Páginas

sexta-feira, 29 de julho de 2011

RESENHA | O grito dos porcos

ANELITO DE OLIVEIRA | O horizonte preferencial da poesia sempre foi o presente, mesmo, ou sobretudo, no seu “momento futurista” (Perloff) – são apreensões do presente que movem as vanguardas das primeiras décadas do século XX – reverberar na escrita, por exemplo, a velocidade das máquinas.
Memória futura, coletânea de poemas de Paulo Franchetti publicada pela Ateliê Editorial, apenas aparentemente abre mão do tensionamento do presente. No fundo, evoca uma perspectiva de futuro para se relacionar de modo mais crítico, digamos, com o presente – e o mais candente presente, o agora.
Este modo crítico implica, claro, um método, ainda que fictício, um procedimento pensado, ironicamente pensado, é certo, como se pensa sem vontade de verdade. “Construir com método um lugar./ Equivalências, harmonias./ No espaço fechado, ou por fechar,/ Deter a fúria, despistar o medo.”
No poema sem título que se abre com esses versos, e que fecha a coletânea, fica bastante claro o projeto desse poeta, marcado, como praticamente todos na poesia brasileira contemporânea, pela obra de João Cabral e pelo Movimento de Poesia Concreta, em especial pela teoria produzida pelos Campos e Pignatari.
“Não há mérito no fácil – dizem./ Tampouco – digo – redenção/ pelo difícil”, argumenta, de maneira dialógica, a segunda estrofe do mesmo poema, à qual a terceira estrofe responde alegoricamente: “Bordadeiras, em fila,/ teimam no rude trabalho./ Talagarças se encharcam/ De suor”.
O mundo das coisas, movido intencionalmente (pois se trata de encontrar sentido para a vida) pelo trabalho humano, é assinalado – tal a “selvageria” da escrita aqui e ao longo do livro – como contraponto ao mundo das idéias, onde têm lugar (ou tiveram), por exemplo, as acaloradas discussões sobre o fácil e o difícil na poesia.
Memória futura é atravessado por uma premência de assinalar o mundo das coisas, das matérias, dos corpos, enfim, delineando o campo onde se processam as ações humanas em geral, que são, à luz de vários poemas, fundamentalmente bruscas, descontínuas, irregulares, índices – dir-se-ia com o último Merleau-Ponty – de um “ser selvagem”.
“Fui talhado para a madeira ou para o trato dos metais”, diz o poema em prosa também sem título na abertura, “Por isso estes dedos grossos e a palma larga destas mãos quadradas”, um contido e intrigante exercício de auto-genealogia, em que o poeta se denuncia como estranho em face do familiar, da sua família biológica.
Se o tema não é novo (Drummond, Cabral, Augusto de Campos e Leminski, para ficar em algumas referências básicas da poesia atual, figuraram a “anormalidade” do poeta em relação com o utilitarismo capitalista), a produtividade que sua abordagem alcança no livro de Franchetti é, no mínimo, digna de reflexão.
“Meu pai antes de mim, meu avô antes de meu pai.”, vai dizendo o poema em prosa, “E uma lista de nomes sem rosto que se afogam no esquecimento. Todos oficiaram os ritos básicos da vida. Apenas eu, com o que me deram, contentei-me com palavras”.
Contentamento que não significa uma auto-realização, contentamento descontente, para lembrar o paradoxo do sujeito amoroso camoniano, porque (e é isso que importa mais) significa uma perda do mundo das coisas, daquele mundo habitado pelos membros da família originária.
Dessa perda do mundo “real” decorre, para o sujeito, o sentimento da finitude, do esvaziamento, da falta de sentido: “Agora, sem outro peso nas mãos, envelheço sendo ainda o que está sempre chegando e olhando à volta, sem rumo, para o lugar estranho”, que é, certamente, o lugar sem lugar da poesia.
Pode-se dizer que Memória futura consiste num renitente esforço de presentificação desse lugar através de signos de organicidade, de naturalidade, como carne (“Ouvir o chamado da carne”), terra (“Colocava a terra dentro dos vasos”), fogo (“Todos os fogos queimam”) e sangue (“O sangue insiste/ Como um pensamento”).
Essa presentificação, por outro lado, não chega a integrar a poesia ao mundo das coisas, não chega a torná-la uma prática comum entre outras práticas sociais. A estranheza do lugar da poesia seria, portanto, incontornável, razão maior da melancolia – e mesmo do luto – ostentado pelo poeta.
Nas conversas que trava com seus “precursores” remotos e recentes – Yeats, Hopkins, Pound, Hilda Hilst e Ana C. –, percebe-se, especialmente, a fatalidade como traço da relação entre poeta e mundo, como o estranho está fadado a se esbarrar nos muros do “bíos”, em todos os sentidos, da vida.
Num dos mais belos poemas desta coletânea, que vale muito pelos problemas que circunscreve, diz, organicamente, o poeta Franchetti: “Na infância, inutilmente gritavam os porcos/ A caminho do abate./ Muitas vezes esses gritos me fizeram perguntar/ Para quem, por quem, com que sentido”. Assim são os poetas.

Texto publicado no Estado de Minas, Caderno Pensar, 16 de julho 2011.