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sábado, 17 de abril de 2010

POLÍTICA | Mais uma besteira

ANELITO DE OLIVEIRA - Há quase oito anos, Lula diz suas besteiras diárias e nós, a maioria numérica da população, esforçamo-nos para compreendê-lo, como se esta fosse nossa condição “sine qua non” de brasilidade: estar do lado do Brasil passou a significar não discordar do que o presidente espontâneo diz. Na recente Conferência Nacional de Educação em Brasília, Lula voltou a se gabar de ser o presidente que mais fez e faz pela educação, a tal ponto que considera difícil, quase impossível, ser superado.
Com a modéstia que lhe é peculiar, disse até que gostaria de ser superado, mas não há ninguém neste país para superá-lo, especialmente em função do seu histórico: o primeiro presidente sem diploma universitário – e mais: com um vice da mesma estirpe. Lula exemplifica a grandeza do seu governo em matéria de educação com as muitas universidades federais que criou, com o programa de reestruturação de universidades, o Reuni, e com programas de apoio a alunos de faculdades privadas, como FIES e ProUni.
De fato, é inegável a realidade nova no ensino superior hoje, sobretudo no que diz respeito ao acesso tanto a instituições públicas quanto privadas. A política de cotas para negros e programas de educação a distância, como a Universidade Aberta do Brasil (UAB), têm dado uma contribuição inestimável para esse processo – que vai além da questão financeira – de acessibilidade ao ensino superior, imprimindo, em meio a polêmicas de vária ordem, uma outra feição curricular, metodológica, espacial e pedagógica ao meio universitário.
Tudo isso é realidade nova, mas não chega a configurar a necessária revolução na educação brasileira porque, naturalmente, ensino superior não corresponde à totalidade da educação, mas apenas a uma parte – bastante pequena, inclusive, num país continental. Mas Lula se dá por satisfeito, não só porque é de responsabilidade da União a educação superior, cabendo às unidades federativas e aos municípios a responsabilidade, respectivamente, pelo ensino médio e fundamental. Por que, afinal, essa satisfação?
Não é preciso ser especialista em nada, educador ou educando, nem mesmo ter diploma de curso superior ou inferior, para perceber a precariedade do sistema educacional brasileiro como um todo: escolas públicas, faculdades e universidades que são, em sua maioria, excelentes praias baianas, fumódromos cariocas, passarelas paulistas, quitandas mineiras e sucursais de grupos econômicos, menos instituições sérias, comprometidas com a produção e difusão de conhecimento, empenhadas na formação de legítimos cidadãos para transformar, desde as entranhas, a sociedade brasileira.
A verdade é que, como nunca na história deste país, o sistema educacional está impotente diante de uma sociedade que se complica cada vez mais, exigindo pesquisas rigorosas, propostas ousadas e soluções consistentes. A razão prática, clara, dessa impotência é a desvalorização salarial do trabalhador da educação – professor, pesquisador, técnico-administrativo -, que é previsível no âmbito privado, mas é simplesmente inconcebível no âmbito público. Uma realidade histórica que Lula, numa gritante traição ao processo que o consagrou, sequer se esforçou para alterar.
As greves constantes na educação são apenas demonstrações mais eloquentes do mal-estar dos trabalhadores da área, efeitos de uma causa que poucos conseguem entender e, num exercício de ignorância interessada, perguntam: o que querem os professores? Com certeza, não querem altos salários, motivo pelo qual acabam voltando às suas atividades normais depois de míseros reajustes ou não, engolindo as mágoas secas e repondo aulas. O que os professores querem é o reconhecimento real, não apenas retórico, do lugar essencial da educação na sociedade, que se traduziria num salário justo e em investimento em ensino, pesquisa e extensão.
Por não ser professor, por ser um presidente sem diploma de curso superior (e que gosta muito dessa condição), Lula não tem esse tipo de percepção, coisa de idealista. Fala de educação como quem fala de – sempre! – futebol: descontraidamente, irresponsavelmente. Está satisfeito com o que fez e faz porque sabe que “suas” universidades, em sua maioria, são reinos amigos, comandados por gente interessada nos muitos esquemas, redutos de mesquinhos. Sabe que os banqueiros que lucram com a educação universitária privada estão felizes como nunca. Sabe, enfim, que mentira repetida à exaustão acaba por se tornar verdade incontestável no país do oba-oba.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

POESIA | Alguns

A Valentim Facioli



Alguns não podem tomar partido
Porque já são o partido

Alguns não podem tomar partido
Porque já estão partidos

Porque são o que o partido fez
Com eles com elas com todos

Com todas que o partido filiou
Onde quer que tenha atuado

Ou ainda esteja atuando, eles,
Elas, os alistados do partido,

Agora são apenas uma parte do
Processo que os partiu, não são

Mais o que eram um dia, foram
Partidos como madeira bruta em

Carvoeira, foram partidos ao
Meio, ao lado, ao centro, abaixo,

Ao fundo, em cima, partidos a
Golpes de machado, partidos

Aleatoriamente e, à maneira
Histórica, queimados, nas cinzas,

As partes desiguais vão revelando
O processo que se processou,

Partes que já não pertencem a um
Mesmo todo, pedaços de muitas

Árvores de uma mesma vida agrária,
Que o partido sempre exaltou nos

Movimentos pela cidade, que agora
Se desconhecem porque foram

Reduzidos a partículas contraditórias
Porque foram convertidos em coisas

Que agora se confrontam num só
Corpo que agora não cabem num

Mesmo corpo, o corpo do homem
Partido, do precariamente humano,

Para alguns, não há partido a tomar
Porque já tomaram todos porque

Já partiram tudo que tinham a partir,
Para alguns, não é mais possível

Tomar partido como expressão de
Determinada causa porque não há

Mais a dimensão da causa, não há
Uma verdade em causa, há apenas,

Como efeito das tantas causas, este
Desconhecimento do que se é no

Mundo agora com suas velhas urnas
Cercadas pelos mesmos candidatos


Anelito de Oliveira

domingo, 4 de abril de 2010

RESENHA | Poesia-baleia

ANELITO DE OLIVEIRA - Os trabalhos de Guilherme Mansur, um dos raros poetas em atividade ainda dignos de nota, são sempre desconcertantes, tanto pelo que revelam quanto pelo que velam. Quando nos encontram (porque se dirigem a um encontro com outrem pelo mundo), logo nos inquirem em muitas dimensões – cultural, ambiental, humana. Não é fácil, diante de criações tão sutilmente pensadas, formular uma resposta no mínimo razoável. Há um risco muito grande de, por excesso ou escassez, desviar do horizonte ultra-sensível que o poeta põe em relevo nos muitos suportes com que lida – instalação, cartão-postal, jornal, livro etc.
No final do ano passado, apareceu, produzido pela Gráfica Ouro Preto, “Bahia baleia”, um caderno de “haikais e deZENhos da caixa de cachalotes, movidos por um encontro com as baleias jubartes”, como se lê na abertura, na Ponta do Apaga Fogo, em Arraial d´Ajuda. Encontro insólito, que encontra (e isso é de grande importância) uma sintonia no produto livro, também insólito, como os demais de Mansur, construído de modo afim do artesanal, não como mera nostalgia da aura, mas como uma espécie de ultrapassamento dos lugares comuns da técnica, no caso, da técnica consagrada pelo mercado editorial.
Coisa para ver antes e para ler, nesta sequência, “Bahia baleia” se impõe pelo formato horizontal, pela economia de signos, pela tensão entre preto e branco, pela aspereza do papelão na capa, pelo peso do papel branco do miolo, enfim, pela sua consistência de objeto. Somados, esses elementos realçam a sobriedade de uma poética que, cultivada ao longo de mais de três décadas, encontra-se seguramente no seu ápice livresco, em termos de produtividade semântica no espaço-livro. No “corpo” dos haikais, o poeta inscreve seu desejo de fazer nas palavras, não com estas, algo além das palavras.
Alargado por traços estranhos, esse “corpo” dos textos acaba por figurar, a partir de uma perspectiva includente, a dimensão extramundana das baleias, seu “corpo” excessivo aos olhos cartesianos da humanidade moderna. Nesse trato do “material” baleia, para lembrar os formalistas russos, o “procedimento” animalizante de Mansur revela sua singularidade: não se trata apenas de falar de uma espécie em extinção, mas de fazer baleias nas palavras, de enunciar uma poesia-baleia. Nesse processo, no qual se conjugam a delicadeza do poeta e a densidade do artista gráfico, as palavras são a metade de uma arte, cuja outra metade é um silêncio crítico.
“Bahia baleia” não nos diz tudo, não é plenamente discursivo, apenas em função da brevidade que distingue a forma haikai, mas porque é produto de um poeta mallarméano, para quem o ideal continua sendo sugerir, um modo de preservar o objeto do dizer. O silêncio que ali se encontra é, portanto, de natureza estética, fundamentalmente, mas não só: no vestígio dessa natureza, uma outra se apresenta, que é aquela de ordem ética. Os haikais de Mansur estão investidos de uma indignação em face das agressões ambientais de um modo geral, e do extermínio de baleias, em especial. No fundo, essa indignação constitui, para o poeta aqui, um problema poético.
Este problema talvez possa ser formulado, em termos sintéticos, assim: como dizer o horrendo, a realidade, sem desdizer a beleza, o encantamento? Mansur escreve num haikai: “ondas da bahia/ uma baleia salta/ sambaleia”, e noutro: “esqueleto na areia/ ossos de canoa/ restos de baleia”. O encontro do poeta com seu tema é tão prazeroso quanto doloroso, e o silêncio acaba sendo uma saída para a contenção tanto da exaltação – previsível – do eu quanto da sua – compreensível – indignação. Disso decorre a criticidade desse silêncio, que, precisamente, a mancha, deformando as palavras, presentifica: presença monstruosa, violação tecnológica do mundo natural, contra a qual o poeta se coloca.
Com estas sutis meditações sobre a condição das baleias, Guilherme Mansur logra meditar, evidentemente, sobre a própria condição da poesia num mundo “shopping center”, movido a interesses mesquinhos. Rara como baleias, a poesia também é uma espécie em extinção, ameaçada exatamente por aqueles que querem ver utilidade em tudo, pelo fato de ser um inutensílio, como Leminski, a quem Mansur dedica seu “Bahia baleia”, gostava de dizer. Mas, na sua solidão, o poeta resiste: “escritos sobre baleia/ leia você ou não leia/ mar cheio de baleias”.

sábado, 3 de abril de 2010

LITERATURA | Criação

A oferenda


Veja, e depois me fale o que achou. Deixou sobre a mesa e foi saindo. Nunca mais voltou. Não sei onde andará, se continua vivendo por ali. Minto: fiquei sabendo outro dia que continua vivendo por ali, que ainda anda na noite. Talvez não seja tão difícil sua localização, o mundo é pequeno, cada vez mais, as noites sóbrias. Não sei exatamente o que lhe diria, sempre me vem à lembrança a enfermidade daquele nosso amigo. A oferenda tinha a ver com ele, com o fim do século passado. Nunca soube por que eu, tão distante, deveria ver. Tampouco soube por que deveria falar sobre o que veria. Não sei se me ocupei dessa questão objetivamente naqueles dias, eram tantas coisas, tantas pessoas, tantas imagens. Mas agora, aqui, tudo chega a me intrigar. A força de uma intriga é o que há de mais intrigante num sujeito. A ponto de chegar a não haver mais autonomia do que intriga nem do que está intrigado. Devia ver. E, num tempo, vi. A primeira vez foi como se já tivesse visto, e fiquei pensando se tivesse sido como se jamais tivesse visto. Sentir isso era algo bastante óbvio, coisa de quem está cansado de significados. A segunda vez foi como se eu tivesse passado a vida inteira evitando ver o que via ali. Passei alguns dias inquirindo o que estava por trás da natural resistência a tantos encontros, refletindo sobre a razão de tantos desencontros. E então, na terceira vez, comecei a compreender que não havia distância entre ver e ser naquele instante, que tudo se amalgamava numa mesma instância, numa noite-viver. Evidentemente, eu me havia resgatado do fundo de um esquecimento involuntário, reencontrava-me depois de tanto tempo naquele olhar, especialmente. Lá, no lado de dentro da noite, o desamparo era uma forma fundante de conhecimento. No limite, a morte. Inútil, dolorido, tentar explicar acontecimentos, encenações de um mundo inexplicável. Apenas ver, devia ver. Viagem do século XX.