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quarta-feira, 29 de maio de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira

Museu vivo da escravidão


Numa passagem muito paradoxal, reverberando a verdade factual que impregna as coisas, a verdade haurida na vida material de uma sociedade, Joaquim Nabuco disse no seu Minha formação (1900) – e Caetano Veloso, sempre ensimesmado diante das nossas contradições, recortou e gravou no seu “Noites do Norte” (2000) – que a escravidão permaneceria como característica nacional do Brasil.
Ou seja: nosso modo de ser nacional, nossa particularidade identitária, nossa subjetividade coletiva, o que exibimos publicamente, no espaço comum, está decididamente marcado, tudo isso, pela escravidão do povo negro arrancado à força da África, independente se foi ou não – para responder já aos neorracistas subcientificistas de hoje, aos Demóstenes e Magnolis e Kamels – com ou sem a contribuição de africanos.
125 anos (1888/2013) depois da promulgação da Lei Áurea, o Brasil é um grande, imenso, Museu Vivo da Escravidão. No país onde se tornou moda, há algum tempo, criar museu de qualquer coisa apenas – ou sobretudo –  para abocanhar  altas quantias do erário – especialidade das nossas elites espertalhonas -, está ficando cada vez mais difícil compreender por que ainda não se criou o Museu Vivo da Escravidão. Doravante, cobrarei royalties pela ideia, claro.
Vejam: não é necessário nenhum investimento material, nenhum orçamento milionário a ser negociado com os nobres deputados, mas tão-somente o reconhecimento pelo Governo Federal - através de seu Ministério da Cultura (porque negro é cultura, não é?) e da sua Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (porque se trata de igualar os negros aos não-negros em termos de valor museológico,  não é?) – da importância de, em tempos de Comissão da Verdade, restabelecer a verdade sobre a escravidão no Brasil.
E a verdade, neste caso, é que a escravidão permanece como conteúdo, como substância, como fundamento das práticas sociais brasileiras, como aquilo que move o cotidiano dessa sociedade. Nada que Nabuco não tenha percebido, mas de modo muito tropical, obnubilado (perturbado, obscuro), para usar um famoso achado conceitual de um grande crítico do seu tempo, o cearense Araripe Jr. (1848/1911).
Pensemos, a princípio, na esfera do trabalho organizado, assalariado, estruturante, obviamente, de toda sociedade moderna: mudou o quê, substancialmente, do fim legal da escravidão para cá no Brasil? Nada.
Não é preciso recorrer às estatísticas sempre ideológicas, que um Milton Santos (O país distorcido, Publifolha) sempre ousou colocar sob suspeita, para perceber que os negros (ou originariamente negros: mestiços, mulatos, pardos, categorias socialmente negras, como qualquer policial nos pode esclarecer, não é?) continuam, em sua imensa maioria, ocupando os piores lugares em todos os sentidos (físico, salarial, psíquico) no mundo do trabalho.
Lavrador, carvoeiro, minerador, doméstica, pedreiro, lavador de carro, faxineiro, motoboy, mecânico, metalúrgico (que só é título elevado no currículo de Lula) são, obviamente, funções dignas – qualquer trabalho é digno, dentro da mitologia cristã que nos domesticou -, mas é, no mínimo, estranho encontrarmos, geralmente, quase sempre, negros exercendo essas funções no país, não é mesmo?
Às vezes deparamos com negros exercendo funções supostamente menos cansativas e mais valorizadas pela sociedade, que são aqueles que, em sua maioria, conseguiram alcançar (graças a esforços sobre-humanos seus e dos seus pais ou parentes, não a benesses governamentais) um grau maior de escolaridade, mas que, mesmo assim, estão, geralmente, subvalorizados no mercado de trabalho, sobretudo a mulher negra, como revelou pesquisa do Instituto Ethos e do Ibope nas 500 maiores empresas do país em 2010 (disponível em http://www1.ethos.org.br).  
A pirâmide do trabalho no Brasil é muito clara, e só hipócritas não a percebem em sua gravidade, como expressão do racismo sofisticado contra os negros que os mantém presos a uma lógica escravocrata, sem perspectiva de avanço real em suas respectivas atividades porque estão sempre sob o signo da desconfiança dos seus “feitores” na iniciativa privada e, também, na administração pública – Ministérios, Universidades, Hospitais, Escolas, Repartições em geral -, onde o chamado racismo institucional oprime, humilha, silencia, elimina tantos negros sempre em nome dos “regimentos internos”.
Se saímos da esfera do trabalho e vamos para a esfera do consumo, percebemos que quase nada mudou do fim legal da escravidão para cá: os negros – como consequência da subvalorizaqção do seu trabalho, quando não do desemprego que comumente os abate -, em geral, consomem ainda hoje o que eles mesmos, como parte do vocabulário humilde dos pobres, chamam de “grosso” em matéria de alimentação: arroz, feijão, óleo etc.
Consomem, em sua maioria esmagadora, esse “grosso” em todos os sentidos, da alimentação – básica – ao carro – básico -, do vestuário ao mobiliário, da música – simplista - ao celular – pré-pago – até a droga – crack, resto de cocaína -, os negros, em plena sociedade do consumo, estão aprisionados ao básico, porque, claro, estão condenados a permanecer na base da pirâmide social.
Como se percebe, principalmente no sudeste do país, são, sobretudo, os negros que movimentam os grandes espaços de consumo, os shoppings populares instalados nos centros das metrópoles, os hipermercados – evitados, claramente, pelos brancos ricos, que recorrem agora a luxuosos mercadinhos, feitos meio que exclusivamente para eles -,  espaços que hoje se nos afiguram como legítimos mundos negros, como a 25 de março em SP e a Oiapoque em BH.
Não há dúvida de que os negros - como parte do segmento pobre brasileiro, como parte dos cerca de 36 milhões que migraram (de onde mesmo?) para a classe C, conforme o discurso governamental – estão consumindo mais atualmente, na exaltada boa fase da economia brasileira. Mas não pode haver dúvida também, da parte de quem ousa estar com a verdade, de que a qualidade dos produtos consumidos pelos negros é inferior à dos socioeconomicamente brancos, é, como hoje se diz, “meia-boca”.
Há, portanto, uma visível barreira ao consumidor negro, que constitui, se a pensamos com o Néstor García Canclini de Consumidores e cidadãos (Editora UFRJ), um obstáculo à efetivação da sua cidadania numa sociedade que proclamam (as elites economicistas) como sendo do consumo.
Essa barreira não apenas pode como deve ser pensada em face da escravidão: o negro não é livre para consumir o que quiser – sobretudo, produtos simbólicos, artes, literatura, cinema, teatro etc -, não tem liberdade ainda, digamos, de consumo, evidentemente, em função dos seus baixos, baixíssimos, muitas vezes, “capital dinheiro” (Marx) e “capital cultural” (Bourdieu).
Saindo da esfera do consumo, podemos considerar, sempre de modo sintético, uma outra esfera estratégica em toda sociedade, para postular, aqui, a sociedade brasileira como um aterrorizante Museu Vivo da Escravidão, que é, obviamente, a esfera da representação pública, onde tudo, absolutamente tudo, é expressão de poder legitimado pela sociedade, onde só é quem realmente pode ser.
Em pleno – e aclamado e exibido e festejado - Estado de Direito Democrático, temos um número mínimo, insignificante, de negros – digo: negros mesmo, socialmente, politicamente, negros, não oportunistas, brancos que se se dizem negros quando lhes convêm – nos espaços de poder público, no Executivo, no Legislativo, no Judiciário e, também, nesse chamado quarto poder, que são os meios de comunicação hegemônicos. Basta este dado objetivo: temos um negro no Senado e um negro no Supremo Tribunal Federal.
Como entender este fato para além de Gilberto Freyre e dos apologistas da “democracia racial”? Como não compreender este fato senão da perspectiva de um controle da sociedade, nos termos consagrados pelas análises foucaultianas, bem como um controle do imaginário dessa sociedade, nos termos do crítico Luiz Costa Lima? Trata-se de um controle genérico e específico, do todo e de certas partes do social, que remonta claramente ao tempo da escravidão legal.
Trata-se de uma sociedade onde, para lembrar a indiana Gayatry Spivak de Pode o subalterno falar? (Editora UFMG), os subalternos, os negros, não podem, nunca puderam, falar. Podem trabalhar, podem fazer todo tipo de serviço braçal, especialmente os serviços mais sujos, podem suar a camisa. Não é esta, afinal, a grande imagem, a mais autêntica, que temos do Brasil? Negros e negras suando a camisa, carregando o país nas costas. Agora, na Era Lula-Dilma, é verdade que os negros em geral podem consumir mais produtos básicos, mas falar, decidir, sabemos que não – ainda não.
Negros trabalhando no pesado, nos campos e nas cidades, correndo atrás de bola, sambando nos morros desurbanizados, correndo de polícia, lavando pratos nas novelas da Globo (porque a arte, dizem os realistas mais estúpidos, imita a vida, não é?), negros sangrando atrás das grades, negros alcoolizados, drogados por toda parte, crianças, idosos e mulheres negras violentados historicamente e atirados à própria sorte – imagens do Museu Vivo da Escravidão que o Brasil preserva cinicamente e que suas autoridades precisam reconhecer e instituir nos termos da lei.




  

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