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quinta-feira, 13 de junho de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira

O último danado


Para Adriana Calcanhotto,
Davi Arrigucci Jr. e
Guilherme Mansur, 
Amigos de Waly



Waly Salomão (1943/2003) pertenceu a um grupo de criadores – Torquato, Oiticica, Glauber, Leminski – que não fazia questão absoluta do epíteto de poeta, mas que tinha na imagem do poeta uma espécie de identidade cultural, sobretudo pelo caráter libertário, de sabor romântico, que constitui essa imagem, uma imagem vinculada a uma atitude radical, desnorteada, “desbundada” – como se dizia nos tempos da contracultura –, danada, portanto. Waly foi, a meu ver, o último a ostentar, corajosamente, essa atitude, o último dos danados, e esbarrou, como não poderia deixar de ser, nas rochas reacionárias da sociedade, de que a cultura letrada é a mais resistente e dilaceradora.

O Waly que conheci, e com quem tive a honra de compartilhar alguns momentos de alegria, com quem falei horas ao telefone e participei de alguns eventos, que publiquei várias vezes no Suplemento Literário de Minas Gerais, era o poeta suavemente, digamos, dilacerado, que se esforçava para vivenciar sua “vaziez” de modo mais educado, civilizado. Às vezes, não se continha e disparava contra seus desafetos, para logo retomar a conversa sobre poesia, sua poesia – sempre –, como uma espécie de trégua numa longa guerra. “Vaziez” foi o conceito de Hélio Oiticica sobre o qual me falou, certa tarde, com muito entusiasmo, lendo um texto agora publicado no seu livro póstumo Pescados vivos (Rocco, 2004). Dizia, diz Waly Salomão (p. 69):

 “VAZIEZ. Aprendi nos meus intensos diálogos com ele que a vaziez  era das qualidades mais desejáveis para um artista, ele atribuía a um certo afã, a uma sofreguidão, a uma faina suarenta do artista plástico (...)
ele falava que fulano, sicrano, beltrano se repetiam exatamente porque não passavam por um período rigoroso de abandono do já feito, da linguagem alcançada, e não suportavam aquele embate, aquela agonia interior que sobrevém até que você  atravesse e saia do outro lado da trajetória e para que você chegasse a pontos inusitados seria abandonar provisoriamente ou suspender a categoria “artística” como uma tarjeta perpétua, como uma linha de montagem de uma produção fordiana, então como o artista não tem isto desta linha de montagem industrial ou fordiana, portanto pode e deve perfeitamente suspender, fazer uma suspensão voluntária da continuidade produtiva, exatamente para que possa vir o surpreendente, o inesperado, o impensável, o imprevisível. (...)
VAZIEZ.
Basta introduzir, no universo da plenitude das coisas, fissuras.
FISSURAS.
Aprendi com ele?
Ou foi com outros?
Ou como foi que se deu, se dentro de mim é indistinto?”

Talvez possamos – quero pensar que sim – perceber o Pequeno Waly  a partir desse prisma da “vaziez”. O Pequeno Waly – o recalcado sempre em vias de retornar, como n´“A fábrica do poema”, de Algaravias (Editora 34, 1996), que teve fragmento musicado e gravado por Adriana Calcanhotto em disco homônimo – era a contraparte do Grande Waly, estridente, “amante da algazarra”, para lembrar o título do seu poema em Tarifa de embarque (Rocco, 2000, p. 61), um contraponto que Caetano Veloso nos sugere, sutilmente, na canção-farewell, sob o título “Waly Salomão”, no seu disco “Cê” (Universal, 2006): "meu grande amigo/ desconfiado e estridente/ eu sempre tive comigo/ que eras na verdade/ delicado e inocente". 

Penso que a “vaziez” nos remete, de modo fidedigno – pois a relação de Waly com Oiticica tinha fumos, diria Machado, de sacralidade para Waly, que evitava até dizer o nome do seu amigo morto, como se fosse seu santo protetor secreto – ao sujeito histórico. Não se trata de um mero conceito, inventado numa esfera transcendental, mas de uma situação conceitual, digamos, que se desdobra de uma experiência estética não esteticista, ou seja, que não se restringe apenas ao campo da arte em si, que não se subordina ao viés institucional das “belas artes”.

A recorrência a um parâmetro industrial – o fordismo – para qualificar o trabalho do artista mostra o modo material como Oiticica – e Waly a partir dele – pensa a produção artística, parâmetro em face do qual o artista deve demarcar sua diferença. O artista – que, assim como um trabalhador de fábrica, produz, mas um outro produto – deve, num procedimento diverso daquele do fordismo, suspender a “continuidade produtiva” e esperar “o surpreendente, o inesperado, o impensável, o imprevisível”.

O fato é que, à medida que se entrega a esse estado de “vaziez”, o artista coloca a fidelidade a si mesmo acima da fidelidade ao público, ao mercado, à indústria cultural. A “vaziez”, que Waly aproxima no texto em questão de “avidez” e “aridez”, encontra, assim, a sua referência maior nos simbolistas franceses do final do século XIX, especialmente em Mallarmé, que, conforme o célebre texto de Paul Valéry (“Existência do simbolismo”, In: Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira, Iluminuras, 1991, p. 66), identificavam-se, sobretudo, em relação a uma recusa à quantidade, à adesão a uma lógica numérica, capitalista.

Obviamente, o Grande Waly – o que se estabeleceu - não teve pendores simbolistas; teve pendores barrocos, românticos, como tanto se sabe. Mas o Pequeno Waly, o recalcado, que ficou ainda e certamente ainda ficará desconhecido por muito tempo, repito, enquanto parecer for mais lucrativo que ser, acaba por nos levar, com sua reflexão-recordação sobre Oiticica, até o modo de ser – crítico, intransigente, angustiado – daqueles poetas que – radicalizando a razão romântica, que já era um radicalização da razão barroca – acabaram por fixar a imagem do poeta “damné”, danado, atormentado, amaldiçoado, desesperado.

A “vaziez” é, de fato, a imagem que me ficou do último danado, naquele nosso último encontro em Belo Horizonte, no mês de abril de 2003, quando o convidei para participar do lançamento de um número especial do Suplemento Literário de MG em homenagem a Carlos Drummond de Andrade e Emílio Moura.

Após o lançamento, numa manhã de sábado na Livraria Travessa, fomos ao ateliê do artista plástico Jorge dos Anjos, na região da Pampulha. Chegando lá, Waly se atirou num canto externo da casa, debaixo de uma escada, um lugar bem aconchegante, que parecia um esconderijo, e, quando o chamávamos para ver as peças do artista dentro da casa, ele gritava: “deixem eu ficar aqui! Não me tirem daqui!”. E todos ríamos.

Era o Grande Waly, o excepcional danado, representando, claro; mas era também o Pequeno Waly, em plena crise de “vaziez”, denunciando o seu mal-estar no mundo.
Menos de um mês depois, na manhã de 05 de maio de 2003, acordei apavorado pela notícia da sua morte.
Era uma ideia muito rara, raríssima, de humanidade.


Este texto é o fragmento final de ensaio apresentado pelo autor no evento Literatura, Vazio e Danação no último 12 de junho na Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Blog: www.anelitodeoliveira.blogspot.com | Email: anelitodeoliveira@gmail.com | Face: www.facebook/anelitodeolivei

Um comentário:

  1. Lembra o Tom Zé
    "O artista – que, assim como um trabalhador de fábrica, produz, mas um outro produto – deve, num procedimento diverso daquele do fordismo, suspender a “continuidade produtiva” e esperar “o surpreendente, o inesperado, o impensável, o imprevisível”. /''

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