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sexta-feira, 28 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 20

- teve ouro?
- não.
- teve gado?
- também não.
- teve fazenda?
- claro que não.
- funcionário público?
- parece.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 19

- lembra?
- certamente.
- esqueça.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 18

- outrora voltava para casa.
- o que aconteceu?
- difícil saber.
- uma mudança?
- talvez.
- de quê?
- de mundo.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 17

- a noite acontece depois do dia.
- é mesmo.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 16

- o que fazemos em nós mesmos?
- esquecimento.
- do que somos?
- do que já fomos.
- essencialmente, heidegger etc?
- sem pensamento.
- o que fomos?
- nós mesmos.
- o que somos?
- indiferença.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 15

- o que se perde?
- onde?
- na vida.
- o viver.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 14

- uma certeza.
- a solidão.
- outra certeza.
- a solidão.
- a única certeza!
- a solidão.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo – 13

- ainda não entendi certas coisas.
- eu também não.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 12

- há o covarde.
- por certo.
- como reconhecê-lo?
- de perto.
- como é?
- nojento.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 11


- o dia começou com o sumiço do óculo.
- onde estava?
- na sensação de incompletude.
- como era?
- a verdade.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 10

- há o incompreensível.
- onde?
- no incompreensível.
- na palavra.
- não, na ausência.
- o que é?
- o próprio não.
- em face de?
- não.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 9



- ninguém sonha.
- todos dormem.
- como?
- na suspensão.
- de si?
- do mundo.
- como entender?
- sonhando.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 8




- o que esperava?
- o inesperado.
- como resposta?
- como pergunta.
- como distinguir?
- pela vontade.
- de quê?
- de justiça.
- o esperado é injusto?
- a resposta.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação





Diálogos para um monólogo – 7



- algum desejo de mentir?
- não.

LITERATURA | Criação






Diálogos para um monólogo – 6



- vai dormir?
- parece.
- até que horas?
- até o fim.
- do sono?
- do pesadelo.
- proust?

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 5


- aconteceu alguma coisa ontem?
- não.
- alguma previsão para hoje?
- não.
- a vida continuará?
- sim.
- do mesmo jeito?
- sim.
- bom dia.

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 4




- o que é uma pessoa?
- a outra de.
- de quem?
- de si mesma.
- um disfarce?
- não. menos. mais.
- então?
- o disfarçável.

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 3



- alguém que tenha dito a verdade?
- nina simone.
- o que houve?
- o insuportável.
- estamos condenados?
- sem dúvida.

domingo, 23 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 2



- o que pensa quando não está pensando?
- que é preciso não pensar.
- é possível?
- é impossível.
- como, então?, não pensar.
- fazendo.
- o quê?
- nada.

sábado, 22 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo - 1


- alguma dificuldade na vida?
- todas.
- é o mesmo que nenhuma. a maior.
- o tempo.
- qual?
- sempre passando, acabando, escapando.
- resolva. fácil.
- como?
- morrendo.
- em que sentido?
- todos.

sábado, 8 de agosto de 2009

LITERATURA | Isso, a poesia, um poeta

No desespero para ganhar ilusoriamente a vida, os textos vão ficando pelos cantos, sempre “para depois”, para um momento que nunca chega, amarelando. Na maioria das vezes, pela dificuldade de publicação em papel – especialmente, em papéis legitimados como mais valiosos na cultura ocidental, que detêm mais prestígio: jornal, revista, livro. Com a internet – mais ainda, com a possibilidade de ter um espaço mais ou menos personalizado aqui –, é possível dar visibilidade a coisas que, por tantos motivos, não foram nem têm sido publicadas em papel. Não é, naturalmente, a mesma visibilidade. Meios diferentes, receptores idem.
O que me interessa mais aqui é a possibilidade de compartilhar tantos escritos, de ontem e de hoje, que nunca quis nem quero que sejam apenas do meu conhecimento, que existam apenas para mim. Nunca escrevi nem escrevo apenas para mim, o que não quer dizer que escreva, como tantos, apenas para outrem: escrevo para a relação, na relação, relacionalmente, digamos. Daí uma dificuldade histórica de publicar: isso não agrada ao leitor, segundo os donos dos “media”, que é sempre o leitor que esses donos querem formatar, ideal, bestial. Escrevo, sem dúvida, contra esse leitor, na contramão do que o define.
Há 18 anos, no terrível 1991, escrevi um texto sobre o primeiro livro daquele que reconheço como um dos agentes culturais mais significativos dos anos 80, com uma atuação intensa em Minas Gerais até meados dos anos 90: José Edward Vieira Lima.
A Pátria que te pariu, título desse livro, era a exata medida de uma consciência crítica pegando fogo. O livro vinha na sequência de um trabalho de pesquisa extraordinário sobre o músico do sertão norte-mineiro Zé Coco do Riachão, que resultou no livro Artesão de sons, uma contribuição das mais relevantes para a compreensão da cultura popular brasileira. O livro de Edward foi fundamental para um reconhecimento internacional de Zé Coco.
Conheci Edward pessoalmente em 1990, numa mesa-redonda no Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, evento que acontece há mais de duas décadas em Montes Claros graças ao incansável Aroldo Pereira. Já tinha lido
A pátria que te pariu e, no calor de uma hora contextual bastante complicada, acabei fazendo um apontamento apressado, genérico e negativo sobre o livro. Era um apontamento apenas sobre a “cara” do livro, não sobre o autor – e tantos não entenderam nada ali, queriam “sangue”, o país “sangrava” parindo esta ideia peemedebista, petista e “inclâmica” (dos inclames, Indivíduos de Classe Média, para lembrar o inventor Sebastião Nunes) de democracia.
Em 1991, logo que aportei em Belo Horizonte, entrei em contato com José Edward, o que, para alguém na fúria dos vinte anos, levando a poesia mais a sério que a própria vida – era o meu caso –, tinha um sentido de prova de respeito. O poeta, ativista cultural, jornalista e produtor musical – na época, estava à frente, ao lado da publicitária e professora Valéria Raimundo, da empresa “Arte & Fato” e produzia, entre outros, Markú Ribas – recebeu-me no seu escritório na Av. João Pinheiro com a generosidade dos velhos combatentes, compreendendo e estimulando meus arroubos da juventude.
Conversamos bastante sobre poesia, crítica, vanguarda, música, cultura, política etc etc tomando chope no Pelicano, ali no Malleta. Sobre a crítica, Edward me falava que havia uma lacuna a ser preenchida nos jornais em Belo Horizonte, que ninguém estava exercendo a crítica literária, e que via em mim todas as condições para essa tarefa. Ele mesmo se encarregou de fazer a “ponte” com o “Estado de Minas”. Deu certo. Depois de algumas contribuições ao “grande jornal dos mineiros”, escrevendo sobre autores como Bioy Casares e Dylan Thomas, propus ao editor da página “Autores e livros”, o escritor e jornalista Jorge Fernando dos Santos – que sempre acolhia minhas resenhas com grande entusiasmo -, a publicação de uma série de textos sobre poetas mineiros em atividade.
O primeiro nome que me veio à cabeça foi José Edward Vieira Lima, não por gratidão amiga, mas em função do problema que
A pátria que te pariu! trazia de volta: o engajamento político-social da palavra poética. Levei o texto ao editor, que o leu e logo passou às mãos do então editor geral, comunicando a este o meu projeto da série de textos. Depois de uma leitura diagonal, daquelas que possível fazer em Redação, o editor disse, educadamente, que era interessante (era a época desse adjetivo, talvez um índice do que chamo de desvanecimento da crítica literária nos dias que correm), mas que não tinham espaço para aquilo.
Saí, com aquela desilusão comum a escritores nascentes, sem saber como fazer para que aquele texto ali, escrito nas laudas timbradas do “Estado de Minas”, que eu carregaria intacto comigo pela vida afora, chegasse ao conhecimento de possíveis interessados, especialmente o autor criticado. Além do interessante, outra coisa me marcou, até mais, na fala do editor geral do Segundo Caderno: tire isso do texto – ele sequer pronunciava as palavras -, não pode. “Isso” era um dos versos do livro que eu citava: “q merda cagada não volta ao cu”. Terá sido isso a gota d´água do processo?
Longos anos depois, já em 2008, voltei a enviar um outro texto sobre o livro de José Edward – o mesmo José Edward Vieira Lima de 1991, agora com o nome de poeta abreviado – ao jornal “Estado de Minas”, agora a propósito da segunda edição, modificada, com novos poemas e o título apenas de
Pátria que pariu! e outros poemas, edição da Autêntica. Não citei o verso “constrangedor”. Saiu no Caderno Pensar. E fiquei, fico, pensando que o poeta deve ter pensado que eu levei 17 anos para dizer algo sobre seu livro!
Aqui, reabrindo a barraca depois de mais de um mês de distância (falarei a respeito logo mais), como prova de sincera consideração, vão o inédito de 18 anos (tal e qual, apenas com o acréscimo de um título e algumas adequações gramaticais) e o texto que saiu ano passado, escritos de dois momentos diferentes numa mesma baderna chamada nação, dois momentos de um diálogo com um poeta e sua poesia insubordinada.



Acerto de contas


Parece tratar-se de uma tradição no campo da literatura: poetas e escritores sempre se obrigam a fazer uma espécie de “acerto de contas” com eles mesmos, na maioria das vezes. Ferreira Gullar é um dos que já admitiram de viva voz o cumprimento de tal ritual. Foi ao escrever seus ditos “poemas portugueses”, incluídos em seu livro A luta corporal. Usando processo de metrificação, afirmou Gullar um tempo, após a publicação do referido livro, ter apenas acertado contas com a poesia tradicional. Um outro exemplo, até certo ponto, pode ser extraído do poeta Carlos Nejar, que no momento, depois de tanto palmilhar a estrada literária, surge com um livro de sonetos intitulado Amar, a mais alta constelação – parece que quis acertar contas com a forma.
Pode ter sido isto, essa espécie de sentimento de indignação por não ter conseguido levar adiante um certo projeto no tempo de sua concepção, que conduziu José Edward Vieira Lima à publicação de A pátria que te pariu em 1990. Trata-se do segundo livro (o primeiro no gênero poesia) de um poeta nascido em 1965, na cidade de Brasília de Minas (Norte de Minas), que passou boa parte de sua vida envolvido com movimentos de cunho cultural. Militou principalmente em cidades próximas à de sua origem, como São Francisco e Montes Claros. Nesse meio tempo, entre outras coisas, fundou entidades culturais e se dedicou a escrever crônicas para alguns jornais.
A consideração “teórica” de que todo título é um resumo metalinguístico do que o autor tem a dizer em sua obra é de suma importância em se tratando de A pátria que te pariu. Não é necessário muito esforço para se chegar à conclusão de que se trata de uma arte literária engajada que está se aproximando – e, para o leitor atento, este anúncio na capa pode facilitar o caminho para o entendimento da proposta do poeta: “prefácio de Fausto Wolff”. Trata-se, realmente, de um livro de poemas que vem à tona – a multidão impedida de passar por arames farpados na foto da capa – para preencher uma lacuna que surge já no início da carreira do poeta, um grito que o estava incomodando – a comprovação que o leitor terá.
Na verdade, o primeiro livro de poemas de José Edward é um fruto retardatário quando se trata de levar em consideração seu todo e, principalmente, a proposta anárquica que fundamentalmente o orienta – digamos, a raiz da fala do poeta que nele está contida. Isto muito embora se saiba nos dias de hoje que “a pátria que nos pariu”, a partícula essencial da poesia de José Edward, continua sobrevivendo/sofrendo sob os problemas ali postos em forma de motivos poéticos: falta de educação, falta de pão e outras faltas que ocasionam a miséria do povo. Por este aspecto, indiscutivelmente A pátria que te pariu é um livro que caberia bem no ambiente político-literário da década de 70, quando, aliás, muitos poemas parecem ter sido escritos.
Incluídos em duas subdivisões denominadas “margens pérfidas” e “margens plácidas”, respectivamente, os poemas “guerreiros” de José Edward – que não compreendem todo o teor do livro – trazem consigo a mesma despreocupação formal e conteudística daqueles que vieram à tona no momento ditatorial brasileiro. O objetivo do poeta é um só: reclamar através de uma poesia de cunho panfletário. O poema “O salário não compensa” enfatiza: “como se come aqui/ é que não se sabe/ como esse crime se dá/ é que não se pune”. O poema “Olhos da cara” conclui: “A dívida que teremos (?) de pagar/ com a miséria e a dor deste povo/ é o nó-górdio da pátria latina/ e isso é uma coisa cristalina e amara:/ nos tem custado os olhos da cara!”. Outros poemas ainda nessa “face” (“A puta quetipa” e “Vitórias de pirro” como exemplos) ironizam a pátria que "te" pariu com a utilização de personagens de sua política da época de sua composição, como os ex-presidentes João Figueiredo e José Sarney. A soma de tudo, em última análise, constitui o sentido medíocre da obra para o tempo de sua publicação, de que o poeta parece tentar se livrar ao se desdobrar em outras “faces” poéticas – o que pode ser visto como a retomada de um estilo mais sério.
Faz-se necessário um retorno às primeiras páginas de A pátria que te pariu para o entendimento de que o propósito literário de José Edward muda em virtude do tempo. O poeta se liberta, pelo visto, da utopia revolucionária que envolvia os poetas da chamada “geração mimeógrafo de 70” e sua poesia vai trilhar um novo caminho: o da metalinguagem. Começa então a exposição do seu processo de composição do poema, o qual é sintetizado neste quase-prefácio: “quando paro o poema do verbo parir eu sofro do verbo sofrer porque todo poema nasce de um parto do verbo par (t) ir e qual parto do verbo parir parar ou partir não é doloroso do verbo doer?! Mas quando transo o poema do verbo transar também sinto prazer do verbo pra ser pois todo poema é precedido de orgasmos & mais orgasmos do verbo gozar e sucedido de vibrações & mais vibrações do verbo vibrar”. Tal esclarecimento é traduzido nas demais “faces” do livro de forma ousada, através da qual até mesmo a impressão de lábios com batom sobre a folha passa a caracterizar um poema (“Gravidez psicológica”, seu título). Com esta reviravolta – pode-se considerar –, a obra ganha seu espaço/sentido no ambiente literário atual.
Consciente do seu ofício e com o sentido engajado no seu tempo, José Edward vai se impondo o desafio de explorar as possibilidades linguísticas como que tomado pela necessidade de constituição do poema novo. Desta forma, o longo discurso que caracteriza o lado “guerreiro” do livro passa a ser submetido a um processo de condensação, o que acaba fazendo com que o poeta lance mão de outro recurso para sua expressão poética: o visual. Mas mesmo com um ideal diferente, os poemas contidos no livro, em sua maioria, ocupam-se de denunciar os problemas/personagens famosos da pátria que "te" pariu, como é o caso do hai-kai denominado “Renúncia da palavra”, em que se lê: “Se Jânio/ fi-lo porque qui-lo/ eu falo porque calo”. O poeta conserva uma mesma ironia e um olhar político-crítico em seus poemas que cheiram a um Oswald de Andrade, como em “Memória 64”, em que se lê: “Pobres revolucionários:/ além de subversivos/ eram subnutridos também”. Uma ironia às vezes cortante, como no poema “Aos q ficam”, em que se lê: “q merda cagada/ não volta ao cu”.
A “face” metalinguística de A pátria que te pariu pode ser sintetizada, sobretudo, com o poema “A mística morte em mi maior e em mim menor da meta linguística”. Trata-se de um poema que ocasiona a constatação das diversas tendências poéticas de José Edward, a partir do qual é possível vê-lo como um poeta ainda em fase de formação. Surgem ali a tendência para uma poesia crítico-panfletária, a tendência para uma poesia visual, a tendência para uma poesia marginal e, acima de tudo, a tendência para uma poesia metalinguística. Desfilam pela “Mística morte...” personagens literários famosos, como Augusto de Campos, Guimarães Rosa, Mallarmé, Sousândrade, Mário de Andrade, Baudelaire, Maiakóvski, entre outros. Também circulam ali personagens do “pensamento universal”, como Marx, Maquiavel, Leonardo da Vinci e Cia. Por fim, o poema não constitui a revelação de um dom poético, mas sim um projeto que deve nortear a poesia de José Edward a partir do próximo livro.



A nódoa no brim


Entre as importantes iniciativas editoriais do ano passado em Minas, destaca-se a publicação de Pátria que pariu! e outros poemas, de José Edward, pela Autêntica. Projeto gráfico inovador – uma caixa com os cadernos soltos, os poemas impressos em papel diferenciado –, é trabalho que atesta, a exemplo de publicações de Editoras como Nankin e Ateliê, esse novo pensamento editorial brasileiro em curso, segundo o qual o livro em si é um objeto de arte, o que, claro, nunca foi ignorado pelos melhores poetas modernos.
O livro de Edward é uma reedição de A pátria que te pariu (bastante modificada, como já se vê), publicado em 1990. Alguns poemas foram extirpados, outros, escritos ao longo de quase duas décadas, foram acrescentados, modificações que, felizmente, não comprometeram a essência (e quase digo, com mais agudeza, “essância”, numa pertinente conexão Lévinas/Derrida) do livro. Permanece um renitente berro como motor dessa poesia, o desabafo, para o possível leitor, mas que é índice de abafamento, também, para o poeta.
Herdeira de Drummond, Gullar, Brecht, Maiakóvski e tantas outras grandes vozes do século XX, a poesia de Edward é altamente transitiva, coloca-se num diálogo frontal com o leitor, aspecto de que deriva sua estranheza para os dias que correm. Não se trata de uma linguagem para poucos, apenas para poetas, como a que tem sido hegemônica no Brasil desde o início dos anos 90 para cá, intransitiva, “coisal”. Para Edward, como para seus precursores, a linguagem é, naturalmente, um meio, não um fim em si mesmo.
Tal compreensão, cultivada pelo autor, parece ter-se ampliado depois de tantos anos, uma ampliação que talvez seja até o motivo maior da reedição do livro. Na primeira edição, o título (A pátria que te pariu) aponta para uma inquirição direta do leitor, como se o poeta lhe apontasse o dedo em riste. Agora, nessa reedição, o título (Pátria que pariu! e outros poemas), a própria expressão corriqueira ganha relevo, como se o poeta tivesse decidido “livrar a cara” do leitor. Tempos diferentes, autor e leitor ideais (Eco) diferentes.
Nessa mudança de relação com o leitor, revela-se, com precisão, a drástica mudança dos anos 80, quando os poemas enfeixados na primeira edição foram concebidos, para estes anos 2000. A questão ali, para uma poética socializante, era incomodar o leitor, tirá-lo de sua alienação e, no limite, fazer com que entrasse para o PT e elegesse um operário para a Presidência da República, prova máxima de consciência crítica. Não só a poesia, mas todas as artes (em especial, o rock), como se sabe, estavam empenhadas nessa “revolução”.
No prefácio que acrescenta à Pátria que pariu! e outros poemas, cujo título (“Duas décadas nessa noite - as ilusões perdidas”) remete ao controverso ídolo do jornalismo dos anos 80 que foi Paulo Francis, José Edward explica, passo-a-passo, o que aconteceu nas duas últimas décadas no Brasil, concluindo, ao enfocar o Governo Lula, com ar de desalento: “Roubaram nossos sonhos, estupraram nossos ideais, estelionataram nossas esperanças, emPanTurram-se (sic) com o poder...” Em face disso, especialmente, é que, para ele, perderam-se as ilusões.
Se a crença radical em Lula como salvador da pátria, era um erro de perspectiva política, a responsabilização do leitor – e leitor de poesia – pela mudança da pátria, tal como aparecia no “tom” da primeira edição do livro, era um erro de perspectiva poética, mais do que um mero arroubo de juventude. Erro que, entretanto, José Edward (Vieira Lima, como então assinava), assim como o Titãs do disco “Cabeça dinossauro”, não poderia deixar de cometer, mesmo sabendo que pagaria caro – como acabou pagando – por ele: tantos, a maioria, não viram em seu livro o poeta audaz que, de fato, trazia em si.
Todavia, errar, naqueles fins de anos 80 de nervos tão acirrados, era, até certo ponto, uma questão de honra. O acerto, em termos culturais, estava identificado com o “establishment”, tinha um quê de “endireitamento”. Errar era se dizer errante (daí que eu pense mais na “essância” que na essência dessa poesia, num misto de essência com errância, na ânsia do errante, digamos). A honradez do errante se deixava marcar pelo esforço de pensar. A pátria que te pariu, o primeiro rebento lírico de José Edward, revelava (melhor: esbanjava) esse esforço num rol de citações.
Entre elas, que constituíam recurso bastante comum à época e agora soam incomuns, figuravam, figuram, Darcy Ribeiro e Guimarães Rosa, além de – mais que uma citação, uma carta de recomendação – prefácio, agora posfácio, de Fausto Wolff. Eram vozes que no calor daquela hora, no final da “década perdida”, tinham o poder de desviar o foco da discussão da poesia em si para a realidade brasileira mais premente, e esse desvio era mais do que necessário, era fundamental, sobretudo para a formação de um poeta-crítico.
Apesar de compreensível, tratava-se de aspecto discutível à medida que resultava, ao final das contas, num apego a circunstâncias, a determinados conteúdos que, por mais explosivos que fossem, pertenciam a um determinado momento histórico. Assim, o risco iminente, que a poesia de José Edward corria, era o de permanecer como algo datado, fadado a ter o mesmo destino de grande parte da poesia dita social, produzida por tantos em tempos e lugares diferentes, especialmente nos anos de autoritarismo legitimado.
Esse risco foi positivo pelo simples fato de que, graças a ele, um poeta encontrou sua razão de ser num tempo prosaico, em que a cultura brasileira avançava a passos de ganso em direção a toda esta porcaria em que estamos imersos atualmente. A pátria que te pariu, arriscando tudo – inclusive a não ter reconhecimento como poesia – acabou por promover uma inversão de parâmetro para a criação poética que, se não chega a ser original, era importante em fins dos anos 80, e o é ainda mais hoje: a poesia se origina do meio da cena política, tagarelante, e não da cena literária, amesquinhada.
Sabendo-se subversivo das regras do jogo poético-literário, o poeta dizia, e continua dizendo, em seu “Habeas corpus”: “antes que me malhem/ e atirem pedras, decreto:/ mal não há em fazer poesia/ com bravatas e verborragia/ com rima torta e teor panfletário/ se ela conseguir despertar um patriota/ no apático leitor imaginário”. Como epígrafe, este poema traz os versos de Bandeira: “Vou lançar a teoria do poeta sórdido:/ aquele em cuja poesia há a marca suja da vida (...)/ O poema deve ser como a nódoa no brim:/ fazer o leitor satisfeito de se dar o desespero”.
Se se pode dizer que a vida continua suja, apesar de tanta “poesia social”, apesar de José Edward, não se pode negar que essa sujeira se deve, cada vez mais, à omissão da grande maioria dos “cidadãos”, para quem só há um projeto interessante no mundo: cuidar da própria vida. Mudar a vida, torná-la mais “limpa”, requer, portanto, incomodar esses “cidadãos”, dizer-lhes, em alto e bom som, que são responsáveis pelo que está aí nos assombrando por toda parte. Utopia de dinossauro, essa que vemos na poesia em questão? Sim. Mas é melhor que nada.

Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, pág. 5, Belo Horizonte, 05 de março de 2008.