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segunda-feira, 7 de junho de 2010

POEMA | Elegia para Wilson Bueno

Assim se mata um homem:
com uma facada no pescoço
Assim se mata um homem:
com uma facada bem no pescoço
exemplarmente, estrategicamente,
Assim se mata um homem:
à traição, por trás, bem de perto,
de um modo certeiro, de uma vez,
Assim se mata um homem:
na sua própria casa, na sua
sala, no seu mundo particular,
lá!, onde era, podia ser, todo,
Assim se mata um homem:
para que todos saibam depois,
muito tempo depois, para que um
irmão o encontre, para que ninguém
possa salvá-lo, para que um irmão
possa se encontrar com o terror
e se despedaçar, para que todos
saibam que ninguém está seguro
neste mundo, para que todos
saibam que a casa é parte do
mundo, mas enfim, enfim, para
que todos, ingênuos, cínicos,
trouxas, saibam, no seio da
classe média brasileira, que país
é este, mata-se um homem como
se mata um bicho, de um modo
selvagem, mata-se não mais um
homem, mas um homem outro, não
um homem outro a mais, mas um
dos últimos homens outros num tempo
de desumanizações, como prova da
desumanização cotidiana, por
isso mesmo mata-se um homem
como se mata um porco, mata-se
um homem assim, com uma
facada na garganta, para que
o jorro de sangue corra pela face
e se confunda com as lágrimas,
para que, como água de represa agora
aberta, desrepresada, agora em
fúria escorra e inunde, porra!,
a terra toda de realidade, da
realidade dos realistas, da estúpida
realidade dos realistas capitalistas
racistas machistas, para o triunfo
dessa insuportável realidade, mata-se
um homem que resistia à realidade,
que desobedecia a realidade, que
desrealizava a realidade, mata-se
um homem com o rigor brutal da
realidade, com uma facada no
pescoço, para deixar bem claro,
uma vez mais, como a realidade é,
como a realidade age, o que é a
realidade, a barbárie, o sangue,
o crime, o sofrimento, a dor, a dor,
Assim, para que não fique nenhuma
dúvida sobre o poder destruidor
da realidade, assim, sangrando,
mata-se um homem, fazendo-o
urrar como um boi no matadouro,
castigando-o impiedosamente até
cair como um pedaço nojento de
carne e osso, como um castigo por
ter ousado sonhar, por ter sido um
sonho andante, como um castigo
por ter ousado sentir, por ter
sido um sentimento ao vivo,
enfim, como um castigo por
ter sido apenas e apenas ter
estado para ser, condena-se
e mata-se na surdina, na própria
casa, covardemente, de um
modo vil, condena-se e mata-se,
com uma facada bem no pescoço,
com uma perversidade que só
o mais animal dos animais, só,
ninguém mais, o bosta absoluto,
o racional, o civilizado, o crente,
o fiho de Deus, o que crucificou,
por amor a Deus, o próprio filho
de Deus, uma perversidade que ele,
o mesmo homem, o homem ele mesmo,
só ele consegue ter, com essa perversidade,
mata-se um homem outro, não um
outro homem apenas, não mais um
homem outro a mais, um artista,
Assim, com uma facada fatal bem
no pescoço, rasgando a voz,
decapitando grotescamente a fonte
de humanidade, mata-se um homem
outro para deixar bem claro, mais
uma vez na história, que os homens
outros (Cristo, Trotski, Lorca, Che,
Malcom) não têm lugar neste mundo



Anelito de Oliveira
Foz do Iguaçu, manhã-tarde de 02/06/10,
Céu do Brasil, trajeto Foz do Iguaçu-Rio de Janeiro,
entardecer de 03/06/10