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quinta-feira, 13 de junho de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira

O último danado


Para Adriana Calcanhotto,
Davi Arrigucci Jr. e
Guilherme Mansur, 
Amigos de Waly



Waly Salomão (1943/2003) pertenceu a um grupo de criadores – Torquato, Oiticica, Glauber, Leminski – que não fazia questão absoluta do epíteto de poeta, mas que tinha na imagem do poeta uma espécie de identidade cultural, sobretudo pelo caráter libertário, de sabor romântico, que constitui essa imagem, uma imagem vinculada a uma atitude radical, desnorteada, “desbundada” – como se dizia nos tempos da contracultura –, danada, portanto. Waly foi, a meu ver, o último a ostentar, corajosamente, essa atitude, o último dos danados, e esbarrou, como não poderia deixar de ser, nas rochas reacionárias da sociedade, de que a cultura letrada é a mais resistente e dilaceradora.

O Waly que conheci, e com quem tive a honra de compartilhar alguns momentos de alegria, com quem falei horas ao telefone e participei de alguns eventos, que publiquei várias vezes no Suplemento Literário de Minas Gerais, era o poeta suavemente, digamos, dilacerado, que se esforçava para vivenciar sua “vaziez” de modo mais educado, civilizado. Às vezes, não se continha e disparava contra seus desafetos, para logo retomar a conversa sobre poesia, sua poesia – sempre –, como uma espécie de trégua numa longa guerra. “Vaziez” foi o conceito de Hélio Oiticica sobre o qual me falou, certa tarde, com muito entusiasmo, lendo um texto agora publicado no seu livro póstumo Pescados vivos (Rocco, 2004). Dizia, diz Waly Salomão (p. 69):

 “VAZIEZ. Aprendi nos meus intensos diálogos com ele que a vaziez  era das qualidades mais desejáveis para um artista, ele atribuía a um certo afã, a uma sofreguidão, a uma faina suarenta do artista plástico (...)
ele falava que fulano, sicrano, beltrano se repetiam exatamente porque não passavam por um período rigoroso de abandono do já feito, da linguagem alcançada, e não suportavam aquele embate, aquela agonia interior que sobrevém até que você  atravesse e saia do outro lado da trajetória e para que você chegasse a pontos inusitados seria abandonar provisoriamente ou suspender a categoria “artística” como uma tarjeta perpétua, como uma linha de montagem de uma produção fordiana, então como o artista não tem isto desta linha de montagem industrial ou fordiana, portanto pode e deve perfeitamente suspender, fazer uma suspensão voluntária da continuidade produtiva, exatamente para que possa vir o surpreendente, o inesperado, o impensável, o imprevisível. (...)
VAZIEZ.
Basta introduzir, no universo da plenitude das coisas, fissuras.
FISSURAS.
Aprendi com ele?
Ou foi com outros?
Ou como foi que se deu, se dentro de mim é indistinto?”

Talvez possamos – quero pensar que sim – perceber o Pequeno Waly  a partir desse prisma da “vaziez”. O Pequeno Waly – o recalcado sempre em vias de retornar, como n´“A fábrica do poema”, de Algaravias (Editora 34, 1996), que teve fragmento musicado e gravado por Adriana Calcanhotto em disco homônimo – era a contraparte do Grande Waly, estridente, “amante da algazarra”, para lembrar o título do seu poema em Tarifa de embarque (Rocco, 2000, p. 61), um contraponto que Caetano Veloso nos sugere, sutilmente, na canção-farewell, sob o título “Waly Salomão”, no seu disco “Cê” (Universal, 2006): "meu grande amigo/ desconfiado e estridente/ eu sempre tive comigo/ que eras na verdade/ delicado e inocente". 

Penso que a “vaziez” nos remete, de modo fidedigno – pois a relação de Waly com Oiticica tinha fumos, diria Machado, de sacralidade para Waly, que evitava até dizer o nome do seu amigo morto, como se fosse seu santo protetor secreto – ao sujeito histórico. Não se trata de um mero conceito, inventado numa esfera transcendental, mas de uma situação conceitual, digamos, que se desdobra de uma experiência estética não esteticista, ou seja, que não se restringe apenas ao campo da arte em si, que não se subordina ao viés institucional das “belas artes”.

A recorrência a um parâmetro industrial – o fordismo – para qualificar o trabalho do artista mostra o modo material como Oiticica – e Waly a partir dele – pensa a produção artística, parâmetro em face do qual o artista deve demarcar sua diferença. O artista – que, assim como um trabalhador de fábrica, produz, mas um outro produto – deve, num procedimento diverso daquele do fordismo, suspender a “continuidade produtiva” e esperar “o surpreendente, o inesperado, o impensável, o imprevisível”.

O fato é que, à medida que se entrega a esse estado de “vaziez”, o artista coloca a fidelidade a si mesmo acima da fidelidade ao público, ao mercado, à indústria cultural. A “vaziez”, que Waly aproxima no texto em questão de “avidez” e “aridez”, encontra, assim, a sua referência maior nos simbolistas franceses do final do século XIX, especialmente em Mallarmé, que, conforme o célebre texto de Paul Valéry (“Existência do simbolismo”, In: Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira, Iluminuras, 1991, p. 66), identificavam-se, sobretudo, em relação a uma recusa à quantidade, à adesão a uma lógica numérica, capitalista.

Obviamente, o Grande Waly – o que se estabeleceu - não teve pendores simbolistas; teve pendores barrocos, românticos, como tanto se sabe. Mas o Pequeno Waly, o recalcado, que ficou ainda e certamente ainda ficará desconhecido por muito tempo, repito, enquanto parecer for mais lucrativo que ser, acaba por nos levar, com sua reflexão-recordação sobre Oiticica, até o modo de ser – crítico, intransigente, angustiado – daqueles poetas que – radicalizando a razão romântica, que já era um radicalização da razão barroca – acabaram por fixar a imagem do poeta “damné”, danado, atormentado, amaldiçoado, desesperado.

A “vaziez” é, de fato, a imagem que me ficou do último danado, naquele nosso último encontro em Belo Horizonte, no mês de abril de 2003, quando o convidei para participar do lançamento de um número especial do Suplemento Literário de MG em homenagem a Carlos Drummond de Andrade e Emílio Moura.

Após o lançamento, numa manhã de sábado na Livraria Travessa, fomos ao ateliê do artista plástico Jorge dos Anjos, na região da Pampulha. Chegando lá, Waly se atirou num canto externo da casa, debaixo de uma escada, um lugar bem aconchegante, que parecia um esconderijo, e, quando o chamávamos para ver as peças do artista dentro da casa, ele gritava: “deixem eu ficar aqui! Não me tirem daqui!”. E todos ríamos.

Era o Grande Waly, o excepcional danado, representando, claro; mas era também o Pequeno Waly, em plena crise de “vaziez”, denunciando o seu mal-estar no mundo.
Menos de um mês depois, na manhã de 05 de maio de 2003, acordei apavorado pela notícia da sua morte.
Era uma ideia muito rara, raríssima, de humanidade.


Este texto é o fragmento final de ensaio apresentado pelo autor no evento Literatura, Vazio e Danação no último 12 de junho na Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Blog: www.anelitodeoliveira.blogspot.com | Email: anelitodeoliveira@gmail.com | Face: www.facebook/anelitodeolivei

quarta-feira, 29 de maio de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira

Museu vivo da escravidão


Numa passagem muito paradoxal, reverberando a verdade factual que impregna as coisas, a verdade haurida na vida material de uma sociedade, Joaquim Nabuco disse no seu Minha formação (1900) – e Caetano Veloso, sempre ensimesmado diante das nossas contradições, recortou e gravou no seu “Noites do Norte” (2000) – que a escravidão permaneceria como característica nacional do Brasil.
Ou seja: nosso modo de ser nacional, nossa particularidade identitária, nossa subjetividade coletiva, o que exibimos publicamente, no espaço comum, está decididamente marcado, tudo isso, pela escravidão do povo negro arrancado à força da África, independente se foi ou não – para responder já aos neorracistas subcientificistas de hoje, aos Demóstenes e Magnolis e Kamels – com ou sem a contribuição de africanos.
125 anos (1888/2013) depois da promulgação da Lei Áurea, o Brasil é um grande, imenso, Museu Vivo da Escravidão. No país onde se tornou moda, há algum tempo, criar museu de qualquer coisa apenas – ou sobretudo –  para abocanhar  altas quantias do erário – especialidade das nossas elites espertalhonas -, está ficando cada vez mais difícil compreender por que ainda não se criou o Museu Vivo da Escravidão. Doravante, cobrarei royalties pela ideia, claro.
Vejam: não é necessário nenhum investimento material, nenhum orçamento milionário a ser negociado com os nobres deputados, mas tão-somente o reconhecimento pelo Governo Federal - através de seu Ministério da Cultura (porque negro é cultura, não é?) e da sua Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (porque se trata de igualar os negros aos não-negros em termos de valor museológico,  não é?) – da importância de, em tempos de Comissão da Verdade, restabelecer a verdade sobre a escravidão no Brasil.
E a verdade, neste caso, é que a escravidão permanece como conteúdo, como substância, como fundamento das práticas sociais brasileiras, como aquilo que move o cotidiano dessa sociedade. Nada que Nabuco não tenha percebido, mas de modo muito tropical, obnubilado (perturbado, obscuro), para usar um famoso achado conceitual de um grande crítico do seu tempo, o cearense Araripe Jr. (1848/1911).
Pensemos, a princípio, na esfera do trabalho organizado, assalariado, estruturante, obviamente, de toda sociedade moderna: mudou o quê, substancialmente, do fim legal da escravidão para cá no Brasil? Nada.
Não é preciso recorrer às estatísticas sempre ideológicas, que um Milton Santos (O país distorcido, Publifolha) sempre ousou colocar sob suspeita, para perceber que os negros (ou originariamente negros: mestiços, mulatos, pardos, categorias socialmente negras, como qualquer policial nos pode esclarecer, não é?) continuam, em sua imensa maioria, ocupando os piores lugares em todos os sentidos (físico, salarial, psíquico) no mundo do trabalho.
Lavrador, carvoeiro, minerador, doméstica, pedreiro, lavador de carro, faxineiro, motoboy, mecânico, metalúrgico (que só é título elevado no currículo de Lula) são, obviamente, funções dignas – qualquer trabalho é digno, dentro da mitologia cristã que nos domesticou -, mas é, no mínimo, estranho encontrarmos, geralmente, quase sempre, negros exercendo essas funções no país, não é mesmo?
Às vezes deparamos com negros exercendo funções supostamente menos cansativas e mais valorizadas pela sociedade, que são aqueles que, em sua maioria, conseguiram alcançar (graças a esforços sobre-humanos seus e dos seus pais ou parentes, não a benesses governamentais) um grau maior de escolaridade, mas que, mesmo assim, estão, geralmente, subvalorizados no mercado de trabalho, sobretudo a mulher negra, como revelou pesquisa do Instituto Ethos e do Ibope nas 500 maiores empresas do país em 2010 (disponível em http://www1.ethos.org.br).  
A pirâmide do trabalho no Brasil é muito clara, e só hipócritas não a percebem em sua gravidade, como expressão do racismo sofisticado contra os negros que os mantém presos a uma lógica escravocrata, sem perspectiva de avanço real em suas respectivas atividades porque estão sempre sob o signo da desconfiança dos seus “feitores” na iniciativa privada e, também, na administração pública – Ministérios, Universidades, Hospitais, Escolas, Repartições em geral -, onde o chamado racismo institucional oprime, humilha, silencia, elimina tantos negros sempre em nome dos “regimentos internos”.
Se saímos da esfera do trabalho e vamos para a esfera do consumo, percebemos que quase nada mudou do fim legal da escravidão para cá: os negros – como consequência da subvalorizaqção do seu trabalho, quando não do desemprego que comumente os abate -, em geral, consomem ainda hoje o que eles mesmos, como parte do vocabulário humilde dos pobres, chamam de “grosso” em matéria de alimentação: arroz, feijão, óleo etc.
Consomem, em sua maioria esmagadora, esse “grosso” em todos os sentidos, da alimentação – básica – ao carro – básico -, do vestuário ao mobiliário, da música – simplista - ao celular – pré-pago – até a droga – crack, resto de cocaína -, os negros, em plena sociedade do consumo, estão aprisionados ao básico, porque, claro, estão condenados a permanecer na base da pirâmide social.
Como se percebe, principalmente no sudeste do país, são, sobretudo, os negros que movimentam os grandes espaços de consumo, os shoppings populares instalados nos centros das metrópoles, os hipermercados – evitados, claramente, pelos brancos ricos, que recorrem agora a luxuosos mercadinhos, feitos meio que exclusivamente para eles -,  espaços que hoje se nos afiguram como legítimos mundos negros, como a 25 de março em SP e a Oiapoque em BH.
Não há dúvida de que os negros - como parte do segmento pobre brasileiro, como parte dos cerca de 36 milhões que migraram (de onde mesmo?) para a classe C, conforme o discurso governamental – estão consumindo mais atualmente, na exaltada boa fase da economia brasileira. Mas não pode haver dúvida também, da parte de quem ousa estar com a verdade, de que a qualidade dos produtos consumidos pelos negros é inferior à dos socioeconomicamente brancos, é, como hoje se diz, “meia-boca”.
Há, portanto, uma visível barreira ao consumidor negro, que constitui, se a pensamos com o Néstor García Canclini de Consumidores e cidadãos (Editora UFRJ), um obstáculo à efetivação da sua cidadania numa sociedade que proclamam (as elites economicistas) como sendo do consumo.
Essa barreira não apenas pode como deve ser pensada em face da escravidão: o negro não é livre para consumir o que quiser – sobretudo, produtos simbólicos, artes, literatura, cinema, teatro etc -, não tem liberdade ainda, digamos, de consumo, evidentemente, em função dos seus baixos, baixíssimos, muitas vezes, “capital dinheiro” (Marx) e “capital cultural” (Bourdieu).
Saindo da esfera do consumo, podemos considerar, sempre de modo sintético, uma outra esfera estratégica em toda sociedade, para postular, aqui, a sociedade brasileira como um aterrorizante Museu Vivo da Escravidão, que é, obviamente, a esfera da representação pública, onde tudo, absolutamente tudo, é expressão de poder legitimado pela sociedade, onde só é quem realmente pode ser.
Em pleno – e aclamado e exibido e festejado - Estado de Direito Democrático, temos um número mínimo, insignificante, de negros – digo: negros mesmo, socialmente, politicamente, negros, não oportunistas, brancos que se se dizem negros quando lhes convêm – nos espaços de poder público, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário e, também, nesse chamado quarto poder, que são os meios de comunicação hegemônicos. Basta este dado objetivo: temos um negro no Senado e um negro no Supremo Tribunal Federal.
Como entender este fato para além de Gilberto Freyre e dos apologistas da “democracia racial”? Como não compreender este fato senão da perspectiva de um controle da sociedade, nos termos consagrados pelas análises foucaultianas, bem como um controle do imaginário dessa sociedade, nos termos do crítico Luiz Costa Lima? Trata-se de um controle genérico e específico, do todo e de certas partes do social, que remonta claramente ao tempo da escravidão legal.
Trata-se de uma sociedade onde, para lembrar a indiana Gayatry Spivak de Pode o subalterno falar? (Editora UFMG), os subalternos, os negros, não podem, nunca puderam, falar. Podem trabalhar, podem fazer todo tipo de serviço braçal, especialmente os serviços mais sujos, podem suar a camisa. Não é esta, afinal, a grande imagem, a mais autêntica, que temos do Brasil? Negros e negras suando a camisa, carregando o país nas costas. Agora, na Era Lula-Dilma, é verdade que os negros em geral podem consumir mais produtos básicos, mas falar, decidir, sabemos que não – ainda não.
Negros trabalhando no pesado, nos campos e nas cidades, correndo atrás de bola, sambando nos morros desurbanizados, correndo de polícia, lavando pratos nas novelas da Globo (porque a arte, dizem os realistas mais estúpidos, imita a vida, não é?), negros sangrando atrás das grades, negros alcoolizados, drogados por toda parte, crianças, idosos e mulheres negras violentados historicamente e atirados à própria sorte – imagens do Museu Vivo da Escravidão que o Brasil preserva cinicamente e que suas autoridades precisam reconhecer e instituir nos termos da lei.




  

domingo, 5 de maio de 2013

POEMA | Anelito de Oliveira


Dentro da onda


Para Waly Salomão



Riamos, ríamos muito, ríamos
Completamente, e era difícil saber
De que estávamos rindo ali em
Meio à tarde, num espaço sóbrio,
Ríamos, você lá no Rio, eu em BH,
Você, colaborador ilustre, eu editor
De um suplemento literário, ríamos,
Claro, da nossa condição ridícula
No mundo, tentando ser, saber
Alguma coisa, condição que se ia
Revelando ali a cada lance retórico,
Você se dizendo tabaréu do sertão
Baiano e me dizendo jagunço do
Sertão rosiano, cheio de negaças,
Como é? Negaça, é, máscara, você
Parece um jagunço! Quem? Eu?!
E ríamos, ríamos da vida como ela é
Enquanto você atirava postas de vidas
Estrangeiras aos meus ouvidos como
Um bricoleur deslumbrado no lixão
- Ele, ele, ééé, Ele com E maiúsculo,
Uma entidade de que não pronuncio
O nome – quem? Hélio Oiticica? Sim,
- Não me arrisco nem a dizer o nome
Dele tal é o meu respeito, Ele, sim!
E Cássia Eller no Dona Lucinha nas
Noites de show, coisas a perceber
Risonhamente no mundo, Caetano –
Este, sim, esperto como uma Cobra
Coral -, O Rappa cantando Vapor
Barato, Afroreggae reinventando o
O som do morro, o mangue de Otto,
E coisas também a desperceber – uma
Bahia e tantos baianos na margem
De uma onda reacionária – sim, e ele
Repetia à exaustão como quem fazia,
Suando, vatapá ou agitava candomblé
- sim, sim, sim, por isso vim embora
Um dia, “Memória da pele” é isso,
“Eu já me esqueci você”, é a Cidade
De Salvador, eu deixando a Bahia,
Nada desse negócio de ficar à margem
Da onda, assistindo de longe, eu
Quero ficar é dentro da onda, dentro
Da onda, dentro da onda! –, e era de
Lá, eu pensava, que vinha sua voz,
De dentro de uma onda convulsa onde
Você morava profundamente, que lhe
Era íntima e de quem você era íntimo,
Sua homérica onda árabe que não se
Apaziguava – Que paz o quê? – Você
Gritando a plenos pulmões na noite
Sertaneja – o que existe é guerra, é
Guerra! – E todos amedrontados, a
Temer que você os violentasse, todos
Assombrados com a sua loucura, cada
Um procurando seu canto, enquanto
Você gritava ao telefone cobrando o
Pagamento pela sua performance  e
Se rebelando contra o cinismo estatal
Que assassina a poesia – Poetas pela paz?
Que paz o quê? É guerra, guerra! – e,
Tapando o som do telefone de mesa,
Olhava para mim – que estava ali pelo
Prazer de reencontrá-lo - e ria, ria, ria,
E ríamos daquilo que sabíamos ser
Apenas mais um ato da peça barroca
Que você encenou durante toda a vida,
A graça, por que ríamos, não sabiam,
Era a presença de Waly no mundo
     


05 de maio de 2013

sexta-feira, 5 de abril de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira

Elogio de Murilo Mendes

  
A história dos poetas


Os poetas vêm escrevendo, ao longo dos tempos, uma história singular, extraordinária, à margem da História Oficial que nos é imposta a cada dia por toda parte, pela escola, pelas igrejas, pela televisão etc. Não é uma história em que se ressaltam grandes acontecimentos, em que se procura a sacralização de determinados nomes, em que o objetivo maior sempre acaba sendo a mitificação de mortais vencedores, elevando-os a um panteão de supostos imortais. A história que os poetas escrevem é totalmente diversa porque, naturalmente, articula-se a partir de um ângulo diverso, incomum, estranho. Não é do alto, do pico de uma montanha ou da janela de um castelo, que os poetas veem, mas sim do baixo, do chão – o poeta é mesmo, como se lê no “L’albatroz” de Baudelaire, um “exilé sur le sol”, um “exilado no chão”. Vendo de baixo, conseguem revelar realidades que a História Oficial ignora ou considera irrelevantes, mas que são – não cessamos de constatá-lo – os constituintes fundamentais da existência humana. Essa existência, a nossa, não é mais nem menos do que foi configurado nos textos bíblicos, nos poemas homéricos, nos “récits” trágicos e cômicos, na Divina comédia, n’Os Lusíadas, no Fausto, no Grande Sertão: Veredas, enfim, em tantos outros escritos cuja grandeza deriva, sobretudo, do fato de revelarem um dado impressionante: a verdade está no outro.  O que nos diz “O livro de Jó”? Que a verdade está no “pobre”, naquele que, libertado de toda “riqueza”, inteiramente despojado, pode ouvir sua voz interior, não é escravo de ninguém. O que nos dizem Odisséia e Ilíada? Que a verdade está no “agonístico”, no que porta o “agon”, no conflituoso, naquele que joga sobre as próprias costas as ânsias dos seus semelhantes e, em nome deles, para dar-lhes um outro porvir, enfrenta o mar, dilacera-se na guerra. O que nos dizem os trágicos, um Sófocles, um Eurípides? Que a verdade está no cego (Tirésias), que a verdade está na mulher (Medéia), está, portanto, naquele que todos pensam que não enxerga ou naquela que ainda hoje, aqui e em tantos lugares, é tida como inferior, como incapaz, como mero objeto. Também os outros textos aqui espontaneamente lembrados remetem-nos ao entendimento de que a verdade, a mais plausível verdade, está fora daquele lugar onde a maioria absoluta está acostumada a procurá-la, fora do centro, fora de foco, fora do Mesmo. A história dos poetas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, pode mesmo ser tida como a história da escrita dessa verdade do outro, essa censurada verdade do outro, essa insuportável verdade do outro.


Poesia-inventário


Toda essa digressão pareceu-me necessária para afirmar que Murilo Mendes acrescentou preciosas linhas a essa história que os poetas vêm escrevendo, incansavelmente, ante a não rara indiferença de letrados insensíveis. Não são todos os poetas, evidentemente, que lograram, já no século XX, acrescentar algo a essa história, mas tão-somente aqueles que, como Murilo, mantiveram-se presos ao “espírito religioso” que Mário de Andrade ostentava e incitava nos primeiros modernistas mineiros. Dizia o autor de Macunaíma, naquele seu estilo único de filosofar sorrindo, em carta a Carlos Drummond de Andrade nos distantes anos 20: “Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz de viver a vida: é ter espírito religioso. Explico melhor: não se trata de ter espírito católico ou budista, trata-se de ter espírito religioso para com a vida, isto é, viver com religião a vida. Eu sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach e ponho tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que vai figurar nas paredes dum bailarico e morrer no lixo depois como um romance a que darei a impassível eternidade da impressão”. Murilo Mendes, de quem é possível dizer que tenha praticado esse “espírito religioso” em amplo e estrito senso, não esteve indiferente a nenhuma manifestação da vida, praticando algo como uma poesia-inventário, feita de elementos díspares pertencentes a uma família-mundo, não apenas a família biológica ou artística (a do homem, a do poeta). Seu trajeto começa justamente com a inventariação – no sentido de uma recapitulação, de um resgate, de uma rememoração – da imagem do exilado, e não apenas daquela fixada por Gonçalves Dias, como literariamente, pelo viés da intertextualidade, interpreta-se. O exilado muriliano, ao contrário daquele do romântico, não lacrimeja de saudade porque não se sente apartado realmente do seu país, por um simples fato: não concebe o apart-amento, a separabilidade. Para esse exilado, não há países, não há divisões territoriais, há uma terra apenas onde convivem “macieiras da Califórnia”, “gaturanos de Veneza”, “poetas”, “pretos”, “sargentos do exército”, “monistas”, “cubistas”, “filósofos polacos”, “sururus”, “Gioconda”, “carambola”, “sabiá” etc etc. Nessa “Canção do exílio”, com que nos deparamos já no primeiro livro do poeta (Poemas, 1930), insinua-se o caráter múltiplo que marca a poética muriliana, caráter esse que tem tanto motivações estéticas – tão debatidas pela crítica com o intuito de atestar uma obra “poliédrica” - quanto éticas. Estas, a meu ver, precedem aquelas – e Murilo Mendes o exemplifica a contento ainda no seu primeiro livro quando, no antológico poema “Mapa”, investe contra todo tipo de mapeamento, sectarização, estabelecimento, a começar pelo tempo, os pontos cardeais e a educação, inaugurando uma “bagunça transcendente”.



O mapa muriliano



Diz Murilo Mendes no poema “Mapa”:



Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.

Detesto os que se tapeiam,

os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...

Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,

e os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,

as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.

Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...

Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,

dos amores raros que tive,

vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,

tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,

estou no ar,

na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,

no meu quarto modesto da praia de Botafogo,

no pensamento dos homens que movem o mundo,

nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,

sempre em transformação.



São palavras de um libertário, de um sujeito que quer se libertar e também libertar os outros, romper com a segmentação, com a “territorialização”, procedendo a uma “desterritorialização”, como diria Deleuze. O “mapa” de Murilo Mendes desdiz o nosso mapa de cada dia, que nos fecha num individualismo insano, para afirmar um novo mapa, o mapa da verdade poética, que nos abre uma vivência coletiva. Nesse novo mapa, sim, os viventes não estão limitados por quaisquer mecanismos da chamada “vida prática”, não estão castrados por “nenhuma teoria”, estão, finalmente, livres. Trata-se de peça das mais ousadas não só da poesia brasileira, mas da poesia moderna como um todo, que só encontra parâmetro em espíritos inquietos como Rimbaud, Whitman, Lorca, Paz, Maiakóvski, Lezama, bem como nos seus contemporâneos brasileiros, um Mário, um Oswald e um Drummond. Com este, Drummond, também mineiro, o “Mapa” de Murilo Mendes guarda inegáveis afinidades. Pensemos em poemas como “Nosso tempo”, “Cidade prevista” e “América”, em que o autor de A rosa do povo, movido pelos acontecimentos trágicos da Segunda guerra mundial, deixa falar o sonho de uma sociedade em que todos vivam em comunhão. O poema de Murilo Mendes aponta para o fato de que essa comunhão, à medida que só pode se efetivar realmente com a liberdade de cada um, é uma causa transtemporal, que independe de contextos determinados, uma causa moral, uma causa ética, uma causa profundamente poética. De todo modo, é significativo que dois poetas mineiros já no século XX – Murilo e Drummond – tenham aguçado esse tipo de questão -  a da liberdade -, o que, antes de mais nada, desperta-nos para o fato de que essa, ainda que não objetivamente, também foi, ou acabou sendo, a questão de um Aleijadinho (libertar a forma, deixar que ela se desdobre, “clonar” apóstolos, santos, igrejas), a de um Cláudio Manuel da Costa (libertar a sensibilidade, ampliar as faculdades imaginativas, “escrever” uma cidade) e a de um José Severiano de Rezende, o rebelde simbolista que se libertou da batina de padre, nunca se conteve nem mesmo nos limites da poesia e, no fim das contas, acaba se libertando, como Murilo Mendes, do próprio mapa do Brasil, partindo para a Europa e morrendo em Paris em 1931. Portanto, o autor de A poesia em pânico e Poesia liberdade tem, senão precursores, pelo menos predecessores no Estado onde nasceu, ou, melhor dizendo, exemplos que talvez tenham contribuído, de alguma forma, quem sabe como parte do imaginário que inevitavelmente nos complementa, para que a liberdade se tornasse o próprio fundamento do seu gesto poético. Essa liberdade que ainda não temos, que cada vez mais desconhecemos a despeito de tanta propalada democracia, essa realmente “dificile liberté”, como diz Lévinas, essa liberdade que não temos, no fundo, porque, se um dia a tivermos, acontecerá aquilo que o “Mapa” de Murilo Mendes prevê: “o mundo vai mudar a cara”. Será, acrescento, um “murilomundo”. 



Este breve ensaio em tom de intervenção oral, um dos inúmeros guardados que fico bestamente guardando, foi escrito em 2001 e lido pelo poeta mineiro Luís Eustáquio Soares, em atenção generosa a uma solicitação que lhe fiz (eu estava em viagem), em evento de lançamento de um Suplemento Literário de Minas Gerais (que eu então editava) especial em homenagem ao centenário de nascimento de Murilo Mendes no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Naquele momento, recebi uma carta atenciosa da viúva do poeta, Maria da Saudade Cortesão Mendes – também poeta e tradutora, filha do historiador e escritor Jaime Cortesão -, agradecendo-me, desde Lisboa, pelo Suplemento e por este texto. Estranhamente – o que só se explica em função do estado de desinformação em que estamos submersos com tanta informação hoje em dia -, só no final de fevereiro último tomei conhecimento de sua morte, ocorrida ainda em 2010, e fiquei bastante perplexo, porque era uma das figuras poéticas do século XX que eu pensava que ainda teria o prazer de alcançar vivas. Maria da Saudade completaria 100 anos agora em 2013 e aqui socializo este texto – também – em homenagem a ela.  

domingo, 17 de fevereiro de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira


Poetas, políticos e polícias [parte 2]


A imagem-Stevens


Grande parte da poesia produzida nos anos 90 no Brasil é marcada por procedimentos comuns, cada livro parece com outro já lido, uma identificação que diz respeito, sobretudo, aos limites do dizer. A impressão que fica, ao fim de cada leitura, é que havia uma espécie de “código de trânsito” naquela produção que não podia ser subvertido, um código que todos os poetas conheciam “de cor e salteado” e, naturalmente, respeitavam. Esse cumprimento rigoroso do “código” é justamente o que nos faz pensar num controle da sensibilidade, da sensação, que resulta num sufocamento da dimensão empírica do sujeito em função de uma suposta dimensão mais racional.
Tal procedimento teve suas motivações em leituras de João Cabral e dos concretos paulistas, leituras que privilegiaram aquilo que acabou conferindo singularidade a essas poéticas, o racionalismo, leituras superficiais, portanto, já que essas poéticas também têm seu delírio, sua paradoxal transcendência na imanência. Cabral, Augusto de Campos e Haroldo de Campos – Décio Pignatari nem tanto – acabaram se tornando os poetas mais influentes na década de 90, até porque se tornaram os mais presentes na cena poética, uma vez que Carlos Drummond de Andrade e Paulo Leminski, que tinham uma presença marcante, morreram ainda no fechamento dos anos 1980, em 1987 e 1989, respectivamente.
 Drummond “rivalizava”, no bom sentido do Harold Bloom de The anxiety of influence (Oxford University Press, 1997), com Cabral, praticando uma poesia ligada ao dia-a-dia, factual, dialógica; Leminski “rivalizava” com os concretos, praticando uma poesia pop, jovial, “malandra”. Drummond e Leminski conceberam uma linguagem poética, a um só tempo, rigorosa e prazerosa, para lembrar Barthes, que tocava fundo – e ainda toca – na existência do leitor. Esses dois poetas mantinham o elo com a imagem do poeta baudelairiano, o que era quase óbvio no caso de Drummond, nascido na alvorada do século XX, egresso da primeira hora modernista.
Não era tanto de se esperar que Leminski mantivesse tal elo, não apenas devido ao fator idade, mas, sobretudo, devido à intervenção da cultura norte-americana na formatação da sensibilidade de sua geração, através do rock, da “pop art”, do cinema etc. O poeta de La vie en rose, que alardeia em seus últimos dias uma grande admiração pelo cinema – não-holywoodiano, claro – norte-americano, mantém-se ligado à imagem-Baudelaire, bem como a todo o Simbolismo, mantém-se intimamente conectado à cultura europeia, portanto. Talvez a conjunção América/Europa em Lemisnki tenha seu estímulo em Oswald de Andrade: “O cinema americano informará”, como diz o “Manifesto antropófago” (A utopia antropofágica, Globo, 1990).   
O desaparecimento de Drummond e Leminski, dois “poetas fortes”, para falar ainda com Bloom, coincide com o início de um processo de adesão entusiasmada do segmento letrado da sociedade brasileira ao eixo cultural estadunidense. Trata-se, evidentemente, da consumação de um fato que vinha se verificando desde os anos 1960, sempre encontrando resistência por parte da grande maioria dos letrados, que se engajava ardorosamente em lutas contra o chamado “capital estrangeiro”. No fim dos anos 80, essas lutas perdem seu sentido e, automaticamente, a língua inglesa passa a ter primazia em relação à francesa e poetas modernistas norte-americanos, como Wallace Stevens e Williams Carlos Williams, são amplamente difundidos no centro cultural brasileiro, isto é, Rio e São Paulo.
Os grandes debates, então, deixam de ser em torno de poesia para ser em torno de tradução de poesia, especialmente do inglês para o português, uma luta em torno da fidelidade ao original. O poeta paulistano Régis Bonvicino se tornaria ao longo dos anos 90 o principal divulgador da poesia contemporânea estadunidense no Brasil, traduzindo e editando autores como Robert Creeley, Douglas Messerli e Michael Palmer. Todavia, foi num modernista, Wallace Stevens, que muitos novos poetas brasileiros do fim dos anos 80, que queriam se diferenciar dos “marginais” dos anos 70 tanto quanto da disciplina cerebral dos concretos, encontraram um referencial altamente plausível, uma poesia sensata, digamos, sem radicalismos formais nem conteudísticos, sem agonia, sem delírio, numa palavra: sem relações comprometedoras. A propósito, Paulo Henriques Brito, responsável pela tradução de Stevens para uma edição da Companhia das Letras, chega a declarar que aprendeu fazer poesia também com esse exercício (“O filho rebelde de Cabral”, entrevista a Carlos William Leite, Revista Bula, 2008, www.revistabula.com / acesso: 13/02/2013)
Desprovida da profundidade romântica que caracteriza a modernidade, a poesia de Stevens, superficiosa, voltada para a descrição das coisas, nunca para a decidida alteração da ordem natural das coisas, torna-se o paradigma da poesia brasileira que se estabelece nos anos 90. Nesse paradigma, pode-se dizer que os poetas desta última década do século reconheceram um uso da escrita capaz de não repetir aquilo que, para eles, talvez tenha sido um “erro”, a causa dos desastres que perseguiram os poetas da aurora da modernidade aos anos 70. Reconheceram, portanto, uma “política da escrita” mais eficaz, mais apropriada para a “nova ordem” sociocultural, um olhar que direciona o poema não para o dissenso – que está no cerne da política mesma, conforme Rancière –, mas para o consenso, que configura a anulação da política.
As instituições que zelam pela civilidade, sobretudo a Universidade e a imprensa, contribuem de forma decisiva para o estabelecimento desse paradigma, para essa conversão da imagem-Baudelaire em imagem-Stevens, do maldito em bendito, essa migração do poeta de um mundo “sujo” para um mundo “clean”. Setores da universidade e da imprensa acabam por reconhecer bom gosto nesse paradigma e o legitima, cabendo aos poetas colocá-lo, portanto, em prática.


Régis Bonvicino


As instituições que zelam pela civilidade, sobretudo a Universidade e a imprensa, contribuíram de forma decisiva, ao longo dos anos 90, para o estabelecimento de um novo paradigma no cenário poético brasileiro, para uma conversão da imagem-Baudelaire em imagem-Stevens, do maldito em bendito, essa migração do poeta de um mundo “sujo” para um mundo “clean”. Setores da universidade e da imprensa acabaram por reconhecer bom gosto nesse paradigma e o legitimaram, cabendo aos poetas colocá-lo, portanto, em prática.
Coube a Régis Bonvicino dar início a esse processo de “stevenização”, como poderíamos chamá-lo, da poesia brasileira, com seu 33 poemas (Iluminuras), aparecido justamente em 1990, livro em que se confrontam duas sensibilidades, aquela “coloquial-irônica”, que Edmund Wilson identificou num pólo do Simbolismo francês, e outra, racionalizante, não exatamente “sérioestética”, como o crítico norte-americano também definiu o pólo Mallarmé-Valéry. Racionalizante porque já não está em questão a “seriedade”, muito menos a “estética”, mas uma tentativa de racionalizar o poema, o que implica, naturalmente, um distanciamento do lugar do acontecimento poético.
Bonvicino, nesse esforço de racionalização, promove uma considerável alteração no “rosto” do poema, conferindo-lhe um aspecto escritural, de coisa grafada no papel, não mais “soprada” contra o papel, depois de ter sido flagrada no ouvido, como ocorreu no modernismo brasileiro de 22 e 30, no Gullar da A luta corporal, na Tropicália, em poéticas como a de Cacaso, Ana C. e Francisco Alvim, enfim, essa apreensão oral do poético que já nos anos 80 foi responsável pela efervescência da palavra cantada de um Cazuza, um Renato Russo e, também, um Arnaldo Antunes, na senda aberta por um Itamar Assumpção ou mesmo um Péricles Cavalcanti.
O esforço de racionalização de Bonvicino tem prosseguimento no seu livro posterior a 33 poemas, intitulado singelamente de Outros poemas (Iluminuras), publicado em 1993, e em seu Ossos de borboleta (Editora 34), aparecido em 1996, título que é um achado, sim, mas um achado preciosista. Em Ossos de borboleta, Bonvicino atinge o ápice do seu esforço de racionalização e se evidenciam sua impossibilidade de conceber uma poesia totalmente distanciada do lugar de onde o poeta fala, o que se deve ao fato de ser um poeta egresso do ambiente nada “clean”, para não dizer insalubre, dos anos 70.
Não se trata de poeta dos anos 90, tanto que acertadamente não foi incluído na antologia que Heloísa Buarque de Hollanda organizou dessa geração, Esses poetas (Aeroplano, 1998). Seu livro Céu-eclipse (Editora 34, 1999) tem, sobretudo, o mérito de mostrar por que Bonvicino é prevalentemente um poeta intervalar, do intervalo entre os anos 70 e 90. Ainda é um poeta que experiencia a cidade, que anda pelas ruas, que se envolve, de alguma forma, com o mundo exterior, apreende fragmentos desse mundo.
Contudo, estão no Régis Bonvicino dos três primeiros livros citados – 33 poemas, Outros poemas e Ossos de borboleta –, bem como em muitos dos poemas de Céu-eclipse, as diretrizes básicas da poesia da Geração 90, sendo a principal delas o posicionamento do poeta na cena poética, no instante de concepção do poema, que é um posicionamento de observador, ideologicamente descomprometido, tanto quanto possível, com o que observa. O próprio Bonvicino logra sugerir o que sucede numa observação descomprometida e numa observação comprometida. Observemos dois momentos de Céu-eclipse:


O sol

O sol é céu
em forma de azul
que a água não repete
mesmo em reflexo

mente
é a forma de corpo
sentindo-se
resignada

um e outro
como o vento na água


031197

Eu também moro nas ruas. Uma ponta de cigarro na orelha e um cinzeiro – na mão. “Você não parece morar nas ruas”. Um caco de dente na boca. Naquele instante, edifícios saqueavam sombras, insones, parindo cobras. Ele poderia subitamente ter sacado a faca, na calçada, disseram. Há margens debruadas de luzes. Edifícios cúbicos movendo-se sob arcadas de samaúmas. Esquinas defuntas? E, sob um arco, down town, lâmpadas inchadas medindo o horizonte. Correm vozes em desordem, mudas, e um guincho talvez de guaxanim. De tarde, corvos latindo nas árvores e cacto abrupto da casa. Estradas guiando noites. Quase ao lado do Johnnie´s, Coffee shop, com seu leve jogo de luzes. Paredes não se encolhiam como sono. Acqua & branco. Alba imóvel dentro do quarto.


Nisso que estou chamando de observação ideologicamente descomprometida, a realidade observada mostra-se como algo facilmente manipulável por parte do observador, não resistindo ao seu modo de observação, ao seu ponto de vista: “Sol é céu”, “mente/ é forma de corpo”, “um e outro” são “como o vento na água”, ou seja, nada de anormal, tudo muito natural. Por outro lado, a observação comprometida com o que se observa, empenhada em conhecer intimamente a realidade observada, interpela o observador: “Você não parece morar nas ruas”, diz essa realidade. E o observador libera a escrita, conota, duvida, cogita: “Ele poderia subitamente ter sacado a faca”.
A realidade, quando observada de perto, com um sujeito comprometido com sua compreensão, revela-se ativa, ofensiva, agressiva. O posicionamento distanciado da realidade observada é, na poesia dos anos 90 no Brasil, uma tentativa, da parte do poeta, de se preservar de um possível envolvimento comprometedor com o entorno, uma precaução em relação a possíveis agressões perpetradas pelo exterior, pelo “lado de fora” do pensamento, como diria Foucault. Trata-se de um posicionamento, portanto, estratégico, político, que evita o confronto. A base implícita desse posicionamento não poderia ser outra senão um policiamento da sensibilidade, um controle das forças emotivas.


Carlito Azevedo


Não é Bonvicino, como foi dito, que radicaliza esse tipo de posicionamento diante da realidade, não cabendo a ele, assim, o mérito ou demérito pela articulação definitiva da poeticidade com a politicidade e a policialidade na poesia dos anos 90 – o poeta paulista, talvez até involuntariamente, apenas abre caminho para tal procedimento. Quem realiza essa articulação definitiva é Carlito Azevedo, poeta típico dos anos 90, cuja estreia se dá justamente em 1991, com Collapsus linguae (Imago), uma poesia basicamente literária, “sampleando” as mais diversas poéticas, do poema-minuto modernista às destruições morfossintáticas dos concretos.
Percebe-se, ao lado dessa vontade de conciliação de linguagens, inegavelmente ligada ao desejo de legitimação de um discurso, um pendor espontâneo à ironização que confere um tom “decadentista” a Collapsus linguae, um movimento no sentido de resgatar o horizonte poético jocoso de um Tristan Corbière, por exemplo, um movimento que nunca logrou despertar muito o interesse dos poetas brasileiros. Talvez apenas Sebastião Uchoa Leite, Leminski e o primeiro Bonvicino, de livros como Régis hotel (1978) e das versões de Jules Laforgue, tenham sido os poetas brasileiros contemporâneos mais sensíveis a essa vertente “coloquial-irônica”, da qual parecia, naquele início dos anos 90, que Carlito Azevedo se tornaria um mestre.
O primeiro livro de Carlito nos revela um poeta geneticamente bem humorado, transitando em meio aos enunciados autoritários do mundo artístico-literário, sem querer aderir a nenhum deles, repetindo todos, respeitando todos. Tratava-se apenas, ao final das contas, do poeta estratégico, que desconfiava de tudo que ouvia já no início do processo de concepção do poético, um poeta que só assimilava o “estalo”, o ruído, após proceder à sua estilização, como está dito no poema “Da inspiração”, que é o atestado preciso da poesia dos anos 90 no país:


Desconfiar do estalo
Antes de utilizá-lo

Mas sendo impossível
De todo aboli-lo

Desconfiar do estalo
Dar ao estalo estilo      



NOTA Este texto é a segunda parte de um ensaio apresentado originalmente como conferência em 2000 na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que permaneceu inédito e está publicado atualmente em Orobó | Kadernu di Ynwenssões www.revistaorobo.blogspot.com.br ANELITO DE OLIVEIRA

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira



Poetas, políticos e polícias [Parte 1]



À procura do elo perdido


A poesia brasileira aparecida ao longo da década de 1990 foi vista com bastante entusiasmo, principalmente por pesquisadores universitários, por poetas estabelecidos que se reconheciam como seus influenciadores e, claro, pelos próprios novos poetas. Pode-se falar mesmo de uma certa unanimidade, entre os produtores e receptores dessa poesia, em torno de um caráter positivo da diversidade de linguagens que caracteriza aquele momento, tanto em termos formais quanto conteudísticos, o que não aconteceu em períodos anteriores, sempre marcados por posicionamentos ortodoxos, pela intransigência dos grupos fundamentados em valores estéticos e ideológicos.
Nos anos 90, cada um passou a fazer o que queria fazer: poesia verbal, visual, videopoesia, infopoesia, poesia sonora, soneto, poema-piada, balada, hai-kai, poesia negra, poesia gay, poesia feminina, neobarroca, modernista etc, um vale tudo. Assistimos, sem dúvida, a um espetáculo de democracia na cena poética, reflexo natural da chamada “abertura democrática” de 1985. Nunca se escreveu tanto, nunca a produção de livros de poesia foi tão grande, nunca houve tantas revistas voltadas para a divulgação de poesia.
Impossível negar a importância de toda essa efervescência para o processo sociocultural brasileiro como um todo, impossível negar a pertinência da democratização do espaço poéticoliterário. Não é isso, portanto, que pretendo sequer sugerir nestas linhas, não quero, para lembrar Leminski, “fazer chover no piquenique” da geração 90, mas apenas introduzir uma interpretação que me parece relevante, uma problematização fundamental em toda tarefa de interpretação, que é a de restabelecer o elo entre a voz e o lugar.
Esse elo, que corresponde à relação entre ideias e coisas, perde-se, oblitera-se ou dispersa-se inevitavelmente quando se fala, e, mais ainda, quando se escreve, ainda mais quando se trata de uma escrita incontrolavelmente conotativa, como é o caso da escrita literária e, de maneira muito particular, da escrita poética. Quando se escreve, perturba-se, inevitavelmente, a relação natural entre planos ideal e real; quando se escreve muito, a tendência é essa perturbação aumentar, tudo se nos apresentando embaralhado.
A perturbação é inerente à escrita, que vem a ser o alicerce da democracia, como argumenta Jacques Rancière em Políticas da escrita (Editora 34, 1995, p. 9-15): 
Ora, a escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia legitimamente e o leva a destino legítimo, vem embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer. A perturbação teórica da escrita tem um nome político: chama-se democracia. (...) Há democracia – e política, consequentemente – porque há palavras sobrando, palavras sem referente e enunciados sem pais que desfazem qualquer lei de correspondência entre a ordem das palavras e a das coisas. A deserção democrática da incorporação comunitária é solidária da deserção literária da encarnação. Literatura e democracia são dois modos de invenção de quase-corpos ou de incorpóreos cujo dispositivo fragiliza as encarnações e as identificações que ligam uma ordem do discurso a uma ordem das condições. Essa comunidade estética da separação é uma comunidade política da deslegitimação.


Do Barroco a Baudelaire


Nossa “comunidade” ocidentalizada tem em comum a experiência do “veto ao ficcional”, do “controle do imaginário”, como explorou exaustivamente Luiz Costa Lima (O controle do imaginário & A afirmação do romance, Companhia das Letras, 2009), toda uma tradição de repressão que a arte tem procurado, desde os antigos trágicos gregos, rechaçar, um ideal intimamente ligado à vontade de humanização do homem, como ficou modernamente dito pelos românticos alemães, de Goethe a Novalis. Rechaçar a tradição da repressão equivale a instaurar o “regime da letra órfã”, nos termos de Rancière, independente de “pai”, a letra arbitrária, selvagem, subversiva, que não depende de um Senhor para legitimá-la, como se ela não pudesse realmente estabelecer-se na presença do “pai”.
Este entendimento está claro, a meu ver, nas três principais poéticas da Modernidade ocidental: a barroca, a romântica e a simbolista, poéticas da desrepressão, pode-se dizeer, marcadas que são pela vontade de fazer emergir as sombras, as incompletudes, os dilaceramentos que constituem o sujeito no mundo. Interessante notar que aquilo que consideramos Barroco é relativamente “vizinho” de dois eventos de “liberação” da letra, o Renascimento e a invenção da imprensa. Barroco, Romantismo e Simbolismo são poéticas que, diferentemente da poética clássica de extração romana, não se relacionam de forma autoritária com o real, o que lhes permite colocar em xeque qualquer primado absolutizante de verdade, de belo, logrando explicitar, consequentemente, a crise do sujeito.
O reconhecimento do significado profundamente positivo dessas poéticas veio, a partir do final do século XIX, dos próprios modernismos, sobretudo, que no fundo são, por toda parte, reverberações do Barroco, do Romantismo e do Simbolismo, como, frisando as duas últimas poéticas, reconhece Alfredo Bosi, no seu O ser e o tempo da poesia (Cultrix, 1990, p. 151):
(...) a verdadeira poesia seguiu a senda aberta pelos românticos e pelos simbolistas inventando mitologias libertadoras como resposta consciente e desamparada às tensões violentas que se exercem sobre a estrutura mental do poeta. O Surrealismo e o Expressionismo são viveiros de mitos pessoais ou de pequenos grupos em que se projetam desejos de expansão titânica ou demoníaca de homens cuja força de ação se inflete sobre si mesma, incapazes que são de dominar sistemas cada vez mais anônimos. Demiurgo da própria impotência, o poeta tenta abrir no espaço do imaginário uma saída possível.
Dessas três poéticas descende a imagem que temos do poeta na modernidade. O poeta como estranho, o albatroz baudelairiano, “exilé sur le sol”, impedido de voar pelas próprias asas gigantes, o satã, o amaldiçoado, o maldito, o rebelado, o abandonado, o isolado. Tudo isso vale para Baudelaire tanto quanto para Rimbaud, Mallarmé, Blake, Hölderlin, Whitman, Cruz e Sousa etc. Baudelaire é a imagem-síntese do poeta na alta modernidade, o lírico que flana entre as ruínas do capitalismo, como o fixou Walter Benjamin (Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, Brasiliense, 1994), mas também o poeta que estabelece uma conexão entre a modernidade, socioeconomicamente entendida, e o Barroco, operando com uma “raison baroque”, como mostra Christine Buci-Glucksmman (La raison baroque: de Baudelaire a Benjamin, Galilé, 1984).
Essa imagem baudelairiana do poeta contém, portanto, uma estranheza psíquica, cultural, espacial e temporal, toda uma estrangeiridade que, até mesmo em função da sua encarnação no século XIX, passou a constituir a identidade do poeta nas primeiras três décadas do século XX. A imagem-Baudelaire está em Maiakóvski, em Lorca, em Pound, em Eliot, em Celan, em Trakl, em Vallejo, em Pessoa, em Sá-Carneiro, em Paz; está, em termos nacionais, em Mário, em Oswald, em Emílio Moura etc. Entretanto, no caso do Brasil, essa imagem aparece encarnada já no século XIX em Cruz e Sousa, que, através de Baudelaire, passou a “pensar a arte como espaço de representação dos abismos, da dor e do horror”, conforme o lúcido olhar de Ivone Daré Rabello (Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa, Nankin/Edusp, 2006).
Também assimilam essa imagem poetas como os mineiros Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de Rezende, mas é Cruz e Sousa que, com seu negro inferno, confere um traço diferencial brasileiro a essa imagem. Cruz e Sousa não é, obviamente, paradigma para a produção poética brasileira do século XX, apesar de sua fortuna crítica, de seus inúmeros adoradores e do respeito que muitos nomes ilustres lhe devotaram. Cruz e Sousa, que mais se aproxima da imagem baudelairiana do poeta, tem alguma coisa a ver com a desconexão dos poetas dos anos 1990 com Baudelaire no Brasil? Com esta pergunta, retornemos ao agora.


NOTA | Este texto é a primeira parte de um ensaio originalmente apresentado como conferência em 2000, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que permaneceu inédito e, neste momento, está publicado em Orobó | Kadernu di Ynwenssões www.revistaorobo.blogspot.com.br. ANELITO DE OLIVEIRA