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segunda-feira, 30 de julho de 2012

POLÍTICA | A volta de Patrus

ANELITO DE OLIVEIRA - Pensar o que a candidatura Patrus Ananias a prefeito de Belo Horizonte significa exige uma menção pontual à importância que Minas Gerais tem historicamente na cena política brasileira. Do período colonial à contemporaneidade, a consistência do jogo político nacional, aquilo que o tira do pólo das vaidades e o inscreve na dimensão do eterno, passa pelo Estado. Num raio de mais de dois séculos, de fins do setecentos até agora, a política do país se enriquece, indiscutivelmente, com a contribuição pensada, equilibrada, dos mais autênticos políticos mineiros. Emergindo da cidade de um dos grandes nomes da tradição política do Estado, a Bocaiúva de José Maria Alkmin (1901/1974), Patrus Ananias é um depositário fiel dessa tradição que a redimensiona, desde seus primeiros momentos nos anos 1980, a partir de um permanente tensionamento de aspectos do nosso tempo, este “tempo de homens partidos”, como Drummond escreveu n´A rosa do povo, que é o século XX e, agora, século XXI. Um desses aspectos é a negação da centralidade da vida humana na sociedade, que passou a ser tratada como mais uma vida apenas, nada de mais. A percepção política de Patrus Ananias revela-se estruturada numa defesa generosa da centralidade da vida humana, na contramão, portanto, de preceitos hegemônicos, o que faz dela, inclusive, uma percepção fadada ao conflito com aquela cultivada hoje pelos políticos em geral, meros serviçais do capital. O fato – paradoxal, sem dúvida – é que o trajeto político de Patrus tem revelado o quanto essa percepção está em consonância com a da maioria da população, não só em Belo Horizonte, mas em toda Minas Gerais e pelo país afora, pessoas que o veem como referência ideal de estar no mundo, como ser ético, que se responsabiliza pelo outro. Quem elegeu Patrus vereador, prefeito e deputado federal e com ele esteve – nadando contra uma maré difícil – na condição de candidato a vice-governador do Estado em 2010, concorda com ele que a razão causal da política é o humano. E esse humano não é, como querem enxergar os interessados maledicentes, uma categoria abstrata, superada, encerrada no mundo das ideias, mas uma dimensão real, estruturante, da realidade social. Essa dimensão precisa ser o parâmetro para a operacionalização dessa realidade social em prol dos oprimidos, dos pobres, tarefa capaz de dignificar a política. Somente uma década e meia (quase) de distância para nos dar a imagem cristalina, digamos, do que foi a gestão Patrus Ananias à frente da prefeitura de Belo Horizonte: foi uma gestão humanista, que tinha como princípio o desenvolvimento humano. Havia um envolvimento espontâneo das pessoas com a gestão, uma familiaridade – meio inacreditável – entre cidadãos e Prefeitura, como se aquilo que cultivávamos – os ideólogos – pela vida como utopia tivesse, de repente, virado realidade. Um Orçamento Participativo, uma Escola Plural, um Festival Internacional de Arte Negra! No centro de tantas inovações, um prefeito humilde, capaz de falar a língua das pessoas comuns, de se solidarizar com os outros, de se colocar como gente, com todos os altos e baixos. Era realmente confortável ver ou saber de Patrus numa incansável atitude dialógica, cuidadosa, atuando com um “coração inteligente”, diria Hannah Arendt, sensível, no campo árido da práxis política, sempre em defesa de uma cidade mais humana. Patrus, definitivamente, não foi mais um prefeito, movido por interesses mesquinhos, mas “o” prefeito que uma cidade especial, alicerçada no alumbramento, que é BH, merece. Tal foi o impacto positivo da gestão Patrus Ananias sobre todos nós que, movidos por uma boa vontade muito mineira, sonhamos com o prefeito singular a serviço das causas maiores do país. Demo-nos – moradores de Belo Horizonte em geral, petistas e aliados em especial – ao luxo de prescindir de Patrus à frente da prefeitura, movidos pela convicção, claro, de que, como está consagrado no campo das artes, um grande artista não se repete. Apesar da nobreza da nossa intenção, estávamos equivocados: Patrus não tinha concluído sua grande obra, precisava de mais um mandato à frente da prefeitura de BH, Patrus ele-mesmo, não apenas o PT. Hoje, dezesseis anos depois da gestão Patrus Ananias, é preciso grandeza de caráter para dizer que Belo Horizonte se perdeu, ou voltou a se perder, tornou-se mais uma metrópole a serviço do capital, uma cidade-produto dos banqueiros onde o poder público, supostamente socialista, também coloca os interesses da maioria das pessoas em segundo plano a fim de deixar o caminho livre para a ação dos predadores situados nos maiores centros ocidentais. Patrus pensava e agia sobre a cidade humanamente, o que não eliminava o dado econômico, claro. Os sucessores de Patrus pensaram, agiam e agem sobre a cidade apenas economicamente, e a partir de princípio econômico liberal – o que é pior. A volta de Patrus Ananias à luta pela prefeitura de Belo Horizonte não pode ser encarada como fato qualquer, mas como “o” fato político das eleições deste ano em Minas Gerais. O oposto de Patrus - não podemos nos enganar - não é Márcio Lacerda, mas o projeto tucano hoje representado pelo governo Anastasia e defendido “inocentemente” – uma lástima! – por Aécio Neves, num gritante contraponto ao que Tancredo Neves realmente representou, projeto que percebe o povo como mera mercadoria nas trocas econômicas. Belo Horizonte precisa de Patrus agora, e Minas Gerais precisará muito mais dele, como representante de um projeto popular e democrático para o Estado, em 2014.

domingo, 22 de julho de 2012

Inutilidades, claro, as coisas que nos constituem, que nos prendem à vida, e que não têm valor de mercado. Somos, com essas coisas, fundamentalmente imprestáveis para o mundo capitalista. Essas coisas, na falta de outro nome, são poesia alojada na nossa carcaça social. Nada programado, ao acaso, essas coisas estão acampadas em nós, nosso precário - e autêntico - sentido. A série "Acampamentos" faz parte de uma coletânea inédita, sem data para chegar ao papel: As coisas no chão. | ANELITO DE OLIVEIRA

ACAMPAMENTOS 5 | Anelito de Oliveira

Do outro lado, na mesma região, um condomínio fechado, bastante seguro – diziam os especuladores imobiliários –, com guarda e quadra esportiva. Podíamos mudar imediatamente pra lá, em um mês ou no máximo dois, ou no máximo três, conseguiríamos um financiamento pela caixa e ficaríamos livres do aluguel para sempre. O sonho da casa própria! Era um apartamento pequeno, térreo, mas suficiente para um casal com dois filhos. Não caberiam os móveis de sucupira. Mas móveis... Uma tarde, na Afonso Pena com Bahia, tudo se resolveu: uma mesa, um sofá e um bar para a nova sala. Tudo preto, clássico, comum [pensava contra mim mesmo]. A televisão no suporte, os livros amontoados num cubículo. Gente passando e olhando 24 horas para dentro do apartamento. Dias tristes, tristes, tristes. Uma prisão: alcatraz. Tarde da noite, eu-prisioneiro de um sonho, retornava. E o financiamento nunca chegava, nunca chegou. Partimos, partidos.

ACAMPAMENTOS 4 | Anelito de Oliveira

Chegamos, então, à cidade – depois das margens. Também tinha ladeiras, extensas. Para chegar, sair. Ficava depois de uma, à beira de outra. Era um apartamento. Alterava a ideia de morar. Fragmentava, reduzia, afastava. Tinha três dormitórios. Num deles, os livros se abrigaram. Tinha uma sala ampla, conjugada, com uma porta-janela para a rua. Os móveis de sucupira ficaram à vontade. Parecia perfeito. Não tinha luz, ainda – demoraria dois dias para chegar. Não importava. Era um apartamento. Primeira locação. Da varanda, uma paisagem. A cidade não estava totalmente ali. Ou as margens ainda resistiam ali. Contra elas, alguns prédios se apresentavam. Logo, a paisagem seria danificada. Mas estávamos do lado de dentro, onde tudo era infinito. As noites, as noites – a serenidade, o aroma de mato. Tanta música, tanto vinho, tanta poesia. Até que a pia começou a se entupir, a rede de esgoto começou a se complicar, começou a faltar água. As brigas no andar de cima, discórdias com vizinhos dos lados. Tudo se despencava. Não dava mais.

ACAMPAMENTOS 3 | Anelito de Oliveira

Mudamos para o outro lado. Na mesma rua. Também tinha uma subida, cansativa. Na esquina, um boteco; depois da ladeira, outro bar. O barracão tinha dois quartos. Pé-direito alto, imponente. Um portão que se abria para os dois lados, dando acesso ao primeiro e ao segundo barracões. Ambos serenos. Depois do primeiro portão, um segundo. Entrando, um meio-fio antigo indo da frente até uma lavanderia, lá no fundo. À porta da sala, uma árvore com folhas caindo – o piso de cimento no quintal forrado de folhas amarelas. Vê-la florida, árvore, e saber que a chuva vinha! Dentro, o piso de taco na sala e nos quartos. No início, o sofá confortável do fotógrafo, reformado, com suas listras verdes. Na cozinha, o armário azul, usado. Um dia, o aparelho de som Philips com toca-cd. Ficava no quarto de solteiro. Um dia a piscina de plástico, os meninos ali. Depois a primeira televisão, também Philips, na sala. Depois os móveis de sucupira. Depois a construção de um novo quarto, lá fora, a biblioteca. E os churrascos, os churrascos, os aniversários, os aniversários. O tempo passando, passava. Parecia que éramos felizes – quem sabe. Um dia, estranhamente, partimos.

ACAMPAMENTOS 2 | Anelito de Oliveira

Tudo era muito limpo, excessivamente limpo, a ponto de materializar a obsessão. Alguém obcecado com a pureza – morava ali. Era uma espécie de condomínio. Duas quase-casas entrelaçadas, uma para um lado, outra para o outro. À frente deste, duas kitnets, supostamente barracão – palavra ampla, abarcadora. Em meio a estas e aquelas, um corredor levando à casa do dono de tudo, o exigente. Exigia disciplina, respeito e, claro, pagamento em dia. Nada de som alto. Nada de liberdade. Não havia lado de dentro. Tudo era visível – uma vitrine. Não coubemos ali. Éramos muitos, uma multidão. Apesar de apenas três. Menos que três. Vazamos delicadamente, como sombras. Restou a rua.

ACAMPAMENTOS 1 | Anelito de Oliveira

Ficava depois de uma ladeira. Parecia outro bairro, mas era o mesmo. Cansava chegar lá, uma caminhada. Tinha um pé de manga à frente ou no fundo, no meio, talvez. Tinha um pé de manga, é certo. Um dormitório, uma sala, um banheiro, uma cozinha. Tinha muro. Não me lembro como era o muro. Lembro-me da laje, áspera, artesanal. Sobre a laje, uma manhã, pedras rolando. Assustado, eu acordando. Rindo, ele dizendo: campainha de pobre [o irmão morto]. A cama, o guarda-roupa e o armário usados. A alegria pelas primeiras aquisições. Tom Zé cantando “Menina Jesus” na fita cassete. Um dia o soldado, dono do barracão, chega: “O senhor é muito versátil”. Não dava tempo para discutir significado. Não tinha feito nada. Talvez felicidade. O significado era desocupação.