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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

ENSAIO | O crítico sem dogma

ANELITO DE OLIVEIRA - Mineiro da antiga Santa Quitéria, hoje Esmeraldas, um dos mais importantes críticos literários em atividade no país, Fábio Lucas completou 80 anos em 27 de julho passado. Não é de se estranhar, evidentemente, o silêncio em torno da efeméride: país sem memória (para dizer o mínimo). Lucas é um trabalhador incansável, referência preciosa de um tipo literário “inventado” no século XIX e hoje em vias de extinção. Nada menos que três publicações recentes atestam a vitalidade desse homem de letras inquieto: O poliedro da crítica, antologia de textos de vários momentos selecionados pelo próprio autor, O núcleo e a periferia de Machado de Assis e Ficções de Guimarães Rosa: perspectivas.
Em linhas gerais, a obra de Fábio Lucas se configura como um grande painel crítico da produção literária brasileira dos anos 1950 à atualidade, indispensável para se refletir sobre os mais significativos autores, obras e tendências contemporâneas. Nesse painel, revelam-se dois aspectos: um, de natureza documental, outro, de natureza analítica, de tal forma que se pode dizer que o crítico se empenha em documentar e analisar o que se publica de mais relevante no nosso tempo, segundo seus critérios, contribuindo, sobretudo, para a permanência da própria tradição crítica, de uma relação viva, tensa, com a obra literária.
O volume Crítica sem dogma, aparecido em 1983, é exemplar do projeto crítico de Fábio Lucas. Dezenas de autores, novos e consagrados, e obras - ensaio, romance, conto, poesia – são abordados pelo crítico, de Otto Maria Carpeaux a José Guilherme Merquior, de José Américo de Almeida a Rubem Fonseca, de Henriqueta Lisboa a Affonso Romano de Sant´Anna, passando por Fernando Sabino e Ivan Ângelo. No texto de apresentação, o autor enuncia seu sentido de crítica, destacando que “a crítica procura a inteligibilidade da obra e, por detrás desta, a do mundo”, o crítico “não realiza uma leitura fria e passiva de mero e prazeroso acumulador de informações”, é “perquiridor, deseja alcançar os porquês”.
Ainda nesse texto da coletânea em questão, Fábio Lucas discorre sobre o lugar da literatura no continente latino-americano, enunciando dados importantes para o “retrato” do crítico que sempre foi e tem sido, dados que nos permitem, especialmente, percebê-lo como um crítico latino-americano, movido pela mesma consciência aguda que animou um Rama, um Cornejo Polar e, ainda, um Candido. “A América Latina”, diz ele, “tem feito da Literatura a sua consciência: muitas vezes ela ocupa o lugar da Sociologia, da Psicologia Social, da Antropologia, da Política, no jogo de dizer nas entrelinhas o que a repressão organizada permite.” E enfatiza: “A Literatura é, deste modo, quase sempre crítica, e a crítica é muitas vezes criação literária”.
Evidencia-se, nestas linhas, um sentido insubordinado de crítica, que lhe confere um raio de atuação para além da obra literária, que é visada como espécie de acesso ao mundo. Este, por sua vez, não tem aqui uma qualidade metafísica, digamos, mas sim social, material – o mundo é, para a comunidade literária de que faz parte o crítico, a América Latina com seus dilaceramentos históricos, com seus problemas endêmicos. A literatura tem sido a consciência (atormentada, por que não dizê-lo?) desse mundo, empenho que a transforma em crítica, quando é criação, e em criação, quando é crítica. Descortina-se uma relação mutuamente transformadora, portanto, entre o continente latino-americano e sua literatura.
Crítica sem dogma aparece num momento em que a crítica literária se encontrava em plena marcha dogmática, iniciada ainda nos anos 1960, quando a atividade crítica passou a se restringir, cada vez mais, às Faculdades de Letras, com os críticos de “rodapé”, que atuavam nos cadernos culturais dos jornais, sendo desqualificados e banidos do espaço jornalístico. Além do regime autoritário em vigência, foi decisivo para esse processo a influência do Estruturalismo francês sobre pesquisadores acadêmicos brasileiros, conforme o próprio Lucas denuncia em entrevista ao “Jornal do Brasil” em 1977: “Fomos obrigados a mascar essa goma insossa, proveniente de pequenos grupos inseguros da França, em estado de perplexidade diante de sua decadência como Nação imperialista”.
Distanciado da Universidade por força do regime militar, que o fez amargar um exílio de seis anos nos Estados Unidos e Europa, o crítico não mais se reintegrou totalmente, digamos, à universidade pública brasileira e, por isso mesmo, pôde ver com agudeza o papel da própria instituição universitária na repressão à literatura, na contenção da liberdade de criação essencial ao escritor, através da adesão ao Estruturalismo. Este corresponderia, no âmbito das letras, à Teoria da Dependência, no âmbito social, quando os mais prestigiados “cientistas sociais”, como Fernando Henrique Cardoso, postulavam, nos anos 1960 e 1970, um status de nação dependente para o Brasil.
Em face de todo um dogmatismo ostentado pelos estruturalistas, Crítica sem dogma inaugura uma atitude de defesa da autonomia da literatura, na qual o gesto crítico se mostra numa relação de cumplicidade com o gesto criador com vistas a configurar um movimento de resistência da literatura brasileira a valores fomentados em centros acadêmicos estrangeiros. O dado dessa cumplicidade que, inicialmente, ressalta-se é o próprio acolhimento do texto de criação literária, por parte de Fábio Lucas, independente do gênero e do lugar social, político, econômico ou étnico do seu autor. O crítico se nos apresenta como um leitor generoso, sempre disponível para o encontro com novos textos.
Graças a esse olhar cúmplice do crítico mineiro, inúmeros autores ainda jovens nas décadas de 1960, 1970 e 1980 tiveram seus trabalhos destacados em análises pontuais que são, hoje, referências básicas para quaisquer leituras que se proponham. É o caso, inclusive, de muitos autores mineiros, como Adão Ventura, Oswaldo França Jr., Adélia Prado, Roberto Drummond, Silviano Santiago, Mário Garcia de Paiva, Ivan Ângelo e Luiz Vilela. Em textos curtos, escritos no “calor da hora” em que seus autores os divulgavam em livro, o crítico contribuiu para alargar o sentido de obra literária para além do mundo da literatura, aclarando seu fundamento societário e tornando-a, assim, acontecimento significativo para a comunidade de leitores.
Escrevendo sobre A casa de vidro, de Ivan Ângelo, Lucas nos dá elementos para compreender a produtividade crítica da sua cumplicidade com o texto do novo autor. Primeiro lembra que Lessa, em depoimento a um jornal paulista em 09 de dezembro de 1979, disse que “encara a Literatura como uma forma de conhecimento, tão válida quanto a Sociologia, a Antropologia ou outra ciência social”. Na sequência, reflete: “Eis uma tese coincidentemente de nosso repertório (...). A cada época, temos que determinar o que é literário, ou seja, as condições de admissibilidade de um tipo de produção textual na ordem literária. Na América Latina, fazer literatura é também refletir sobre a condição de terceiromundista, é enfatizar a dominação e desigualdade em termos legíveis”.
Criador e crítico, como se vê, irmanam-se, na percepção de Lucas, em torno de uma preocupação comum com uma espécie de eficácia da literatura no que diz respeito à elucidação do país, ao enfrentamento dos problemas vivenciados pelos brasileiros. O jovem criador, que então era Ivan Ângelo, enuncia um ponto de vista familiar ao crítico, que este vinha e ainda vem cultivando, à sua maneira, desde os anos 1950, mas não se trata de um ponto de vista “demodée”, superado. A vida social latinoamericana, com sua tradição de autoritarismo e desigualdade, é que “exige” a prática da literatura como “forma de conhecimento” que se renova a cada época, de modo a denunciar com clareza o que se passa em cada lugar.
Assim é que se apresenta, num primeiro plano, uma orientação ideológica na compreensão crítica de Fábio Lucas, que traz implícita uma dimensão histórica, pertinente à relação entre literatura e experiência. A obra literária, de acordo com sua percepção, constituiria – é possível pensar – um movimento a partir da história, marcado por uma vontade de racionalização crítica da realidade comum, e se cristalizaria como objeto estético pensante questionador da ordem forçosamente natural das coisas, isto é, uma ordem imposta pelas classes dominantes. Dessa busca de articulação entre os três pólos – histórico, estético e ideológico – constituintes da obra literária decorre a singularidade da produção crítica de Fábio Lucas.



Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, Belo Horizonte, 15 de outubro 2011.