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domingo, 27 de setembro de 2009

JORNALISMO | Na cabeça do mal

ANELITO DE OLIVEIRA - Certo, um pouco de realidade para emocionar realistas: o atirador de elite, posicionado a 40 metros de distância, acerta bem na cabeça de Sérgio, que, com uma granada na mão, ameaçava matar mais que uma refém: ameaçava matar o bem segundo os benditos.
O bem mata o que os benditos definem como mal e não é crime nenhum, não é nada de mal - todos batem palma porque o tiro foi certeiro, porque o mal foi decididamente abatido e impedido de proliferar no mundo, que é o mundo do bem, dos que, tão bons, ainda tentam salvar o mau, levando-o a um pronto socorro.
Não, o mau não deve morrer, mesmo quando ferido de morte, o mau, o bandido, o sequestrador, o terrorista, deve continuar vivo para que possa continuar representando a imagem do mal e para que, numa primavera no bairro de Noel, na Vila Isabel, possa render "glamour" para o povo do bem, para que esse povo mostre ao mundo o quanto é do bem.
Sérgio, que é um monstro segundo o ponto de vista dos benditos, certamente deve ter pai, mãe, irmão - e seria interessante se a grande imprensa, dirigida pelo povo do bem, mostrasse o que eles pensam sobre a competente ação do atirador de elite. Mas, claro, a grande imprensa é inimiga do mal, é uma bandeira da ética, e entende que o mal, além de tudo, é negro.

LITERATURA | Criação

terceira carta


tanto tempo aqui, (e embora não pareça),
longe daqui, disso que está circunscrito por um nome, mas aqui mesmo - a cidade é aqui,
e vocês no mundo, aí,
onde continua sendo o mundo, fora do que se é, em torno do corpo, com palavras, com revólveres, dentro de casas apartamentos fábricas bares praças bancos ruas cinemas matagais -
todas as ilhas, ilhas,
e seria preciso alcançá-los, sempre foi e ainda é, continua sendo, por isso a narrativa, por isso a ânsia de dizer, mas antes é preciso chegar em casa, mas onde é isso? -
chegar em casa.
onde? onde?
depois da guerra, a guerra continua por não haver um
depois da guerra.
então,
o silêncio -
digno, vivo, infeliz.


lembranças.


eu

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

LITERATURA | Criação

segunda carta

exato.
era sobre isso que tinha que dizer alguma coisa. mesmo sem ninguém para ouvir nada ali por perto. chegaria alguém, depois.
ter que dizer chamaria alguém, convidaria alguém a estar ali, em face da possibilidade de um encontro.
não interessa muito o que seria dito, que acaba sempre sendo impossível de se dizer totalmente. como seria dito, sim, interessa.
seria dito em silêncio, naturalmente, a sentir. diria respeito a uma distância intransponivel entre um lado e outro.
os dois, lados!
é possível.

lembranças.

eu

domingo, 13 de setembro de 2009

LITERATURA | Criação

primeira carta

os correios estavam fechados naquela tarde. ou estavam fechados naquela manhã. ainda era antes de 12 horas no país, com o mesmo sol decidido.
alguém deveria começar uma carta assim, tocando na dificuldade real de se escrever uma carta, cartas, atualmente.
todos veem as portas de aço dos correios - é real. fechadas - mais real ainda.
o real é assim: coisa de aço, fechamento.
e alguém lá fora, sem direito a entrar, esbarrado na impossibilidade, com um envelope na mão -
irreal?

lembranças.

eu

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

JORNALISMO | A havência do nada

ANELITO DE OLIVEIRA - Chega ao fim, neste exato momento, a série "Diálogos para um monólogo", que comecei a publicar dia 22 de agosto, dando vazão a pensamentos soltos, sem nenhuma preocupação maior que a de soltar o próprio pensamento preso que tem sido uma marca do sujeito dos dias que vivenciamos - contra a vontade até dos indivíduos que somos.
Esses microtextos não têm a pretensão a ser nada previsto na dinâmica das formas literárias: nem poesia, nem conto, nem teatro, teorema, fragmento filosófico etc etc. Alias, sim, têm uma grande pretensão: a ser nada. E tudo que posso dizer não é nada de novo desde Mallarmé: como é difícil produzir uma forma-nada, absolutamente fora de qualquer sentido de forma!
De todo modo, é isso que entendemos, no fundo do desentendimento que nos habita e nos instiga e nos move e nos indefine no mundo das definições, por escrever: isso que resiste ao nome, que luta contra o nome em nome de um permanente vir-a-ser na linguagem. Que esses "Diálogos" sejam uma cena de escrever, um movimento no sentido de inscrever a havência, o alarido do nada havendo, já é algo.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 39

- quem está aí?
- quem está aí.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 38

- parece que o mundo não tem havido.
- certamente, não. tem apenas sido.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 37

- o que fazer com as palavras?
- escondê-las. escondê-las.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 36

- alguma lembrança?
- de uma lembrança.
- do passado?
- não, do presente.
- o que constitui?
- uma relação, elo.
- tem sentido?
- fundamentalmente.
- o que há no fundo?
- uma havência.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 35

- a natureza da obra é infinita?
- a infinitude da obra é natural.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 34

- talvez não tenhamos entendido.
- outra vez o entendimento?!
- quantas vezes for necessário.
- mas não é uma necessidade vã?
- o que nisso tudo não é vão aqui?
- sem dúvida, nada se contém.
- talvez não tenhamos entendido.
- pretende explicar em definitivo?
- mas não sou eu que devo fazê-lo.
- quem, então, explicará? clarice?
- é uma possibilidade. ou ludwig.
- mas ambos estão ausentes aqui!
- talvez não tenhamos entendido.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 33

- esta mancha.
- onde?
- no seu rosto.
- ...
- sangue?
- existência.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 32

- o que deliciavam lá?
- algo parecido com amor.
- qual era a cor, suave?
- grave, como um tecido.
- muita gente por perto?
- sim, não, uns, o povo.
- ali na frente, olhando?
- ali, bem ali, oprimido.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 31

- sinto muito.
- sinto pouco.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 30

- sem saída?
- opaco.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 29

- a janela está aberta, vê.
- e se estivesse fechada?

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 28

- acho que não vale a pena.
- mas você não tem certeza?
- tenho a certeza minha.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 27

- estranho!
- nem tanto.
- como entender?
- difícil.
- todos viram?
- sim, sim.
- o que disseram?
- nada.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 26

- o que olhavam?
- não consegui ver.
- estavam perto?
- quase dentro.
- então, eram eles!

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 25

- não é uma contradição?
- de fato, ainda não sei.
- parece-me uma contradição.
- em que termos? como?
- nos termos de um processo.
- no fundo, há só um processo.
- aparentemente, sim, mas...
- deveria ser diferente, ser...
- sim, deveria ser algo seu.
- mas onde cabe a possessão?
- difícil perceber, decerto.
- se ninguém quer assumir.
- mas, uma contradição, não?