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sexta-feira, 12 de março de 2010

LITERATURA | Criação

Não pense


Erra. Você não pode acertar mesmo. Desiste disso. Continue errando. Experimente errar de maneiras que ainda não errou. Errar é uma questão de maneira. Não de mania, como você quer pensar, às vezes. Essa sua pressa é sempre problemática.
Talvez seja mesmo a fonte fundamental do problema. Você é muito impulsivo. Você não aprendeu com ninguém. Nem mesmo trouxe do seu berço. Sim, digamos que você queira fantasiar um berço como parte da sua origem ursprung. Você é excessivamente educado.
Precisa errar mesmo até atingir um outro jeito de ser, mais certo sobre o que não é. Você tem muita certeza, barreira. Somente errando chegará lá. Siga por aquela rua, está vendo? Vá indo, indo, indo - até chegar lá na frente.
Quando estiver perto da Estação da Luz, não olhe pra trás. Você precisa entrar mais na cidade desconhecida, descer, girar, sentir. Você precisa conhecer um pouco do seu desconhecimento. Daqui de cima, tudo é muito triste.
Há que encontrar a noite onde ela se perde - pense nisto como uma verdade orgânica. Encontrar, há de, não para nomeá-la, mas para perder-se com ela, nela, em tudo. Quando a encontrar, deixará de ser totalmente você no mundo.
Não há dúvida, consciência, que seu medo reside aí. Mas você precisa enfrentá-lo, sob pena de não chegar nunca a lugar nenhum. Lá, onde você nunca esteve, tudo são entranhas intramundanas a sua espera. Para que tome parte, tem que atravessar o todo em que todos, tudo, perdem-se.
Natural que você não encontre o caminho: ainda não inventou esse caminho. Não tem caminhado - tem pensado. Errar é isso. Não pense que possa ser outra coisa. Pensar é.

quinta-feira, 11 de março de 2010

LITERATURA | Criação

O depósito

Chorava copiosamente, e não era um romance alencarino. A realidade, daquele jeito, estava ali. Bem de frente - ali. Olhava para ela como quem não pudesse fazer mais nada. Tudo estava feito, não tinha como refazer nada. Precisava aceitar que tinha acontecido. Ninguém acreditaria se tentasse dizer que não, que não lhe dizia respeito. Aquele olhar era uma forma de consolo: as pessoas erram, sabe como é, nunca estão totalmente concentradas em suas tarefas, cada vez mais atarefadas, mil coisas, stress, stress. Seu erro tinha sido dos mais humanos, precisava entender isso, nada de mais, apenas um vacilo. Não podia insistir em dizer que não tinha errado, tinha sim, e agora era o momento de reconhecer. Reconhecendo, assumiria a responsabilidade por aquilo. Tinha direito a contar sua versão, claro, claro, mas não destituiria o fato do lugar onde já estava alojado. Ela, a atenciosa atendente, estava ali para ouvir. Bebe água, bebe. Como não tinha nada dentro do envelope quando o abriram à noite?! Estava lá, ela mesma tinha se encarregado de organizar tudo, temendo exatamente que algo acontecesse, algo que jamais pudesse acontecer. Consultem as imagens de ontem, já foram consultadas, não apareço lá?, não temos certeza, como não?, estava muito cheio, uma multidão de gente, estive bem ali por volta de três da tarde, quero ver as imagens. Claro, poderiam permitir que visse as imagens, mas elas acabariam até por complicar a situação. Gostariam de pensar, para o seu bem, que talvez não fosse ela a única responsável pelo fato: alguém teria colocado o envelope em seu nome, digamos, uma hipótese, que alguém tivesse feito isso, normal. O importante mesmo não era o fato de ela aparecer ali efetivando o procedimento, tudo muito superficial, mas a qualidade da substância do procedimento. Tinha que pensar nisso, na qualidade daquilo, não na quantidade que estava em jogo. O envelope estava vazio, vazio, completamente vazio, sem nada, um absurdo! Quem acreditaria nela? Imagens, imagens! Melhor acabar tudo ali. Bebe mais água, bebe.

terça-feira, 9 de março de 2010

LITERATURA | Criação

A ameaça

Era preciso encontrar os pontos que ameaçavam o projeto, isolar um por um e submetê-los a uma análise rigorosa, ter clareza absoluta sobre causa e efeito de cada aspecto da questão, não deixar nada escapar, nada mesmo, qualquer vacilo poderia ser fatal, levar tudo pra água abaixo, entenderam?, e olhava como quem já sabia o tipo de reação que suscitaria naquele momento, deixaria os interlocutores surpresos, até perplexos, não tinham conhecimento profundo sobre construção de solidez, como algo nasce e cresce e cresce, sempre cresce, só cresce, como se negócio não fosse, como se fosse, na verdade, uma espécie de natureza, tão natural quanto a que encontramos no mundo, sem marcas de artifício, confundida com a percepção das pessoas de tal forma, de tal forma, vejam bem, que todos acabam trabalhando para o seu crescimento, para o crescimento desse mundo maravilhoso, todos felizes, todos sorrindo, rico ri à toa, mal sabem que, que, não, sim, a questão aqui é exatamente como não deixar que algo menor, insignificante, atrapalhe o projeto, eliminar, antecipadamente, quaisquer possibilidades de fracasso que possamos encontrar pela frente, elementos que possam inviabilizar o alcance dos nossos objetivos, que são muitos, devidamente distribuídos no tempo, curto, médio, longo prazo, o que queremos, afinal?, vocês sabem, sabemos, por isso estamos aqui, o que queremos justifica todo o sacrifício deste momento, é assim mesmo que as coisas começam, daqui a alguns anos, já com a solidez do empreendimento totalmente garantida, à medida que esse projeto fizer parte da vida cotidiana das pessoas, tornar-se um mecanismo de respiração, é, é assim mesmo, poderemos dizer, orgulhosamente, o quanto valeu a pena esta tarde de reflexão sobre aquilo que ameaça nosso projeto, foi pra isso que vieram aqui, não é mesmo?, a ameaça, acalmem-se.