O último danado
Para Adriana Calcanhotto,
Davi Arrigucci Jr. e
Guilherme Mansur,
Amigos de Waly
Waly Salomão
(1943/2003) pertenceu a um grupo de criadores – Torquato, Oiticica, Glauber,
Leminski – que não fazia questão absoluta do epíteto de poeta, mas que tinha na
imagem do poeta uma espécie de identidade cultural, sobretudo pelo caráter
libertário, de sabor romântico, que constitui essa imagem, uma imagem vinculada
a uma atitude radical, desnorteada, “desbundada” – como se dizia nos tempos da
contracultura –, danada, portanto. Waly foi, a meu ver, o último a ostentar,
corajosamente, essa atitude, o último dos danados, e esbarrou, como não poderia
deixar de ser, nas rochas reacionárias da sociedade, de que a cultura letrada é
a mais resistente e dilaceradora.
O Waly que
conheci, e com quem tive a honra de compartilhar alguns momentos de alegria,
com quem falei horas ao telefone e participei de alguns eventos, que publiquei
várias vezes no Suplemento Literário de
Minas Gerais, era o poeta suavemente, digamos, dilacerado, que se esforçava
para vivenciar sua “vaziez” de modo mais educado, civilizado. Às vezes, não se
continha e disparava contra seus desafetos, para logo retomar a conversa sobre
poesia, sua poesia – sempre –, como uma espécie de trégua numa longa guerra. “Vaziez”
foi o conceito de Hélio Oiticica sobre o qual me falou, certa tarde, com muito
entusiasmo, lendo um texto agora publicado no seu livro póstumo Pescados vivos (Rocco, 2004). Dizia, diz Waly Salomão (p. 69):
“VAZIEZ. Aprendi nos meus intensos diálogos
com ele que a vaziez era das qualidades mais desejáveis para um
artista, ele atribuía a um certo afã, a uma sofreguidão, a uma faina suarenta
do artista plástico (...)
ele falava
que fulano, sicrano, beltrano se repetiam exatamente
porque não passavam por um período rigoroso de abandono do já feito, da
linguagem alcançada, e não suportavam aquele embate, aquela agonia interior que
sobrevém até que você atravesse e saia
do outro lado da trajetória e para que você chegasse a pontos inusitados seria
abandonar provisoriamente ou suspender a categoria “artística” como uma tarjeta
perpétua, como uma linha de montagem de uma produção fordiana, então como o
artista não tem isto desta linha de montagem industrial ou fordiana, portanto
pode e deve perfeitamente suspender, fazer uma suspensão voluntária da
continuidade produtiva, exatamente para que possa vir o surpreendente, o
inesperado, o impensável, o imprevisível. (...)
VAZIEZ.
Basta
introduzir, no universo da plenitude das coisas, fissuras.
FISSURAS.
Aprendi
com ele?
Ou foi com
outros?
Ou como
foi que se deu, se dentro de mim é indistinto?”
Talvez
possamos – quero pensar que sim – perceber o Pequeno Waly a partir desse prisma da “vaziez”. O Pequeno
Waly – o recalcado sempre em vias de retornar, como n´“A fábrica do poema”, de Algaravias (Editora 34, 1996), que teve
fragmento musicado e gravado por Adriana Calcanhotto em disco homônimo – era a
contraparte do Grande Waly, estridente, “amante da algazarra”, para lembrar o
título do seu poema em Tarifa de embarque
(Rocco, 2000, p. 61), um contraponto que Caetano Veloso nos sugere,
sutilmente, na canção-farewell, sob o título “Waly Salomão”, no seu disco “Cê”
(Universal, 2006): "meu grande amigo/ desconfiado e estridente/ eu sempre tive comigo/ que eras na verdade/ delicado e inocente".
Penso que
a “vaziez” nos remete, de modo fidedigno – pois a relação de Waly com Oiticica
tinha fumos, diria Machado, de sacralidade para Waly, que evitava até dizer o nome do seu amigo
morto, como se fosse seu santo protetor secreto – ao sujeito histórico. Não se
trata de um mero conceito, inventado numa esfera transcendental, mas de uma
situação conceitual, digamos, que se desdobra de uma experiência estética não
esteticista, ou seja, que não se restringe apenas ao campo da arte em si, que
não se subordina ao viés institucional das “belas artes”.
A
recorrência a um parâmetro industrial – o fordismo – para qualificar o trabalho
do artista mostra o modo material como Oiticica – e Waly a partir dele – pensa
a produção artística, parâmetro em face do qual o artista deve demarcar sua
diferença. O artista – que, assim como um trabalhador de fábrica, produz, mas
um outro produto – deve, num procedimento diverso daquele do fordismo,
suspender a “continuidade produtiva” e esperar “o surpreendente, o inesperado,
o impensável, o imprevisível”.
O fato é
que, à medida que se entrega a esse estado de “vaziez”, o artista coloca a
fidelidade a si mesmo acima da fidelidade ao público, ao mercado, à indústria
cultural. A “vaziez”, que Waly aproxima no texto em questão de “avidez” e
“aridez”, encontra, assim, a sua referência maior nos simbolistas franceses do
final do século XIX, especialmente em Mallarmé, que, conforme o célebre texto
de Paul Valéry (“Existência do simbolismo”, In: Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira, Iluminuras, 1991, p.
66), identificavam-se, sobretudo, em relação a uma recusa à quantidade, à
adesão a uma lógica numérica, capitalista.
Obviamente,
o Grande Waly – o que se estabeleceu - não teve pendores simbolistas; teve
pendores barrocos, românticos, como tanto se sabe. Mas o Pequeno Waly, o
recalcado, que ficou ainda e certamente ainda ficará desconhecido por muito
tempo, repito, enquanto parecer for mais lucrativo que ser, acaba por nos
levar, com sua reflexão-recordação sobre Oiticica, até o modo de ser – crítico,
intransigente, angustiado – daqueles poetas que – radicalizando a razão
romântica, que já era um radicalização da razão barroca – acabaram por fixar a
imagem do poeta “damné”, danado, atormentado, amaldiçoado, desesperado.
A “vaziez”
é, de fato, a imagem que me ficou do último danado, naquele nosso último
encontro em Belo Horizonte, no mês de abril de 2003, quando o convidei para
participar do lançamento de um número especial do Suplemento Literário de MG em homenagem a Carlos Drummond de
Andrade e Emílio Moura.
Após o
lançamento, numa manhã de sábado na Livraria Travessa, fomos ao ateliê do
artista plástico Jorge dos Anjos, na região da Pampulha. Chegando lá, Waly se
atirou num canto externo da casa, debaixo de uma escada, um lugar bem
aconchegante, que parecia um esconderijo, e, quando o chamávamos para ver as peças
do artista dentro da casa, ele gritava: “deixem eu ficar aqui! Não me tirem
daqui!”. E todos ríamos.
Era o
Grande Waly, o excepcional danado, representando, claro; mas era também o
Pequeno Waly, em plena crise de “vaziez”, denunciando o seu mal-estar no mundo.
Menos de
um mês depois, na manhã de 05 de maio de 2003, acordei apavorado pela notícia
da sua morte.
Era uma
ideia muito rara, raríssima, de humanidade.
Este texto é o
fragmento final de ensaio apresentado pelo autor no evento Literatura, Vazio e Danação no
último 12 de junho na Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Blog: www.anelitodeoliveira.blogspot.com | Email: anelitodeoliveira@gmail.com | Face: www.facebook/anelitodeolivei
Lembra o Tom Zé
ResponderExcluir"O artista – que, assim como um trabalhador de fábrica, produz, mas um outro produto – deve, num procedimento diverso daquele do fordismo, suspender a “continuidade produtiva” e esperar “o surpreendente, o inesperado, o impensável, o imprevisível”. /''