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terça-feira, 31 de março de 2009

AFRICANIDADE | Emanoel Araújo

ANELITO DE OLIVEIRA - Em outubro de 2003, Emanoel Araújo, artista plástico e curador baiano, a quem a cultura brasileira deve imensamente, esteve em Belo Horizonte com mais uma das suas grandes mostras de arte afrobrasileira, desta vez sob a tarja “Para nunca esquecer: negras memórias / memória de negros” (todo o material exposto está reproduzido num belo livro publicado pelo Ministério da Cultura). A exposição teve lugar no Palácio das Artes e fez parte das atividades da 2ª edição do Festival Internacional de Arte Negra que se realizou naquele ano, oito anos depois da 1ª edição desse evento extraordinário, ocorrida em 1995. Dois dias antes da abertura oficial, impressionado com a grandeza estética e humana de todo aquele gesto, fiz a entrevista com Emanoel que aqui disponibilizo. Era uma tarde de sábado, num momento em que o artista, todo generosidade, interrompeu a correria e sentamo-nos no café do Palácio, com a assistência atenciosa de Rita Amorim, da Fundação Centro de Referência da Comunidade Negra em BH.
Ainda quando a exposição estava em cartaz, tentei publicar esta entrevista no diário belorizontino “O Tempo”, pensando numa repercussão mais pontual, mas não consegui; sequer se interessaram por reproduzir quaisquer trechos. Cheguei a pensar em publicá-la no “Suplemento Literário de Minas Gerais”, mas todo o desarranjo administrativo daquele momento, que culminou no meu pedido de demissão, não me permitiu fazê-lo. Pensei depois, várias vezes, em submetê-la a algum periódico acadêmico ou para acadêmico, mas acabei desistindo, pensando que talvez pudessem fazer pouco dessa conversa inteligente, rara, com um nome imprescindível para a discussão sobre africanidade no país. E assim fiquei, durante todos estes anos, numa situação meio parecida com a do próprio Emanoel: carregando nas costas um patrimônio – imaterial – negro, numa condição de guarda de algo bastante valioso. Finalmente, para que não fique no limbo mais seis anos, aqui está esta entrevista, na esperança de que possa contribuir para a multiplicação do respeito e admiração pelo grande Emanoel Araújo.

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Arqueologia de uma cultura soterrada

Está aqui um curso de pós-graduação sobre cultura afrobrasileira. Digo, após uma segunda visita na tarde de sábado último, e ele – o artista plástico baiano Emanoel Araújo – ri, modesto. Mas, na verdade, não vejo melhor definição em face desta mostra “Para nunca esquecer: negras memórias/ memórias de negros”, com a qual Belo Horizonte entra no clima da tão esperada (demora demais tudo que contempla os negros!) segunda edição do FAN – Festival de Arte Negra. Emanoel Araújo é o curador dessa exposição cuja caminhada começou, na verdade, no Rio de Janeiro em 2001. Sua última paragem foi, recentemente, em São Paulo.
Há um viés didático, uma tentativa de apresentar ao espectador as inúmeras inscrições de e sobre os negros ao longo de cinco séculos no Brasil. “Não só didático: eu diria didático e estético”, enfatiza o curador. De fato, são inscrições artísticas propriamente ditas – pinturas, esculturas, fotografias, poemas etc -, mas também não-artísticas, como fragmentos de jornais de combate ao racismo que circularam nas primeiras décadas do século XX no Brasil. Trata-se de um imenso arquivo de imagens e letras que nos revelam o sublime mas também o grotesco que envolvem os negros ao longo da história brasileira.
O arranjo da mostra parece objetivar uma compreensão da parte do espectador a um só tempo diacrônica e sincrônica, quer dizer: de maneira linear, passo-a-passo, mas também circular, de uma vez. Essas duas possibilidades de leitura ficam, inclusive, estimuladas pelo próprio fato de que todo o material não coube em apenas uma sala, aquela que se encontra já na entrada do Palácio das Artes. Parte do acervo foi organizado no térreo, o que, segundo Emanoel, não compromete em nada sua ordenação conceitual. De toda forma, na parte de cima o “rapsódico” Mário de Andrade dá o tom, enquanto na de baixo quem o faz é o “semeador” Antonio Vieira – do carnaval à missa, portanto.
Depois de duas caminhadas pela exposição – uma na tarde de sexta e outra na de sábado último -, Emanoel Araújo fala da existência de “ponto e contraponto” nisso que é, sem dúvida, um concerto barroco. A aproximação à música – que, alias, é parte da exposição, com trilha preparada exclusivamente pelo percussionista Djalma Corrêa – é muito cabível, servindo para confirmar o modo como Emanoel se relaciona com o passado afrobrasileiro, que é um modo musical, móvel, leve, solto, não aquele modo, digamos, na falta de outra expressão, “escultórico”, pesado, duro, tão criticado pelo grande avaliador da cultura afrodescendente no Brasil dos anos 40 que foi o etnólogo francês Roger Bastide.
O excesso de elementos que encontramos em “Para nunca esquecer” só revela a perspectiva includente adquirida por Emanoel Araújo em função do seu modo musical, este aspecto que se evidencia, por sinal, na abertura do livro-catálogo com o poema “Antífona”, de Cruz e Sousa, o ouvido mais musical da literatura brasileira. “Uma provocação que eu acho importante fazer”, afirma sorrindo este incansável “ajuntador” de memórias que pensa, ao contrário dos “radicais”, que o importante é incluir todas as coisas, e não excluir. Incluir – constatamos - até coisas e pessoas que não são benquistas pelo “mainstrean” dos que pensam a questão racial no Brasil. Gilberto Freyre – arauto da democracia racial – é um dos incluídos, por exemplo.
Com essa perspectiva includente, Araújo logra revelar, sobretudo, o seu destemor na abordagem da cultura afrobrasileira, uma liberdade típica de alguém maduro o suficiente para tudo encarar de maneira lúcida, sem frágeis crendices, com a imparcialidade possível. Seu olhar, a despeito de não ser friamente calculista, cientificista, é aquele de um arqueólogo, como ele mesmo o reconhece: “penso que a exposição seja uma arqueologia de uma cultura que foi soterrada, esse grande caldeirão que está sempre subterrâneo; revisitar essa memória é, no fundo, retirar essa cultura de um porão (diante do qual), por mais que você grite, grite, grite, continua sem ressonância”.


Como surgiu a ideia dessa exposição?

Esta exposição é resultado de outras. Na realidade, nasceu em 1987, quando, por ocasião do centenário da abolição (comemorado em 1988), organizei a exposição “A mão afrobrasileira”, um levantamento do que foi o negro na cultura brasileira desde o Barroco, que se tornou um livro. É mais ou menos o que faço hoje.
“A mão...” ainda era uma pesquisa em andamento, muita coisa foi mudando, foi-se afinando, ficando mais didática também. Em 93, fiz uma outra chamada “Vozes da diáspora”, homenagem ao então recém-falecido Rubem Valentim. Depois fiz “Brasil África Brasil”, em homenagem a Pierre Verger.
“Negras memórias/memórias de negros” começou de fato na Bahia, em 1983, quando fiz a exposição “Bahia África Bahia”, que registrou um fato muito curioso: levou 1500 pessoas à abertura, num domingo, às sete horas da noite.
Também fiz exposições como “Herdeiros da noite”, que trouxe a Belo Horizonte (por ocasião do primeiro Festival de Arte Negra, em 1995), e “Negro de corpo e alma”, antes de chegar a esta exposição.

Com “Negras memórias”, o Sr. fecha um ciclo de exposições sobre o tema?

Não ainda. Há lugar para uma outra que quero fazer, que é aquela que chamo de um grande halo criado por esta sociedade que se estabelece a partir da escravidão, da diáspora (africana). Seria uma exposição envolvendo o Brasil, a América do Norte, o Caribe e a América do Sul – aqui, as populações negras que a gente não conhece do Peru e do Uruguai, por exemplo.
Penso naquele tambor que está ali (aponta para a sala de exposição) como metáfora da ressonância da presença negra nas Américas, no Caribe etc. Com a chegada dos negros a esses lugares, formou-se uma sociedade afroamericana, caribenha ou afrocubana.

A exposição me parece um grande inventário da presença negra no Brasil. É sua intenção apresentar uma visão macroscópica da questão, digamos, com a finalidade de superar uma visão microscópica?

Não, necessariamente. Penso que a exposição seja uma arqueologia de uma cultura que foi soterrada. Esta exposição, assim como as outras que fiz, tenta trazer à luz todos os elementos que compõem a cultura brasileira.

Esse grande caldeirão...

Esse grande caldeirão que está sempre subterrâneo. Revisitar essa memória é, no fundo, retirar essa cultura de um porão, de um terreno soterrado onde ela se encontra e por mais que você grite, grite, grite, por mais que você faça alarde, ela continua sem ressonância. Essa exposição é importante para mim no sentido de que possa ser uma ressonância sob vários aspectos: o da auto-estima, o da necessidade (da ostentação) do halo ancestral que existe entre o estigma e a vida.

A que o Sr. atribuiria a pouca ou quase nenhuma ressonância dos afrodescendentes enquanto tais neste país ainda hoje?

Sabemos que é uma questão de poder.

Poder aquisitivo?

Não. Poder de encontro. O que sinto é que há um grande desencontro (entre o negro e sua cultura), uma falta de conhecimento de um lado que não seja o do estigma. A gente não sabe quais os vultos afrodescendentes que foram fundamentais para a constituição da cultura brasileira, poetas, engenheiros etc que, a despeito do preconceito, conseguiram ir além. Acho importante conhecer Cruz e Sousa, que haja, afinal, o estudo da cultura negra. Acho fundamental saber que existiram também José do Patrocínio, Teodoro Sampaio, André Rebouças e tantos outros.

Por sinal, o Sr. abre o livro-catálogo da exposição com o poema “Antífona”, de Cruz e Sousa. O que o levou a essa atitude?

Volto à questão da metáfora. Cruz e Sousa é um poeta que me emociona muito. Aqui (aponta novamente para a sala da exposição) tem um trecho do (poema em prosa) “Emparedado”, que de fato é o momento mais terrível em que ele (o poeta) se encontra. Ele tem uma densidade luminosa, inventiva, e isso me interessa.
Acho que há artistas que não poderiam se expressar de outra maneira senão aquela com que se expressaram em face dos dogmas da sociedade. Para mim, um poeta como Luiz Gama, com a coisa da ironia e do sarcasmo em relação ao racismo, é tão importante quanto Cruz e Sousa, que vai para o outro lado, com o simbolismo.
Não tenho uma explicação muito objetiva para o fato de ter colocado Cruz e Sousa na abertura do catálogo. Mas é mesmo uma provocação que eu acho importante fazer.

Ainda no seu texto no livro-catálogo, o Sr. cita várias figuras afrodescendentes famosas, mas omite Pelé. Há alguma objeção a ele?

Não. Pelé não precisa.

Pelé e Cruz e Sousa são antípodas: enquanto um é símbolo do negro super bem sucedido economicamente, o outro é símbolo do mal sucedido...

Não tenho uma ideia formada sobre Pelé. Acho que ele tem todo o direito de não entrar em certas discussões e não comprar certas brigas. Sinto que ele tem uma dívida com a comunidade negra. Teria nos livrado de uma série de coisas se tivesse assumido outra postura, mas ele tem direito de ser o que quiser.
Todas as personalidades que compraram a questão do negro, entenderam ou tentaram entendê-la, são muito importantes para o inconsciente coletivo. Acho que Gilberto Freyre, por exemplo, é uma grande figura, muito embora os radicais (que refletem sobre a questão racial no país) o detestem. Ele, assim como Jorge Amado, tenta incorporar nossa cultura, esse amálgama, com todas as contradições, todos os encontros e desencontros.
Também Jorge de Lima e Nina Rodrigues que, mesmo com a posição racista que a antropologia do século XIX realmente tem, é o primeiro a escrever sobre a arte negra enquanto Belas Artes em 1904. Muitas vezes temos atitudes radicais que excluem, e eu acho que temos que incluir todas as coisas.

O Sr. está otimista em relação ao momento atual no Brasil, com Gilberto Gil, Benedita da Silva e outros negros em ministérios do Governo Federal?

Temos que ser (risos). O Brasil é um país muito curioso em relação ao preconceito. Fico pensando na postura que se tinha há dez, quinze anos atrás, por exemplo, (em relação ao) elevador social: havia um porteiro negro que perguntava ao síndico, quando chegava um outro negro: é para entrar no elevador social ou não? Todos experimentamos isso. Agora uma simples lei vem e acaba com esse racismo, mostrando que certas questões de preconceito são passíveis de serem resolvidas, basta que haja coragem de assumir que tem que ser resolvidas.
Acho que é muito legal a presença de negros no Ministério, bem como a preocupação de que haja diplomatas negros no Itamaraty. Há uma mudança, de fato. A importância internacional que se dá ao Governo Lula vem exatamente daí: pela primeira vez está-se quebrando essa hegemonia oligárquica, filha-da-puta, que havia aqui. Acho que a gente não percebeu ainda essa mudança porque ainda é muito cedo.

O Sr. acha que Lula tem uma consciência para-racial (Emanoel ri), senão racial propriamente dita?

Creio que social, étnica. Mas acho que, na realidade, ele também tem uma consciência racial, já que seu Governo está criando agora o sistema de inclusão de estudos africanos no currículo escolar.

E a questão das cotas para negros em Universidades. Considera esse sistema positivo ou negativo?

Positivo. Acho que é uma ação afirmativa muito importante. Você tem que educar as pessoas, tem que melhorá-las, precisamos de mão-de-obra especializada. É assim que se pode diminuir a discrepância social. O que nos falta, na realidade, é uma grande consciência que faça com que os donos da terra, os brancos da terra (risos), possam dividir o que têm. Não adianta você morar num apartamento e ter um “mercedes bens” na porta se na esquina você vai ser seqüestrado. E ninguém nasce ladrão nem criminoso, não é verdade?


Voltando à arte: como se dá sua passagem de criador para colecionador de artes e expositor?

Tudo começou quando comecei a estudar belas artes nos anos 60, em Salvador, e freqüentava o Instituto Histórico e Geográfico e os museus da polícia. Na época, eu estudava e trabalhava no departamento de turismo da Bahia. Era uma época em que os terreiros de candomblé pediam autorização à polícia para funcionarem.
Tinha um amigo antropólogo e me veio dele essa consciência de ver, de vasculhar, de descobrir obras que estavam guardadas no Instituto Histórico e Geográfico e nos museus da polícia, onde eram usadas com o objetivo de provarem que os negros eram inferiores aos brancos.
Ainda hoje resta uma coleção de arte litúrgica no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, formada por obras aprisionadas durante batidas policiais em terreiros na Bahia. Também há coisas em museus da polícia do Rio de Janeiro. No museu do Estado de Pernambuco também há muitos objetos litúrgicos dos xangôs do Recife.
Com o tempo, fui tomando consciência dessas obras, juntando-as e comprando aquilo que aparecia no mercado, não tudo, é claro. A cada pesquisa, a coleção foi se ampliando.

Sua coleção de arte afrodescendente é a maior hoje no Brasil?

Não sei se há outra. Há? (risos)


Ontem (sexta-feira) o Sr. me dizia que há um projeto de criação de um Museu Afro-Brasil em SP, que teria a guarda dessa sua coleção.

O projeto surgiu agora quando a coleção estava exposta na FIESP, em SP, onde o Secretário de Cultura da cidade – Celso Frateschi – a viu e aventou a possibilidade de se reunir isso como Museu. Por outro lado, eu estava empenhado, a pedido de Gilberto Gil, no trabalho de conceituação e tipologia de cinco museus: o Museu Afro-brasileiro da Bahia, o Museu de Congonhas, um do Pantanal, um outro de Ouro Preto, um de Aleijadinho etc. Martha Suplicy, prefeita de SP, foi quem ficou entusiasmada para criar o museu a partir dessa coleção, que seria posta em comodato.
O museu trabalharia sobre essa coleção, que, na realidade, é uma coleção meio bruta porque tem fotografia e uma série de outros objetos que nem são expostos, não só do Brasil como da África, do Caribe, inclusive uma biblioteca de quase dois mil volumes sobre a cultura afrobrasileira. Portanto, é um núcleo que caberia dentro de um museu. Por outro lado, chega um momento de eu não poder carregar mais toda essa tralha nas minhas costas.

Esta é a última vez que o Sr. carrega essa “tralha”?

Não sei. A princípio, seria, embora tenha um convite para que essa exposição vá para o Paraná, para Washington D.C. Mas, a princípio, encerra aqui.

E encerrar aqui em MG tem um significado especial para o Sr. Lembro de uma passagem do seu texto no livro-catálogo em que o Sr. se refere a Aleijadinho como “o imenso”. Como são suas ligações com MG e Aleijadinho, em especial?

Com Aleijadinho, nem posso dizer, depois de tudo que dele se falou, tantos intelectuais como (o francês) Germain Bazin. Posso falar que o que me fascina no Museu de Congonhas (em torno da obra de Aleijadinho) é exatamente a possibilidade de trabalhar um conceito de museu em que não fosse necessário remover os profetas, mas sim deixá-los onde estão, tratá-los museologicamente e levar a via-sacra para o Museu porque acho que ela é o grande canto do cisne de Aleijadinho e não consegue chegar ao espectador porque está dentro daquelas capelas.
Gostaria de transformar aquela via-sacra num grande teatro, de forma que se visse a escultura na sua totalidade, na sua inteireza. Essa era a razão primordial pela qual eu toparia trabalhar no Museu de Congonhas. Parece-me que um museu puramente massivo, onde as pessoas chegam e vêem, ainda é pouco. Precisaria trabalhar outras questões, como a pedra, um grande estudo sobre a pedra-sabão. É mais um projeto entre os muitos em que me meto (risos).

E, por falar nisso, como o Sr. recebeu recentemente a reedição da tese sobre a possível inexistência de Aleijadinho?

Lembro de Mário de Andrade. Quando alguém lhe dizia que Aleijadinho era primitivo, ele perguntava: primitivo por quê? Em relação a quê? Não existe por quê. Claro que não é sério levantar questões como essa (da inexistência de Aleijadinho), que é uma invenção. Claro que há uma obra construída, que tem similute, referência, princípio. Acho um absurdo que alguém levante essa questão. Deve ser algum inimigo de Minas Gerais.

Lezama Lima dizia que Aleijadinho representa a rebelião dos negros na cultura latino-americana.

É fantástico que o filho de uma negra e um português tenha chegado a tamanha genialidade no século XVIII e produzido o que produziu. Aleijadinho é imenso, apesar de todas as questões que se apresentem sobre ele, é a maior coisa do século XVIII. Só Congonhas é monumental, é um homem grandioso.

A controvérsia em torno de Aleijadinho não lhe parece exemplar da controvérsia em torno da memória afrodescendente no Brasil como um todo?

Na verdade, o próprio nome Aleijadinho já é um estigma. Nossos heróis – brancos ou negros – têm sempre um estigma. No Brasil, as coisas se esfacelam: ele era aleijado, não tinha mãos, e como é que alguém pode esculpir sem mãos? É um absurdo! Por outro lado, há personagens que preservaram a memória de outros personagens importantes. Aleijadinho é conhecido no Brasil e em muitos lugares do mundo. Se a memória é nossa, cabe-nos preservar.

Nós, quem? Os negros?

Nós, negros.

Parece-me um trabalho solitário. Não há, de um modo geral, um sentimento de responsabilidade com o passado entre os negros como há entre os brancos.

Pois é: nossa memória de um modo geral é escamoteada. É estranho, é um traço colonial. Por outro lado, acho que temos sempre que revisitar essa memória. Daí o meu esforço no sentido de organizar o museu. Porque o museu é o espaço onde essa memória pode ser sempre repassada, sempre discutida, suscitando sempre novas ideias e pesquisas.

Creio que, ao ser despertada, essa memória por si só já funciona como uma crítica ao modo como a sociedade brasileira se relaciona com os negros.

Alguém vai dizer que essa história não está contada. E,de fato, não está. É preciso contá-la. Por isso que digo que é um trabalho de arqueologia. (e sai a caminhar pelas salas onde está a exposição).

sexta-feira, 27 de março de 2009

MANCHA | Guilherme Mansur

ANELITO DE OLIVEIRA - Sob o título "Encantadora precariedade", publiquei o texto abaixo sobre o poeta, designer gráfico e artista plástico ouropretano Guilherme Mansur ano passado, no segundo número do jornal "Caderno de Leitura", invenção do saudoso João Alexandre Barbosa na Edusp, lá nos fins dos anos 80, e que o inquieto Plinio Martins Filho recolocou em circulação, com o auxílio luxuoso do crítico Manoel da Costa Pinto. A convite dos dois, escrevi issso que é tanto sobre um raro "inventor" (Pound) quanto sobre um ser humano extraordinário, com quem tive prazer de conviver durante quatro anos no "Suplemento Literário de Minas Gerais". Esta reprodução é, sobretudo, para acusar a saudade daqueles dias, relembrar um grande amigo, suspender um pouco, ainda que virtualmente, a distância que hoje se impõe entre os gerais rosianos, onde me encontro, e as minas alphonsinas, onde Mansur se encontra. Com esta reprodução, instauro aqui uma seção voltada para o mundo gráfico-editorial, para falar de editores, designers e as "manchas" que fazem no papel.
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Encantadora precariedade
“Tipoeta”, como o definiu Haroldo de Campos, o mineiro Guilherme Mansur desenvolve, há 30 anos, em sua barroca Ouro Preto, uma extraordinária atividade editorial, que está fundamentalmente ligada a sua prática de poesia, ou antes: que se desdobra de sua particular percepção do fenômeno poético. Não é possível dizer ao certo, quando nos encontramos com suas raras produções (e, de fato, é sempre um encontro, algo marcante), onde termina um processo editorial propriamente dito, o desempenho de uma tarefa como outra qualquer, e começa um processo criativo, algo sem uma finalidade objetiva, com ares da intransitividade inerente à coisa artística.Antes de mais nada, ressalta-se nesse trabalho a tentativa de dar a ver algo raro, que ainda não foi feito, o que resulta em estranheza, num produto para poucos, sem possibilidade real de despertar o interesse de leitores-consumidores, aqueles que têm uma relação comum, digamos, com o objeto livro. Não são esses, claro, os receptores visados pelo editor Mansur, a quem ele oferta seus produtos gráficos. Ele visa aqueles que reconhecem no livro um objeto de arte capaz de proporcionar uma experiência estética singular, que se daria num interstício de linguagens, entre o que, a priori, é para ser visto (arte plástica) e o que é para ser lido (arte verbal).Descendente de proprietários de gráfica, Guilherme Mansur cresceu entre tipos, clichês, papéis, chapas, tinta, cheiro de cola, guilhotina, zumbido de cortes, dobras, embrulhos. Enfim, despertou para a poesia em meio a toda a parafernália que constituía, inevitavelmente, o mundo gráfico há alguns anos, toda uma “sujeira”, uma “bagunça”, que (fato lamentável de um ponto de vista cultural) vai-se tornando cada vez mais difícil de se encontrar hoje em dia em função das novas tecnologias de impressão. As edições de Mansur são marcadas por esse ambiente em que ele se criou, atravessadas por uma precariedade que acaba por se afirmar como seu dado encantador.Entre os muitos autores editados pela Tipografia do Fundo de Ouro Preto, destacam-se alguns dos principais poetas da cena literária brasileira de fins do século XX para cá, como Paulo Leminski, Régis Bonvicino, Sylvio Back, Laís Corrêa de Araújo, Josely Vianna Baptista e, especialmente, Haroldo de Campos. Este, que na última década fazia questão de destacar um olhar crítico que, na verdade, sempre cultivou sobre o capitalismo (“forma de fome”), certamente soube entender a importância do gesto de Mansur como resistência aos “enlatados” editoriais. Contra a massificação no âmbito das letras, um pouco de aura, de artesanato, de “espírito” manual.De fato, é uma sutil tomada de posição em relação ao que está estabelecido no mercado editorial hoje que se apresenta, por exemplo, em edições como Finismundo: A Última Viagem, do poeta paulista, e na antologia de escritos das etnias indígenas Mbyá e Nivacle, três volumes (Neblina Vivificante, O Amor entre os Nivacle e Soninho com Pios de Periquitos ao Fundo), organizados, sob o título geral de “Cadernos da Ameríndia”, pela poeta e tradutora paranaense Josely Vianna Baptista e pelos antropólogos paraguaios Luli Miranda e Miguel Chase-Sardi. Essas edições, que dificilmente o interessado pode conseguir em algum dos melhores sebos que estão por aí, são, sobretudo, um acontecimento gráfico-editorial irrepetível, o esplendor de uma simplicidade considerada, de certa forma, obstáculo à venda de produtos editoriais. Mansur, evidentemente, pertence à estirpe daqueles que se engajam na realização da própria obra, desinteressados em relação ao que o sistema sociocultural possa achar ou não, a estirpe dos assistemáticos por excelência. Seu método criativo tem referenciais próximos e longínquos no tempo e no espaço, mas, certamente, o mais decisivo de todos foi e é Amilcar de Castro. Como este (que reformou a diagramação do Jornal do Brasil nos anos 60), Mansur (que reinventou a diagramação do jurássico Suplemento Literário de Minas Gerais nos anos 90) parece entender que a arte, independente do suporte ou do gênero, distingue-se pelo que é: uma forma que pensa.

domingo, 15 de março de 2009

JORNALISMO | Gullar na Bravo!

ANELITO DE OLIVEIRA - Excepcional a entrevista de Ferreira Gullar na revista Bravo! deste março. Independente de se concordar ou não com o que ele diz, vale como prova de lucidez de um criador crítico num momento crítico para qualquer expressão criativa e crítica. Gullar fala, obviamente, a partir do lugar de uma singularidade, que ele mesmo acredita ser desde quando se transferiu de São Luís para o Rio de Janeiro, lançou, em 1954, A luta corporal e articulou, em 1959, a dissidência Neoconcreta. Para ele, a exemplo de tantos outros artistas de vanguarda, o mundo se divide em AG/DG, antes e depois de Gullar, e daí que o centro das atenções de sua reflexão seja ele mesmo, colocando-se em relevo, mais uma vez, seu individualismo, que nos leva a rever, com tristeza, todo o socialismo que marca grande parte de sua obra poética: toda aquela verdade social era embuste “fundamental”, mero artifício de um ser enganador? Por outro lado, nenhuma menção a autores vivos, a integrantes de sua geração ainda em atividade, a processos em curso na poesia contemporânea, e uma menção bastante pessoal ao estágio das artes plásticas. Neste caso, uma questão paradoxal: a vida justifica a “arte”, mas a “expressão” seria algo injustificável pela vida. Dito de outro modo: minha vida vale muito, a vida dos outros, nem tanto – e não acredito em luta de classes e capitalismo imita natureza (pra quê a cultura, então?). Todavia, a excepcionalidade de Gullar reside exatamente nisso: na subordinação do mundo ao mundo próprio. Tudo bem, como dizia Valéry, “o homem é aquilo que acredita ser”. Gullar acredita que é singular – e é.

Revista BRAVO! Março/2009
"A Poesia Surge do Espanto"
De repente, quando se ergue da cadeira, o poeta percebe que o fêmur de uma perna resvala no osso da bacia. Aquilo o intriga. “É desse tipo de surpresa que nasce um poema”, diz Ferreira Gullar
Por Armando Antenore
Certa manhã, enquanto fazia recortes para novas colagens, notou que umas tiras miúdas de papel salpicavam o piso da sala. Mal se abaixou com a intenção de recolhê-las, viu que formavam um desenho abstrato. A figura inusitada e bela surgira de modo espontâneo, à revelia de qualquer pretensão estética. O escritor, hipnotizado, apanhou os pedacinhos de papel e os fixou em uma cartolina amarronzada exatamente da maneira como caíram no chão. Batizou o trabalho de Por Acaso, Puro Acaso. Quem percorre o apartamento carioca logo avista a composição pendurada numa nesga de parede e um tanto oprimida pelas dezenas de outros quadros e gravuras que decoram o imóvel — a maioria de artistas tão míticos quanto Iberê Camargo, Rubem Valentim, Oscar Niemeyer e Marcelo Grassmann. "Todos bons amigos", comenta o dono da casa, com um híbrido de displicência e orgulho.
O episódio dos papéis revela muito sobre o jeito de o poeta enxergar a vida e o ato criativo. Para o autor do célebre Poema Sujo, viver (ou criar) é o resultado de um diálogo contínuo entre o arbítrio e o inesperado, a ordem e a desordem, a necessidade e o acaso. O assunto veio à tona numa tarde abafada de fevereiro, ao longo da conversa de três horas que Gullar manteve com BRAVO!. O apartamento de Copacabana, silencioso àquela altura do dia, serviu de cenário.
Viúvo, o maranhense namora a poetisa gaúcha Cláudia Ahimsa. Ele a conheceu durante a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1994. Pouco tempo antes, amargara a morte da mulher, Thereza Aragão, e de um dos três filhos, o caçula Marcos. Inspirado pela atual companheira, escreveu os versos "Olho a árvore e já/ não pergunto 'para quê?'/ A estranheza do mundo/ se dissipa em você".
BRAVO!: O senso comum costuma apregoar que poetas nascem poetas. Poesia é destino?
Ferreira Gullar: Prefiro dizer que é vocação. O poeta traz do berço um modo próprio de lidar com a palavra. Não se trata, porém, de um presente dos deuses, de uma concessão divina, como se pregava em outras épocas. Trata-se de um fenômeno genético, biológico, sei lá. Há quem nasça com talento para pintar, jogar futebol ou roubar. E há quem nasça com talento para fazer poemas. Sem a vocação, o sujeito não vai longe. Pode virar um excelente leitor ou crítico de poesia, mas nunca se transformará num poeta respeitável. Quando um jovem me mostra originais, percebo de cara se é ou não do ramo. Leio dois ou três poemas e concluo de imediato. Por outro lado, caso o sujeito tenha a vocação e não trabalhe duro, dificilmente produzirá um verso que preste. Se não estudar, se não batalhar pelo domínio da linguagem, acabará desperdiçando o talento. "Nasci poeta, vou ser poeta." Não, não funciona assim. Converter a vocação em expressão demanda um esforço imenso. Tudo vai depender do equilíbrio entre o acaso e a necessidade. A vocação é acaso. A expressão é necessidade. Compreende a diferença? No fundo, a vida não passa de uma constante tensão entre acaso e necessidade.
Nada escapa desse binômio?
Nada. O que faz o homem sobre a Terra? Luta para neutralizar o acaso. Eis a principal necessidade humana: driblar o imprevisível, a bala perdida. Concebemos Deus justamente porque buscamos nos proteger da bala perdida. Deus é a providência que elimina o acaso. É o antiacaso.
Você não crê que Ele exista?
Gostaria de acreditar, mas não acredito. Uma pena... Poucas crenças podem ser mais reconfortantes do que a fé em Deus. Ele enche de sentido as nossas vidas sem sentido. "Eu não sou cachorro, não!", cantava o Waldick Soriano, lembra? Uma frase sugestiva, já que os homens realmente não se veem como cachorros. Os homens anseiam uma condição sublime. Não à toa, inventaram Deus: para que Deus os criasse. Se você pensar direito, todas as coisas abstratas ou concretas que a humanidade constrói têm a intenção de dar significado à vida — e, não raro, um significado especial. Nós, que frequentemente praticamos atos injustos, inventamos a justiça. Por quê? Porque desejamos ser melhores do que somos e tornar menos insolúvel o mistério de viver. A arte surge pelo mesmo motivo.
Conclui-se, então, que o poema também almeja dar significado à vida.
O poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensível. Vou contar uma história: um dia, estava vendo televisão e o telefone tocou. Mal me ergui para atendê-lo, o fêmur de uma das minhas pernas bateu no osso da bacia. Algo do tipo já acontecera antes? Com certeza. Entretanto, naquela ocasião, o atrito dos ossos me espantou. Uma ocorrência explicável de súbito ganhou contornos inexplicáveis. Quer dizer que sou osso?, refleti, surpreso. Eu sou osso? Osso pergunta? A parte que em mim pergunta é igualmente osso? Na tentativa de elucidar os questionamentos despertados pelo espanto, eclode um poema. Entende agora por que demoro 10, 12 anos para lançar um novo livro de poesia? Porque preciso do espanto. Não determino o instante de escrever: "Hoje vou sentar e redigir um poema". A poesia está além de minha vontade. Por isso, quando me indagam se sou Ferreira Gullar, respondo: "Às vezes".
A falta de controle sobre o ato de escrever o angustia?
Não, em absoluto. A experiência de criar um poema é maravilhosa. Mas, como não depende inteiramente de mim, sei que corro o risco de nunca mais vivenciá-la. Se parar de fazer poesia, vou lamentar — só que não a ponto de disparar um tiro na cabeça. Nenhum poema, de nenhum poeta, me parece imprescindível. Dante Alighieri poderia não ter escrito A Divina Comédia. Ou poderia tê-la escrito de outro jeito. Novamente: tudo se subordina à lei do acaso e da necessidade.
Um poema deve sempre emocionar?
Sim, deve emocionar primeiro o poeta e depois o leitor.
O pernambucano João Cabral de Melo Neto, com quem você conviveu, pensava diferente, não? Ele preconizava uma poesia menos emotiva.
João Cabral gostava de mentir! (risos) Pegue o poema O Ovo de Galinha e veja se aquilo não comove o leitor. Você acha que o João também não se comoveu ao escrevê-lo? Lógico que se comoveu! Na verdade, João recusava a ideia de o poeta transformar a poesia em confessionário, em objeto do sentimentalismo. Daí proclamar que o poema tinha de ser uma construção intelectual. A razão lhe serviu de bússola. No entanto, paradoxalmente, inúmeros de seus versos não resultaram tão frios. À medida que o tempo passa, o João se revela cada vez mais complexo, uma soma de contradições — o que, no fim das contas, só aumenta a grandeza dele.
Você concorda quando os críticos apontam o Poema Sujo, de 1975, como sua obra máxima?
Difícil responder. Não me debrucei profundamente sobre o assunto... O Poema Sujo é, de fato, o que reúne o maior número de interrogações e descobertas — em parte, pela extensão (os versos se espalham por quase 60 páginas); em parte, pela febre criativa que me assaltou enquanto o redigia. Entre maio e outubro de 1975, fiquei imerso no que classifico de "estado poético". Nada me tirava daquele clima. Eu comentava, brincando, que me tornara uma espécie de rei Midas. Tudo em que botava a mão virava ouro, tudo virava poesia. Foi uma fase excepcional. Para mim, porém, trabalhos mais recentes podem ter importância idêntica à do Poema Sujo, por exprimirem reflexões novas, algo que não me ocorrera dizer antes.
Uma parcela da crítica sustenta que você é o maior poeta brasileiro vivo. É mesmo?
Imagine! E como se mede o tamanho de um poeta?, já perguntava Carlos Drummond de Andrade. Que régua consegue dimensionar um negócio desses? Claro que, quando escuto uma avaliação do gênero, me envaideço. Mas não me iludo. Cada poeta, vivo ou morto, é inigualável. O João Cabral, o próprio Drummond, o Vinicius de Moraes, o Mário Quintana nos transmitiram um legado riquíssimo. São inventores de um universo muito pessoal e insubstituível. Sem mencionar o Murilo Mendes, autor de pérolas tão lindas quanto "A mulher do fim do mundo/ Chama a luz com um assobio".
Poeticamente, você jamais permaneceu num único lugar e sempre procurou a renovação. Em contrapartida, como crítico, acabou recebendo a pecha de conservador, por rejeitar diversas manifestações da arte contemporânea. O rótulo o incomoda?
Não, não me incomoda. Nesta altura do campeonato, quando o vale-tudo se apoderou das artes plásticas, a qualificação de "conservador" perdeu sentido. Conservador por quê? Por diferenciar expressão e arte? No meu entender, toda arte é expressão, mas nem toda expressão é arte. Se me machuco e grito de dor, estou me expressando; não estou produzindo arte. Da mesma maneira, se alguém começa a bater numa lata, emite sons; não cria música. O filósofo francês Jacques Maritain, católico, afirmava que a arte é "o Céu da razão operativa". Ou melhor: é o ápice do trabalho humano. Arte, portanto, pressupõe o "saber fazer". Saber pintar, saber dançar, saber esculpir, saber fotografar, saber tocar, saber compor. Tal critério prevaleceu durante milhares de anos, desde as cavernas até o advento das vanguardas, no final do século 19, período em que se questionou o "saber fazer". Pois bem: sob a minha ótica, a preocupação vanguardista é um fenômeno que se esgotou. Por milhares de anos, a arte seguiu adiante sem ligar para o conceito de vanguarda. Ninguém me convencerá de que, em pleno século 21, crucificar-se na traseira de um Fusca, deixar-se filmar cortando a vagina ou masturbar-se numa galeria equivale a um gesto artístico. Segundo o norte-americano John Canaday, historiador da arte, os críticos de hoje temem repetir o erro cometido pelos críticos do século 19, que não compreenderam os impressionistas. Em consequência, assinam embaixo de qualquer bobagem que levante a bandeira do "novo". Percebe a armadilha? Caso três ou quatro artistas resolvam espremer uma bisnaga de tinta no nariz de um crítico, ouvirão dele que praticaram um ato inovador. Definitivamente, não penso desse modo.
Nos tempos de militância comunista, você usou a poesia com fins políticos. O engajamento dos poetas ainda se justifica?
Não, de jeito nenhum. Os poetas, agora, irão se engajar em quê? No socialismo ridículo do Hugo Chávez? Foi um engano imaginar que versos contribuiriam para a revolução social. Admito que um poema consiga iluminar o leitor, consiga lhe abrir a cabeça. Mas daí a mudar a sociedade... Muito complicado! Abandonei todos os mitos daquela época. Não creio mais em luta de classes. Já aprendi que o capitalismo é como a natureza: invencível.
E a crise econômica que o mundo enfrenta atualmente? Não põe o capitalismo em xeque?
Sem dúvida atravessamos um momento delicadíssimo. Mesmo assim, estou convicto de que o capitalismo resistirá. Trata-se apenas de mais uma crise num sistema que vive de crises. Repito: o capitalismo vai imperar porque segue a lógica da natureza. É brutal, é feroz, é amoral. Não demonstra piedade por nada nem por ninguém. Em compensação, nos oferece uma série de benefícios. O capitalismo, à semelhança da natureza, se desenvolve espontaneamente. Não precisa que meia dúzia de burocratas dite o rumo das coisas, como acontecia nos regimes socialistas. Em qualquer canto, há um cara inventando uma empresinha. De repente, no meio deles, aparece um Bill Gates. São multidões em busca de dinheiro! Impossível deter uma engrenagem tão eficiente. Podemos, no máximo, brigar para que as desigualdades geradas pelo capitalismo diminuam. Aliás, convém que briguemos. Não devemos abdicar de um mundo mais justo, ainda que capitalista.
Como você avalia o governo Lula?
Avalio mal. O Lula é um grande pelego. Sabe aquele indivíduo que se infiltra nos sindicatos para amortecer os conflitos entre trabalhadores e patrões? O Lula age exatamente assim. Por um lado, agrada os banqueiros e os empresários. Por outro, corrompe o povão com programas assistencialistas. Posa de líder popular, e a massa o aplaude. Viva o pai dos pobres! Resultado: todo mundo confia no Lula, o rico e o miserável. Em decorrência, as tensões sociais se diluem. Que maravilha, não? Um país de carneirinhos...
Em setembro de 2010, você completa 80 anos. Sente-se realizado?
Olha, a vida é uma cesta em que, quanto mais se põe, mais se deseja colocar. Estamos sempre partindo do zero. Hoje pinto um quadro ou termino de ler um livro. Fico satisfeito. Mas, amanhã, me pergunto: e agora?

sábado, 7 de março de 2009

LITERATURA | Poemas inéditos

ANELITO DE OLIVEIRA - Há quase cinco anos não publico nada de poesia. Só planejo. Escrevo, projeto, converso com editores e volto, desanimado, ao silêncio. Vinte anos a serviço da poesia – criando, pensando, difundindo, agitando etc – e apenas dois livros, mal publicados e mal distribuídos: Lama (2000) e Três festas: a love song as Monk (2004). Mesmo com a recepção tão entusiasmada de leitores-críticos que respeito: Armando Freitas Filho, Adolfo Montejo Navas, Fábio Lucas, Ivan Marques, Edgard Pereira, Mário Alex Rosa, Maria José de Queiroz, Maria Antonieta Pereira, Alécio Cunha, entre outros. São vinte anos e dois livros! Além dos poemas divulgados no Suplemento, Dimensão, Medusa, Na virada do século de Frederico Barbosa e Cláudio Daniel e Poetas na biblioteca de Reynaldo Damázio, nada. O que eu esperava que aconteceria? Tudo. O que aconteceu? Nada. Nunca houve nem haverá tempo-espaço bom para publicar poesia. Os poemas no mundo, então, em qualquer suporte, à procura de algum acolhimento.


A DESTRUIÇÃO

1.

A vida destruiu
a alma,
Onde estava o amor

O corpo segue
Sem nada

O que tenho a dizer?

2.

O outro lado é a negação.
Este, o que ainda resta de uma vontade,
a vibração.
Dali, do outro lado, chega-se depois de tanto tempo, corpo empoeirado
náufrago ofegante.
Chega-se dali com um copo
De vida na mão. E é tão fácil, tão simples, entorná-lo, destruí-
Lo. Tudo nega o que disse.
Afirma. O outro lado é tudo que mata.
A vida.

3.

Aqui estou.
Exatamente onde
Estivemos.
Sozinho,
Agora penso o que diria
Para tornar as coisas
Menos ordinárias.
Diria
Que não tenho sentido,
Por exemplo.
O que é isso?
E sorriria:
O que se tem
Quando tudo está,
Como na canção,
Perdido.
Aqui,
Exatamente assim,
Estou.

4.

Eis que me vem
A sua lembrança
Eis que me vem o desejo
Da sua presença
Eis que me vem a
Sensação da distância
Você distante
Eu distante
Distantes daqui
Desaproximados
Ausentes
Enfim
A força esmagadora da
Ausência:
Uma canção qualquer
O rádio
O quarto
Eu


5.

Eram 29 anos e a
Premência de chegar
Aos 30. São agora
38 anos e a premência
De chegar aos 39
E resultar apenas
Nos 40. A premência
De perder a vontade
De descobrir, de se
Dar por descoberto,
Conhecido de si, o
Mais trivial vizinho.

6.

O que restou?
A lembrança.

7.

Diante de uma lembrança,
O limite. Este aqui, onde
A água se detém. Como
Um touro, detém-se,
Detida. Como um menino
Cego diante do espelho.
Era um touro. Era um
Menino. Era um touro
Terno como o verde dos
Olhos. A água nos olhos.
Terno, como a verdade
No desamparo. Este mar.


Anelito de Oliveira
Verão de 2009

quinta-feira, 5 de março de 2009

JORNALISMO | Imagem do Brasil

ANELITO DE OLIVEIRA – Difícil traduzir com precisão o que é realmente o país das imprecisões. Toda vez que se tenta, objetivamente, revela-se, sobretudo, a dificuldade. País refratário a objetivações, objeto não-identificável. Mas, às vezes, de um gesto espontâneo, de um clique, eis que... o Brasil se traduz. Como aqui, nesta imagem postada ontem, 04 de fevereiro, publicada pelo jornal belorizontino “O Tempo” neste início de ano. Feito de Charles Silva Duarte, lá da Zona da Mata mineira, que logo me surpreendeu e deixei entre os guardados virtuais. Um estádio, o estado da aura do Brasil. Alegre abandono, pré-pós fevereiro. Reproduzo aqui como homenagem a um arguto fotógrafo e como índice deste novo layout, mais lúdico, mais leve.