarelecer da tarde sobre o mar enquanto andamos -




sem palavras.





lembranças.





eu

LITERATURA | Criação

décima quinta carta


era para ter sido enviada de lá, com o que se passava [relevos, eucaliptos, casebres], à medida que, sem chegar a pensar [desamparo, operárias, imundície]. todavia, resistimos a nós mesmos, como se houvesse possibilidade de sair integralmente disso que sempre foi a condição intramundana [um clarão na merda], como se houvesse saída para fora quando tudo é absolutamente dentro [percepto]. pensamos, duvidamos, voltamos - com a letra no bolso.
lembranças.
eu

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima quarta carta



ouvindo nelson cavaquinho outro dia, depois de tanto tempo, aquele sol que não pode viver perto da lua, não é que não queira, é que não pode,
o que é o sol?,
o que é a lua? e,
finalmente,
o que é viver? - é no que penso agora. sempre o distanciamento, sempre a impossibilidade de coexistência, a tal ponto que vai ficando possível, como não?, falar em incompossibilidade de mundos, falar de gritantes contrariedades.
estava tão claro,
e como está escuro!,
tudo se mostrava como agora se esconde.
perto.



lembranças.



eu

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima terceira carta



por tantas vezes tem sido a primeira vez. penso, como não?, em zenão. você diz, quer dizer, que não, que haja progressão - de um a... devemos chegar a algum lugar, devemos aportar - ítaca!
pois é. somos o que aconteceu depois - o burguês, a burguesa, o trabalho, o dinheiro, o stress, o desencantamento, o fim.
a não progressão, o estado de somente estar, é um nunca chegar em casa para nunca estruturar sociedade nenhuma, para nunca chegar a um mundo onde até as tartarugas perdem a cabeça.



lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

décima segunda carta


digamos que, nesta tarde, alguém tivesse ido até o portão, pensando ter ouvido algo que nem mesmo bob, o pequeno cão adoentado, ouviu.
abriu, e ficou esperando que alguém se apresentasse. ficou ali, do lado de dentro, durante muito tempo, esperando. quem era, não se apresentou.
o que lhe restou foi apenas fechar o portão depois de tentar, insistentemente, ver quem é que estava ali, que visitante havia chegado sem avisar.
terá isso algum significado muito claro, tanto que enunciá-lo lhe parece redundante demais. digamos apenas que você tem estado no mundo, sem dúvida.



lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

décima primeira carta



você me pergunta pelas coisas. sempre o desejo de saber, como se eu soubesse algo sobre alguma coisa. você, certamente, sabe - e desejo que não me diga nada.
mas as coisas, não há dúvida, existem, dão-se a ver - e em certos momentos fica mesmo impossível não vê-las.
por exemplo, o telhado das casas do alto daquele mirante. parece outra cidade. quando tudo começou, não pensei que chegasse a tanto, que haveria um limite.
todavia, não estou bem certo se aquilo que vejo dali realmente existe, se chega a ser uma coisa ou é viagem minha. talvez seja.
quando penso nessa distorção entre o que vejo e o que sinto aqui, tendo a concluir que não devo atender a seu pedido de informação.
concluo.


lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

décima carta


sempre digo que nada deveríamos,
que deveríamos, alias, parar de dever, mas você continua comprando, comprando, essas sacolas de angústia de marca, tudo vai-se acumulando, acumulando, os comunicados ofensivos chegando na caixa de correios, credores, como lobos, uivando lá fora,
o ideal seria jogar fora, amontoar tudo na porta do inferno,
que você insiste em chamar belamente de shopping,
mas você se preocupa, no fim das contas, ainda se preocupa com a sustentabilidade ambiental, não quer produzir mais lixo, quer salvar o mundo, você, obama e marina, apesar do capitalismo, com a colaboração dos santos capitalistas,
uma coisa não tem nada a ver com a outra,
tem?



lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

nona carta




você ainda acredita na verdade, chora quando alguém lhe diz algo comovente, por exemplo, que margarida, a amiga, está morrendo,
mesmo que seja um vegetal, mesmo que quem lhe diz isso esteja se referindo a uma preocupação com o jardim,
tanto faz,
a verdade, para você, é isso,
alguém dizendo diferentemente alguma coisa, é a verdade para você, segundo o que você concebe como verdade,
e é assim mesmo que você vai-se revelando a própria verdade,
você é a verdade,
quando penso em você,
e como tenho pensado!,
penso exatamente nisso: alguém chorando desconsoladamente pelo mundo




lembranças.




eu

sábado, 10 de outubro de 2009

CULTURA | Inclusão social pela poesia

ANELITO DE OLIVEIRA - A 23a edição do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético está acontecendo em Montes Claros desde o dia 04 de outubro, com a promessa de chegar até a próxima semana, dia 13, 14. Há de chegar lá, como todo ano, mas é essa disposição de efetivar uma travessia que me parece demarcar a ambição desse evento - e só aquilo que é ambicioso, independente de onde ocorra, deve nos interessar na cultura, sinal de força humana. Nessa sua extensão, o Psiu revela a intensidade com que lida com seu objeto, que apenas aparentemente é a poesia: no fundo, seu objeto é a inclusão social pela poesia.
Na sua longa e admirável trajetória - a maioria dos projetos culturais morre nas primeiras edições -, o Psiu Poético recebeu e continua recebendo nomes proeminentes da cultura literária e musical brasileiras: Waly Salomão, Arnaldo Antunes, Jorge Mautner, Thiago de Mello, Adélia Prado, Alice Ruiz, entre outros. A participação, ultimamente, do inquieto poeta e performer Fernando Aguiar, que mantém o fervor da invenção em Portugal, acena para uma relevância que o evento tem ganhado para além do país. A tendência é, sem dúvida, essa relevância crescer como exemplo de resistência a um mundo cada vez mais contrário à poesia, mais fútil.
Todavia, o que distingue decisivamente o Psiu é o arrastão que consegue promover a cada ano de tantos poetas e curtidores de poesia, gente que emerge das margens de Montes Claros, cujo centro é historicamente sem graça, áspero demais. Gente que se encontra com outras gentes, que se deslocam de vários lugares igualmente marginais do país, e aí se configura o grande MSP - Movimento dos Sem Poesia - nos dias de Psiu, suplicando atenção - psiu! - para sua existência no campo social. Isso é massa, como dizíamos no momento em que o evento surgiu, naqueles ternos anos finais da década de 80.
Depois de tantos anos, não há como não reconhecer uma comunidade Psiu, que tem como referência de sociabilidade a poesia. Não se trata de uma Geração Psiu, de um grupo organizado apenas em torno de valores estéticos - e isso é positivo. Psiu é mais um caso de sociedade do que de literatura, ou mesmo de poesia enquanto fazer, enquanto atividade de artífices. Tudo, esteticamente proposto, é permitido no evento porque o que interessa é a presença de pessoas num encontro com o encantamento, com a dimensão negada pelo pragmatismo cotidiano. O Psiu Poético é a ação cultural mais significativa, mais original, da Prefeitura de Montes Claros.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

oitava carta


fico pensando no que significa assumir a prosa, já que é imprescindível para chegar até aí, no mundo, onde você escuta rádio aeme e lava roupa -
é começar a abordar isso, como polícia, que é como sempre se aborda, baculejos.
é difícil aceitar um conhecimento por invasão, tomando o poder no espaço corpóreo, tocando em tudo como se apenas coisas, órgãos, fossem -
mas, sim, é assim que tudo fica mais claro, que a existência se torna algo absolutamente claro. mas também absurdamente simplista.
não, assumir a prosa pode ir além do mundo onde a marquesa saiu a tantas horas, que tanto incomodava valéry, para atingir a possibilidade da chegada - inesperado sentido -
na noite, sem conhecimento, sem querer dizer nada que você compreenda e responda representando - que o escuro nos esconda.


lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

sétima carta
não é que queiramos, mas a descontinuidade nos constitui. se eu disser o seu nome aqui, pensarão que diz respeito apenas a você. não. claro que não. a descontinuidade é algo ambivalente, ou mesmo polivalente, vale-age pluralmente. você não ia, mas dizia que ia. eu ia, pelo menos desta vez. fui. lá estava o lugar - deserto, à espera de algum sentido, ou de um outro sentido, certamente, sempre há sentido. sabia que a chuva a impediria de chegar lá. a chuva desmanchando o cabelo. essas coisas prosaicas: chuva, cabelo, noite. mas o sentido de existir nunca passou de prosaicos desmanchamentos: alguém andando na chuva - desmanchando-se. o contrário disso é alguém olhando a chuva de dentro de casa. tudo tem nome, e diz tão pouco. não vale a pena dizer nada sobre isso. claro, não estou dizendo. espero que não diga nada.
lembranças.
eu

LITERATURA | Criação

sexta carta


recebi a notícia,
e não tenho resposta nenhuma a dar - e também não hei de comprar alguma.
talvez seja interessante que não haja resposta, que sua notícia, afirmativa, fique no ar das perguntas.
você diz que - afinal,
aconteceu. sim, os acontecimentos daí,
os daqui, os de longe, todos são interessantes, mui interessantes,
não é?


lembranças.


eu

LITERATURA | Criação

quinta carta


esse jeito de viver é seu,
o de morrer será de outra gente, daqueles que não passam horas pensando nas possibilidades impossíveis.
esse mal-estar na possibilidade -
as mesmas palavras para as mesmas coisas para um mesmo mundo, tudo funcionando tão bem como se fosse feito para funcionar.
de fato (sempre, quando não há fato nenhum, nem mesmo interpretação),
a intransitividade como expressão do que não cabe na ordem estabelecida,
e é, portanto,
degredo, silêncio,
segredo.


lembranças.


eu

LITERATURA | Criação

quarta carta


assim, no meio do que não foi, nasce alguma coisa
ainda, a vida.
impossível e necessário começar a entender, mesmo se tudo está ausente.
o que havia lá?
vinha correndo pela rua, como se estivesse a pé.
queria chegar antes de alguma coisa.
as palavras saltavam de suas mãos.
quem era você?


lembranças.


eu

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

CULTURA | O que dizer agora?

ANELITO DE OLIVEIRA - A poesia e a política sempre foram, para mim, duas possibilidades extremas de ação, uma conectada ao "eu" e outra ao "mundo". Nenhuma das duas jamais chegou a ser um absoluto, algo bastante, são dimensões relativas. Ao me ater ao eu nunca quis falar de algo apenas interior, tampouco quis falar de algo apenas exterior ao me ater ao mundo. Daí que, embora situadas nos extremos da havência, no rastro do "Il y a" lévinasiano: da situação de estar havendo no mundo, poesia e política nunca foram incompossíveis - para mim, somente.
A questão é que a ação poética e a ação política nunca foram, também, apenas o que eram ou são ainda para mim, algo com sentido suficiente em mim mesmo. Quando me encontro com uma e outra possibilidades de dizer-fazer, um jogo já está definido em termos de verdade (poesia) e mentira (política), poesia e política já estavam definidas como extremidades incompossíveis. Poesia e política não eram apenas, feliz e infelizmente, o que eu sentia ou o que eu pensava, eram menos, eram mais. Poderia renunciar às duas, quimeras dos antigos, leviataneidades - sim, eu poderia.
Mas se a poesia fosse apenas o que eu sentia, seria algo circunscrito a uma pessoa, a um ego. E se a política fosse apenas o que eu pensava, seria algo igualmente circunscrito a uma pessoa, a um ego, também. Nego. Nego tanto que cheguei a tentar dizer esta negação tantas vezes, como num poema chamado "eu", aparecido no Suplemento Literário de Minas Gerais de junho de 99: "sei que digo, e o que digo sou eu/ para além do nome". Há o outro na poesia, não como objeto, mas, sobretudo, como sujeito, ou, no limite, como o "subjetile" de Artaud tensionado por Derrida, um terceiro.
É possível banir o outro, e nesse banimento - tão constante na poesia hegemônica no país hoje - revela-se a produtividade de a política não ser o que eu pensava, ou ainda pense ser. O outro é banido por um excesso de racionalização, que culmina sempre em tirania da razão, numa anulação da política, portanto. A política é também o que eu sinto, assim como a poesia é também o que eu penso - também, não só, porque os outros contam. A bem do outro, é preciso sentir e pensar com agudeza, distinguindo poesia de poesia em poetas, e política de política em políticos. Lula chorando no Rio, o Psiu Poético berrando no sertão.