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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

CRÍTICA | Anelito de Oliveira


Convite ao desvio


Compreende-se facilmente o silêncio da crítica, ou do que ainda existe sob esse nome, em relação à poesia, especialmente aquela que se apresenta no suporte livro. Não é fácil pensar o que se mostra em palavras, rimas, ritmos, estrofes, quando temos plena consciência – ainda que também saibamos se tratar de uma consciência possível – de que a questão não se esgota nisso que vemos e lemos. Ouro Preto, livro de poemas de Mário Alex Rosa recentemente publicado pela Scriptum, é exemplo da complexidade da poesia escrita e enfeixada em livro. Aparentemente, é uma poesia conformada ao enunciado, que não teria nada a nos dizer para além do que já está dizendo, uma linguagem que se bastaria a si mesma. Assim, uma leitura ideal dessa poesia seria aquela imanentista, subordinada ao texto, “close reading”. Mas, para além da aparência, Ouro Preto é, já a partir do título, um convite ao desvio do visível, do que se dá a ler, em função do que, numa experiência lírica muito honesta, que é a desse autor mineiro, escapa à sistematização, a um pensamento ainda que sensível, “poético”. 
Ouro Preto nos convida a ultrapassar a exterioridade – uma cidade – em direção à interioridade, ao sujeito. Nesse movimento – pensado, obviamente – é que uma voz vai-se distinguindo de outras tantas vozes que abordaram Ouro Preto – de Cláudio Manuel a Affonso Ávila, passando por Murilo e Cecília. Não é só o timbre do poeta que é diferente, mas, sobretudo, o “logos” que subjaz a essa voz, o seu modo de pensar Ouro Preto, que é “sentimental”, no sentido schilleriano, marcado pelo sentimento da perda, do desligamento, de um choque, enfim, no plano afetivo. A cidade de Ouro Preto, com seus lugares hoje catalogados como históricos, é o cenário do objeto dessa perda, que é o amor. Falar de Ouro Preto, ao longo de todo o livro, significa falar desse amor perdido, e vice-versa, o que resulta numa conjunção muito fértil – porque problemática – de elementos públicos e privados. Fértil porque estimula a criação; problemática porque subordina a criação a um horizonte ideal, que é o de um amor romântico, um horizonte afim, consequentemente, de uma Ouro Preto ideal, cultivada por um sujeito que, no limite, passa a ser também idealizado.
À medida que joga com dados hauridos na experiência, numa relação amorosa, Alex Rosa demonstra que não é um poeta idealista no sentido forte. Suas cenas de amor se passam na Ponte de Antônio Dias, na Casa Guignard, na Ponte de Marília, na Praça Tiradentes etc. Esses dados concretos, reais, não fazem dele um poeta realista, claro, mas nos levam a lê-lo, no mínimo, como um poeta de “consciência crítica”, para recordar Affonso Ávila. O procedimento idealista que permeia Ouro Preto, o pessoano “fingir que é dor”, porta uma intencionalidade, evidentemente (a consciência se define pela intencionalidade, pensava Husserl, como se sabe), sobre a qual é preciso refletir. O livro de Alex Rosa se coloca sob o signo do diálogo, como nos alerta o poema de abertura, com a tradição literária, uma intenção implícita na recorrência a Ouro Preto, “cidade letrada” (Rama) por excelência.
Ressoando Gullar, Drummond, Alphonsus, o poema de abertura, “Cantiga que não responde”, inscreve, no rastro da pergunta renitente (“Quem poderá dizer”, “Quem poderá responder”, “Quem salvará a menina”), o desejo de um poeta de que a poesia possa “resolver” algo na ordem do simbólico que, por sua vez, “ordena”, desde o âmago, o real socialmente compartilhado, o plano com que lidamos na cotidianidade. Mário Alex Rosa, não há dúvida, acredita no poder ordenador da poesia, o que se percebe na cautela com que elabora seus poemas, na vontade inequívoca de manter o controle do que escreve. Isso explica, em termos conteudísticos, por que a abordagem do amor perdido nunca descamba para desabafos, nunca resulta nas “baixarias” do discurso amoroso. O ideal estético, de uma poesia bastante disciplinada, “limpa”, pensada, prevalece mesmo em face da premência, assentada no sofrimento, que o sujeito tem de falar de si, de abrir seu “coração”.
Esse ideal estético é antibarroco ou, se quisermos, defensivo em relação ao barroco, como o poeta revela em “Diariamente na Ponte de Marília”: “A rima é velha, até mesmo gasta,/ mas volto a ela para dizer que/ não sou homem barroco,/ condição tão vária; estou oco?/ Estou louco?/ Não explica nada”. Este poema (que não é simples, que, como tantos do livro, apenas se traveste de simples, é idealmente simples) é desnecessário para a configuração do perfil antibarroco do poeta. Seu desejo de ex-plicação – isto é: de dissolução das “plicas”, das dobras que configuram o barroco, como postula Deleuze -, uma racionalização para-clássica, fundamenta o gesto poético em Ouro Preto: ex-plicar um evento amoroso, ex-plicar uma perda, ex-plicar lugares onde se passou o amor perdido. Poemas como “Notação”, “Exposição”, “Da falsa formação”, “A arte de Elizabeth Bishop”, “Conversa num café” e “Lendo E. D.” escancaram esse desejo de ex-plicação por parte do poeta, um desejo de clareza contrário, à primeira vista, ao barroco.
Todavia, tão – ou mais – importante do que o poeta diz em “Diariamente na Ponte de Marília”, ou seja, que não é homem barroco, é o que ele também já está dizendo no rastro da negação: que ser barroco não é uma questão apenas de significante, de rima, de superfície, mas também de significado, de substância. Esse poema é falsamente simples, volto a dizer, porque não se esgota no que diz, no enunciado, na relação de um sujeito com seu objeto amoroso, porque implica a tradição literária, porque pensa a partir de um poder ordenador da poesia, no qual o poeta acredita e acaba por ser um dos complicadores do seu gesto. Assim, diz ainda o poema em questão: “O vale cedo ou tarde/ invade a tua casa, a tua cidade./ Não espera Marília passar,/ ela um único pastor/ soube amar”. 
Em face deste desdobramento, que sugere uma intempestividade afim do barroco, pode-se dizer que, apesar do ideal para-clássico do poeta, o mundo ouropretano visado se barroquiza, entra em ebulição e contagia o sujeito, colocando-o numa situação crítica. Daí, no desfecho do poema, lemos: “A minha rima é pobre/ mas ainda trago feito nobre/ o amor que ora te ofereço/ na desgraça de quem por pouco/ não se mata./ Mas, se por azar outra vez errar,/ esse diário não será tarde demais?”. O mais importante neste poema irregular, errado e errante, não é a questão  esteticista, a recusa do barroco e o intertexto com Gonzaga, mas a sincera impossibilidade, da parte do sujeito, de não jogar com a própria vida no ato de criação, o que significa acionar um conjunto de forças que o sujeito não controla totalmente, não domina, forças que, na realidade, dominam esse sujeito, oprimem-no e o obrigam, por outro lado, a travar uma dolorosa luta pela emancipação.
Em poemas como “Ouro Preto”, “Oito de julho” e “Visita”, os mais consistentes do livro, assistimos à narrativa dessa luta. Não é uma luta circunscrita ao poema, a drumondiana luta com palavras, mas uma luta pela compreensão do entorno do outro e de si. O que anima essa luta é o ideal, sem dúvida, da poesia como força ordenadora, mas esse ideal esbarra sempre nos “muros” da história (“os homens endurecidos/ não sabem abrir porta”), que se revela uma contraforça desordenadora. No desfecho de “Visita”, Mário Alex Rosa escreve que “Este poema apenas tangencia/ a falta que nunca acaba/ o fim de todas as coisas”. Trata-se de uma visita a Ouro Preto, à história, à tradição literária, ao amor romântico etc. Trata-se de uma visita movida por um ideal e, ao final, um reconhecimento da frustração desse ideal. Mas é justamente nesse reconhecimento que se revela o fundamento crítico da poesia de Ouro Preto que, no nível do enunciado, não é tão fácil perceber, mas que está ali, para além do dito, na forma cultivada há tantos anos por esse discreto e comovido poeta.       

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

DEBATE | Anelito de Oliveira

Apropriações de Drummond


O que está acontecendo com a cultura brasileira hoje? Por que tanta recorrência a Drummond? Claro, está fora de questão, como sempre esteve para mim, a importância da obra de Drummond na poesia moderna em geral. Mas durante muito tempo - dos anos 60 aos 90 -, Drummond era mais uma fotografia na parede das elites culturais brasileiras do que um poeta para se ler e se cultuar. Aliás, era mais uma personalidade poética, uma imagem romantizada de poeta, que uma obra. Se não fosse a atividade de cronista, Drummond sequer tinha ficado na mídia durante a longa noite ditatorial, período em que escreveu, inclusive, muita poesia de péssima qualidade, como os versos de circunstância em homenagem a figuras econômica e politicamente importantes.
Hoje, há uma tendência a um culto incondicional a Drummond, acrítico, que parece ter a ver com a eterna consciência culpada das elites brasileiras. Parece que a proposta é perceber um Drummond-porto-seguro, altamente positivo, que, se existe, nunca foi nem será o mais interessante. O que interessa é o Drummond instável, que não encontra explicação para nada, que está sempre à beira do suicídio, o Drummond-José que se reconhece confrontado com as estruturas sociais de um país velho demais, colonial demais, casagrande demais, mineiro demais. O que interessa - e parece que não é o que está interessando nas apropriações conservadoras, acadêmicas, indébitas, de Drummond - é o Drummond que escreveu: "o ódio é o melhor de mim". 
Que Caetano, Chico e Fernanda, que não ignoram o fundamento agonístico da experiência poética, contribuam para mostrar a todo um povo boçal - deseducado pela Globo, pelos Cadernos Culturais e por medíocres professores de literatura - quem é realmente o poeta Drummond que tanto respeitamos.


NOTA: Comentário escrito no Facebook em face de notícia sobre leitura - ver no Youtube - que Caetano Veloso, Chico Buarque e Fernanda Montenegro fazem de poemas de Carlos Drummond de Andrade. www.facebook/anelitodeolivei

domingo, 20 de janeiro de 2013

DEBATE | Anelito de Oliveira

Questão cultural hoje

O que se passa no país como um todo hoje é uma destruição da cultura pelo Estado e seus comparsas. Não existem Secretarias de Cultura em Minas Gerais, na prática, tampouco Ministério da Cultura e outros órgãos de potencialização da cultura. O que existe, na verdade, são instâncias de negociação da cultura em prol dos negociantes do país. Quem é a Secretária de Cultura de Minas Gerais? Quem é a Ministra da Cultura? Não reconheço nenhuma autoridade nessas figuras para falar pela cultura. É muito compreensível que sequer falem pela cultura, já que foram agraciadas com os respectivos cargos para calarem sobre a cultura. 
Como entender, aliás, que PT e PSDB não se diferenciem radicalmente em relação ao tratamento institucional da cultura? Claro que a democratização, que caracterizou a gestão Gil/Juca - na linha do que ocorreu em outras gestões do PT - é um traço importante, mas ainda foi e é pouco. Não há nem haverá jamais gestão cultural autêntica no país sem enfrentamento frontal dos valores da indústria cultural, que significa enfrentamento dos paradigmas das elites estadunidenses arraigados nos seus sócios nos canais de TV, nos jornalões, nas gravadoras, nas rádios, nas editoras, nas produtoras e distribuidoras de cinema e até nas universidades. 
Os gestores de cultura que nos são impostos a cada dois e quatro anos não passam, na maioria das vezes, de bobos da corte, encantados com o cargo que ocupam porque sabem, no fundo, que num país com densidade crítica jamais seriam lembrados para representar uma área decisiva para toda sociedade. Em síntese, é este meu ponto de vista: nós, que estamos do lado da cultura, precisamos enfrentar o Estado, não pessoas - ministrazinha, secretariazinhas e secretariozinhos de uma ideia equivocada, burguesa, mesquinha, de cultura, ou seja, cultura como alta cultura. 
Enfrentar o estado é tarefa coletiva, política, organizada. Precisamos retomar os Encontros populares de cultura, Festivais de cultura, publicações alternativas, movimentos culturais os mais diversos, inventar coisas radicais, puxar, sobretudo, um grande movimento contra as safadas leis de incentivo à cultura, esse expediente neoliberal que engessou os fazedores de cultura no país. Como disse o saudoso Itamar Assumpção, numa canção-manifesto do seu "Pretobrás", "porcaria na cultura tanto bate até que fura". 
As elites - e agora me lembro de outro músico maldito, Mr. Elthomar Santoro Jr., de uma cidade onde o prefeito ousou até acabar com a Secretaria de Cultura, a Montes Claros de Darcy Ribeiro! - "emporcalharam" a cultura brasileira. Precisamos lutar, lutar e lutar contra esse estado de coisas e não nos beneficiarmos, como muitos espertos têm feito, desse estado (deplorável) de coisas. Na cultura, como nos demais departamentos da sociedade brasileira hoje, falta coragem e sobra covardia.


NOTA: Texto escrito como comentário a uma postagem do poeta, jornalista e pesquisador João Evangelista Rodrigues no Facebook. www.facebook/anelitodeolivei

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira

A lebre e a serpente



1. Fricções


Ao final da 10ª Flip (Festa Literária de Paraty) 2012, dia 08 de julho, o poeta carioca Carlito Azevedo dedicou um texto a Carlos Drummond de Andrade, homenageado pelo evento, com o título de “Querido príncipe”. O trabalho foi estampado na última página do Caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, no mesmo dia. Azevedo teria levado o público às lágrimas, segundo o noticiário do dia sobre o evento, com a leitura do texto, impacto decisivo para a classificação e consagração do trabalho pelos formatadores dos fatos, jornalistas, editores. Em função do que causou ao público, da comoção provocada, “Querido príncipe” não seria apenas uma carta a Drummond, mas já um poema em prosa, um caso de poesia, portanto. Será que é mesmo? Suspendendo o senso comum sobre poesia, podemos friccionar esta pergunta em várias direções, racionalizá-la de modos diversos, sem pressa de encontrar uma resposta.
Um primeiro modo: em direção à poesia; um segundo: em direção à cultura em geral; e um terceiro: em direção ao autor.  Definir “Querido príncipe” como um caso de poesia, como um poema em prosa, é admissível, claro, mas problemático. A reação do público, qualquer público, é momentânea, ocasional, e não acompanha o produto estético, seja qual for, senão como referência distante, primária. Como tal, não deixa de ser importante – que o digam Jauss e seus sucessores na estética da recepção –, mas é sempre uma importância relativa, que não pode ser absolutizada a ponto de constituir um selo de qualidade total de uma obra de arte. Assim, lendo “Querido príncipe” na Ilustríssima - tudo muito machadiano, claro, ou brasiano -, fora da festa literária, tendemos a estranhar negativamente aquilo que, no contexto de uma homenagem, soa familiar.
Trata-se de estranhamento produtivo, que tem a ver com um desejo de perceber o que lemos de um modo mais sagaz, que seria aquele desejado, de alguma forma, confusamente desejado, pelo sujeito, por aquele que subjaz à máscara autoral, o recalcado como parte do jogo literário, do mascaramento exigido, imposto, pelo mundo literário – o sujeito nunca mente. Assim, estranhamos, no texto de Carlito Azevedo, a intimidade entre o eu que ali diz e o outro sobre quem esse eu diz, entre enunciador e enunciado, a intimidade que nos faz crer numa velha amizade, mais, num grau elevado de parentesco. À medida que estranhamos, rompemos com a natureza familiar de que o texto se reveste, aceitamos, no mínimo, lidar com a possibilidade de estarmos diante de algo como uma familiaridade postiça, artificiosa, entre um eu pós-moderno, digamos, e outro moderno, aliás, criticamente moderno. 
O eu se volta para o outro como se ambos, Carlito Azevedo e Carlos Drummond de Andrade, compartilhassem, ou tivessem compartilhado em algum tempo, uma relação altamente harmônica, uma mútua identificação, uma cumplicidade ética, estética, humana. E, neste caso, o fato de se tratar de um “constructo” no plano ideal não pode ser evocado como algo que torna o enunciado menos real; ideal e real, evidentemente, complementam-se na dinâmica mesma da configuração do poético: o ideal é real, para lembrar Hegel, e vice-versa, para um poeta, o que nos remete sempre à natureza indeterminada do real. Ironicamente, o sentimentalismo, chegando às raias do ridículo, a pieguice que desmerece o que dignifica a obra do homenageado, é, em “Querido príncipe”, o atestado preciso do quanto o célebre poeta carioca se difere do modernista profundamente mineiro, uma diferença, pode-se dizer, absurda.
O sentimentalismo, melhor, o derramamento, constitui uma espécie de reconhecimento, por parte do eu, de que, na contramão de Rimbaud, não é realmente o outro. E gostaria de sê-lo?, eis a questão. Depende, como tudo na cena cultural brasileira dos anos 1990 para cá, depende do que o sujeito “ganha” com isso, já que sua ação se define objetivamente como interessada,  como uma ação no mundo das trocas simbólicas – trata-se do campo das artes -, mas nem por isso menos materiais. Naquela situação, numa homenagem a Drummond, sim, o eu gostaria de ser o outro visado, mas no espaço literário em geral, configurado em termos sociohistóricos, não, claro que não. Carlito Azevedo está vinculado a um sério processo de negação do poeta mineiro, de tudo aquilo que esse poeta representa de mais autêntico, um processo que poderíamos entender como sendo de desdrummondianização da poesia brasileira.


2. A cabralização


O que Drummond representa de mais autêntico é, sem dúvida, a politização, sem precedentes, da poesia local, no sentido de investi-la insistentemente da perturbação, como diz Jacques Rancière no seu Políticas da escrita, do corpo social. É o poeta de um permanente dissenso, que não pode ser atribuído apenas à parte literária nem ao todo cultural, mas a uma dramática relação entre a parte e o todo, entre literatura e cultura. A compreensão astuciosa, por parte de toda uma geração – que tem em Carlito Azevedo o seu legítimo representante – disto que é Drummond impulsionou, sem dúvida, o processo de desdrumondianização nos anos 1990, quando Drummond – morto realmente em 1987 – já tinha morrido potencialmente no âmbito da poesia nos anos 1960, quando passa a ser mais uma referência de cronista, “mestre de coisas”, na expressão de Haroldo de Campos em Metalinguagem e outras metas, no sentido também de generalidades, não mestre de texto rigorosamente, de poesia autônoma, intransitiva.
Com a ausência física de Drummond, de uma personalidade literária assustadora, como o texto de Carlito, aliás, informa, João Cabral passa a ser a referência maior de poesia no país, o exemplo de poeta a ser seguido, reverenciado, imitado. No país quer dizer, óbvio, no eixo Rio-São Paulo e suas extensões culturais, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, onde fervilha com mais vigor a indústria cultural. As coletâneas que Carlito Azevedo publicou nessa década – Collapsus linguae, As banhistas e Sob a noite física – são exemplos notáveis desse processo de cabralização da poesia brasileira, uma cabralização diferente – reacionária, pode-se dizer – daquela que encontramos arraigada no projeto da poesia concreta, num Augusto de Campos, especialmente, bem como num Sebastião Uchoa Leite ou num Armando Freitas Filho. Nestes, Cabral é referência de materialização, de plasticidade, de mundo das coisas, ao passo que, para a geração de Carlito, Cabral é referência de desmaterialização, de racionalização, de mundo das ideias – e, pior, fixas.
A cabralização da poesia brasileira por Carlito Azevedo e sua geração – grande parte dos poetas publicados pela Sete/7 Letras, pela revista Inimigo Rumor e pela Coleção Ás de Colete da CosacNayfi, em edições bem cuidadas pelo excelente editor de poesia que é o próprio Azevedo – nos anos 1990 logrou “destruir” com mais perspicácia a referência drummondiana, que atualizava a referência baudelairiana, fundante da lírica moderna em sua vertente francesa. Pode-se falar, certamente, numa espécie de “destruktion”, no sentido heideggeriano, de uma destruição da natureza metafísica, marcada pelos universais, que perseverava na poética drummondiana como um todo, como princípio criativo – o homem, a verdade, o sentimento. Dessa destruição, surgiu a poesia objetiva, asséptica, dos anos 1990,  que nos apresenta um poeta cordial, disposto a “negociar” o que deseja dizer, conforme o viu Heloísa Buarque Hollanda na sua antologia Esses poetas. Como se destrói a referência drummondiana, afinal?, é a questão que não pode permanecer ignorada, que precisa ser pensada suficientemente.
Esta pode ser uma via de pensamento. Vejamos: “Querido príncipe” não é rigorosamente um poema em prosa, na esteira da tradição simbolista, que constitui uma radicalização de preceitos da poesia moderna, não da prosa. O poema em prosa tende a um “dehors”,  a um fora, da literatura, para lembrar o instigante La pensée du dehors de Michel Foucault sobre Maurice Blanchot, a um movimento de supressão da literatura com a literatura, de tal forma a expor a “língua vernacular”, como queria o Conde de Lautréamont, conforme sublinhou de modo preciso Kristin Ross na sua reflexão sobre o campo social na obra rimbaudiana em The emergence of social space. No texto de Carlito Azevedo, o movimento é justamente oposto, em direção ao lado de dentro da literatura, movimento que em si mesmo constitui postulação de que há um lugar exclusivo da literatura, lá onde leitores e autores – que também são leitores; tudo se reduziria ao mundo da leitura – confundem-se, irmanam-se, harmonizam-se.


3. Aporias


“Querido príncipe” não é um poema em prosa, mas quer ser; é, na verdade, uma carta, um enunciado relacional, transitivo, mas não quer ser só isso, uma carta. A dinâmica do ser/não ser, que pode até ser tomada apressadamente como coisa drummondiana, a hesitação entre dois estados formais antagônicos, indica, suficientemente, um processo de racionalização que desdiz, por si só, a aparência de naturalidade de que o texto está revestido. O que lemos em “Querido príncipe” é racionalizado, mas não racionalizado como tudo que deriva do pólo “sentimental” conceituado por Friedrich Schiller; é uma outra racionalização, mais complexa, tropical. “Querido príncipe” parece, sobretudo, um discurso verdadeiro, uma declaração de amor de um discípulo a seu mestre, e, por isso mesmo, logra embaralhar os dados da verdade, enredando-nos nas aporias da própria verdade.
Enquanto discurso verdadeiro, “Querido príncipe” teria Drummond como objeto direto, exclusivo, seria um dizer sobre Drummond e para Drummond, mas o fato é que, já a partir do título, é um texto que se coloca sob o signo do desvio. Como no famigerado conto de E. A. Poe, “The purloined letter”, que Jacques Lacan prefere perceber como a “carta extraviada” no seu “Seminário sobre a carta roubada” – a “carta extraviada” é aquela que se perdeu num percurso –, o problema de “Querido príncipe” é pertinente a seu objeto, diz respeito ao que realmente está sendo visado pelo sujeito. E este é o primeiro a declarar que o objeto não é Drummond: “Mas não, não é um poema para lembrar de você. Aí está você, aqui estou eu.” De fato, há ali um sujeito em função de um processo de verdade, tal como propõe Alain Badiou no seu Para uma nova teoria do sujeito, um processo de verdade que induz o surgimento do sujeito.
Se nada é espontâneo, natural, no texto de Carlito, a questão decisiva em relação a “Querido príncipe” é sobre a natureza da verdade, de que verdade, afinal, trata-se ali, em que verdade o sujeito se revela imbricado. Pode-se dizer, nos limites da simples razão, que se trata de uma verdade perversa, que não se inscreve exatamente no horizonte da “poiesis”, da criação, mas sim no horizonte da “paideia”, da cultura, com suas implicações historiais. Uma verdade perversa se constrói sutilmente, nas entrelinhas, sem sobressaltos, diluindo animosidades perigosas, aproximando referenciais incompossíveis, pertencentes a mundos diferentes, de forma a configurar uma imagem leibniziana, dir-se-ia, do melhor dos mundos possíveis, onde tudo aquilo que expressa a barbárie das relações – aspecto que atravessa a obra drummondiana – é estrategicamente suprimido para que triunfe o “documento de cultura”, para lembrar Walter Benjamin.
A metáfora da lebre e da serpente nos permite objetivar a perversidade da verdade que anima o sujeito em “Querido príncipe”, uma metáfora confusamente preciosista em cujas malhas Drummond se suspende, apaga-se, enquanto o eu, em contrapartida, revela-se numa profunda inconsequência, típica de um tempo que se quer pós-histórico. “Às vezes sua ausência é tão grande por aqui que agarro a ela como uma lebre a uma serpente”, é como se abre um texto sobre um poeta humanista por excelência, desviando-se em direção ao não-humano, preenchendo, desta forma, a ausência do humano com a presença do não-humano, que,  como tal, sustenta a intenção autoral de encaminhar sua ação comunicativa no nível do jogo, do lúdico, numa espécie de exercício carroliano, no limite do nonsense.


4. A fábula


“Querido príncipe” prossegue cultivando arbitrariamente  sua metáfora de uma relação esdrúxula: “Está vendo como, tão inutilmente, tão amargamente, a lebre, escama a escama, pensa que vai se agarrando à serpente, virando serpente, proferindo oráculos?”. Não, não se pode falar aqui de uma sintonia do outro – Drummond – com o eu – Carlito –, de uma interação harmônica entre as duas partes num mesmo processo de construção de sentido. Perguntar se o outro está vendo é já acusar uma dissonância entre eu e outro em relação ao visível, ao que se dá a ver; e o eu aqui, movido por um desejo perverso de verdade, deseja dissipar essa dissonância, de tal forma que uma identidade se denuncie entre ambos – Carlito e Drummond: dois poetas que compartilham uma idêntica percepção de mundo.
O motivo básico pelo qual podemos dizer que não compartilham revela-se aqui a contento: Carlito subordina sua percepção àquela percepção estabelecida no acervo literário ocidental, ao passo que Drummond é um caso de subversão permanente dessa percepção literária em prol de uma percepção própria, individual, fonte decisiva do seu “gauchismo”. Em Drummond, a poesia não se alimenta de literatura, de valores estéticos consagrados na esfera literária, simplesmente porque a poesia – mesmo no seu instante mais formalista, no Claro enigma – é uma questão de vida (e morte) antes de ser uma questão de linguagem. Para Drummond – que é um caso de política, não de lógica, ao contrário de um Ludwig Wittgenstein, filósofo que passou a ser apreciado nos anos 1990 no Brasil em função de um influxo de poetas estadunidenses que passaram a ter audiência no país, como Robert Creeley e Michael Palmer –, a  linguagem poética não é jogo, que se monta e desmonta, tampouco jogo no sentido de evento em que se disputa algo. Para Carlito, em consonância com o Cabral mais radical, de livros como A educação pela pedra, poetar é jogar.
Ao sabor amargo da metáfora de uma relação verossímil apenas num estetizado mundo animal, “Querido príncipe” perde Drummond para que Carlito Azevedo possa ganhar, como vemos: “Anoitece e a serpente diz que a lebre nem chegou perto de alcançá-la, e apenas sonha em sua vermelha toca subtropical, ardendo em febre. A serpente não sente a pelúcia e a ferrugem das patas tateando já seu código genético, suas ondulações, o bater do seu coração. Antes isso do que confessar ao atirador de elite que você foi o homem da minha vida, príncipe”. Dizer, neste ponto, que assim se confirma que o objeto do texto é o próprio sujeito, Carlito Azevedo, e não Drummond, não é tão importante quanto tentar pensar como, afinal, dá-se essa confirmação. A metáfora é fabular, consiste numa narrativa, e tem, como não poderia deixar de ser, sua moral.
A fábula – é isso – entra no texto como forma de mistificar a própria vida contemporânea, que se define pela impossibilidade do afeto, pela repressão da interioridade dos sujeitos. A fábula tem, na economia de “Querido príncipe”, uma ascendência sobre o que se dá na vida, na experiência nua e crua de viver em sociedade, como se um mundo – dos bichos – pudesse resolver outro mundo – dos homens. O desfecho da fábula revela mais do que a inconsequência do jogo, da disputa, entre a lebre e a serpente; revela o contentamento do sujeito de não precisar confessar, a quem o ameaça, o que sente por outro sujeito. Nesse contentamento se exprime a vitória do sujeito – Carlito Azevedo – sobre seu objeto – Drummond, o poeta que postulou a vida sem mistificações e confessou insistentemente seus sentimentos. Ao se mostrar aliviado por não ter que confessar o que sente, o sujeito confessa justamente o que o diferencia do seu objeto – a perversidade.                               


5. Do príncipe


Se tudo tende à sutileza em “Querido príncipe”, não seria demais pensar que é sutil, antes de mais nada, uma frustração do desejo de Carlito Azevedo de fundir sujeito e objeto ali, reduzi-los a uma mesma identidade – eu-outro. A fábula, tratada pelo viés do jogo, da disputa, revela que um é diferente de outro, que lebre é diferente de serpente, e mais: que essa diferença é inalienável, que a identidade do outro não é manipulável pelo eu, mesmo numa situação de intimidade entre ambos. Talvez esse dado, essa impossibilidade de submissão do outro ao programa de sentido de um eu, possa ser tomado como o limite da virtualização, uma barreira a impedir o movimento de desatualização que visa, afinal, a relativização da verdade: a lebre – Drummond – continua atual como ela mesma, ou seja, como dimensão incompossível com seu oposto – a serpente. A lebre – que seria afim da serpente, segundo o sujeito – não alcança a serpente porque pertencem a mundos diferentes, incompossíveis, o de Drummond e o de Carlito.
Esta compreensão nos permite dizer que, ao contrário do que “Querido príncipe” pensa, a obra drummondiana não se caracteriza pela supressão do conflito, mesmo quando este parece inevitável, mesmo quando parece que um “comerá” o outro. Ao desejar a compossibilidade dos incompossíveis – a lebre se relacionando com a serpente –, Carlito Azevedo logra apenas justificar a ideia de Drummond como príncipe, que estrutura o texto. Príncipe porque age prudentemente com vistas a atingir seus objetivos, no sentido maquiavélico, portanto. Príncipe porque se distingue dos demais poetas, porque tem título de nobreza, no sentido, então, de ator de um teatro monarquista. Príncipe ainda como o mais importante dos poetas brasileiros, uma honraria dos tempos parnasianos – Olavo Bilac foi príncipe. Mas não é assim mesmo que se complica decisivamente o objeto desse discurso que se quer verdadeiro? Quem está em questão?
Se o conflito perpassa, indiscutivelmente, a obra do poeta mineiro – a relação conflituosa com Minas Gerais, com o tempo, com a sociedade, com a família, com a vida, consigo mesmo, com a literatura etc –, não é Drummond que está em questão no texto-homenagem de Carlito Azevedo. “Mas não, não é um poema para lembrar de você. Aí está você, aqui estou eu”. Realmente. É um poema – escrito na impossibilidade de se escrever ainda um poema, e a própria nota ao texto na Ilustríssima revela o silêncio em que o poeta carioca se encontrava havia anos –, ou uma prosa, ou uma carta, para lembrar de si. E o modo como se processa essa lembrança não é meramente estético, mas fundamentalmente político, baseado na desigualdade aparentemente entre dois poetas, mas que é, na verdade, uma desigualdade entre dois tempos: um “de partido”, de verdade, outro “de máscara”, de encenações.        
        


domingo, 13 de janeiro de 2013

ARTIGO | Anelito de Oliveira

Decadência


Talvez nada consiga dar a medida precisa do esplendor ou da decadência de uma sociedade do que a cultura, em todos os seus sentidos: estético, pedagógico, antropológico. O que se faz sob o nome de cultura é sempre mais do que suficiente para que se perceba o que uma sociedade é, ou está sendo. Tudo aquilo que os discursos poderosos, hegemônicos, impedem-nos de ver, as práticas culturais urbanas - legitimadas como "a" cultura - acabam por nos mostrar.
A publicação dos poemas do vice-presidente da República Michel Temer pelo Caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, neste domingo 13/13 é mais um dos atestados eloquentes do estágio de decadência da cultura brasileira. Chega a ser difícil contabilizar quantos desses atestados encontramos diariamente hoje em dia, a começar pela programação da Globo aberta, das TVs evangélicas, passando pelo sertanojo, os axés, as redes sociais, como a lavanderia Facebook, até chegar aos jornalecos e jornalões. 
Num cenário cultural pujante, íntegro, crítico, como se viu no passado recente e remoto no país, os montes de palavras do político proselista do PMDB não teriam espaço, obviamente; o próprio autor teria vergonha de publicar tanta besteira sob o nome pomposo de poesia. Também os seus editores - na Folha e na Topbooks, editora de Temer - teriam vergonha de oferecer aos seus leitores uma coleção de asneiras que nada lhes acrescenta. Que diriam um Holanda, um Carpeaux, um Glauber? 
Todavia, há um cenário cultural que torna admissível todo tipo de ação nestas quase três décadas da chamada reabertura democrática, que acabou por legitimar uma espécie de primado do consenso na vida social brasileira, como se isso fosse possível. Nesse cenário, tudo é permitido, desde que seja adequadamente negociado e, claro, dependendo de quem esteja participando da negociação, do que cada espertalhão ganhará - o mais importante. 
Poetastros, pseudoartistas, sempre houve e haverá em todos os tempos e lugares, mas o fato é que eles têm se tornado maioria no país, pautando editoras, redações de jornal e revista, feiras literárias, canais televisivos, órgãos de cultura etc. Eles - ou seus subordinados - estão no comando, cada vez mais, dos espaços de gestão e dos meios de produção e divulgação, de forma que a cultura brasileira hegemônica - aquilo que mais aparece - vai-se convertendo numa grande máquina opressora, aculturadora.
A publicação do livro Anônima intimidade de Temer e a publicação de alguns "poemas" pela Ilustríssima não podem ser vistas como ações normais, apenas profissionais, mas como ações comprometidas com a continuidade e fortalecimento do projeto político da casa grande, cultivado por PMDB, PSDB e tantas agremiações que se gabam de ser republicanas. Ridicularizar a inteligência, de que a poesia é a imagem decisiva em toda sociedade, é naturalizar a imbecilidade que garante o êxito dos opressores.