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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

LITERATURA | Criação

A proposta
Por aqui não acontece nada. E é por isso, por isso mesmo, está vendo?, que insisto em escrever. Há muita gente interessada em nada. Que nada aconteça. Que ninguém diga nada. Que todos fiquem em silêncio. Ou que todos digam futilidades. Dá no mesmo. Sempre se vai de nenhum lugar a lugar nenhum. Mas chega-se, assim, àquele lugar, àquele. Você sabe. Sabe bem onde fica. Aí. Esse lugar é político por excelência. Por isso mesmo censurado. Por isso mesmo intocável. Estremeceu, civilizadíssimo à mesa, diante daquela proposta. Enfiar o quê? É. Perigoso. Escandaloso e perigoso. Mais perigoso que escandaloso. Seria a revolução já. A frase, o berro, a frase berrante, tocava nessa imagem da intocabilidade. Dedo na toca. Enunciar o nada, provocar o desconhecido, tem dessas coisas. Desconcerta a ordem. Qual? A de cada um, obviamente. Não a ordem geral, a bandeira. A ordem interna. A que cada um internalizou. E daí a dificuldade de destruí-la. Sua destruição é a destruição da casa de cada um. E a casa, você sabe, é a vida de cada um. Destruir a casa é destruir a vida. A casa é a ética. Destruir a casa é destruir a ética de cada um. A casética, ou a éticasa, é um exterior no interior de cada um. Por isso mesmo, Sr., é preciso destruir a casa, a ética, a ordem, o interior para que algo, finalmente, possa acontecer. E o alvo, o ponto nevrálgico desse processo, é a ordem. A ordem que barra acontecimentos. A ordem que nada deixa acontecer. Mas o que acontecerá? Esse, aquele, estarrecimento diante da frase. Havia algo de coisal. Havia um sentimento de coisalidade. O mundo estava perto - no dedo. Agora tudo é discurso. Performance. Escrever é denunciar isso. O quê? O distanciamento do mundo. O desligamento, o desvanecimento disso. Estávamos ali - dentro do mundo. Tudo era muito sujo, vivo. Agora, nada.

domingo, 13 de dezembro de 2009

LITERATURA | Criação

Os inodoros
Entrou, como quem não queria nada, e nada disse. Tinham respostas para perguntas que faria. Sabia, e por isso mesmo se desviava deles. Não queria respostas. Perguntas? Já não tinha tanto interesse pela vida. Que ficassem com todas as respostas e perguntas em todas as suas variações. Tentava ver por cima deles, para além daqueles rostos previsíveis. Sentia alguma coisa, por certo, que passava por ali, mas não se restringia àquilo ali. Não estava exatamente nele o que sentia, e era um pouco da razão daquela chegada.
Súbito - segurando nas cadeiras, como quem deseja atravessar, seu jeito estranho de chegar. Mas estranhavam, estranhavam. Ele não era ele. Menos e mais, aquém e além. Estava fora de si mesmo. Mas era exatamente a resolução desse problema que interessava. Pensavam assim. Eis que a diferença irrompia nele como tal, uma desproporcionalidade. Caberia pensá-lo, talhá-lo, contê-lo. Novamente. Mais um dia. Tabalhar. Era uma questão de trabalho. Trabalhadores trabalhando seus semelhantes. Tinha um problema de funcionamento. Stress, stress.
Mas ele precisaria responder a impulsos lógicos, tudo é uma questão de lógica, lógica da vida. Na escala dos interesses, não da verdade. Ele, intransitivo, desinteressava-se pelo entorno. Ali estavam a sua frente. Nem amor nem ódio por ninguém. Respeito, óbvio, por qualquer coisa - deixa a coisa aí! Não viraria as costas. Sala pequena. Aproximava-se cada vez mais. E distanciava-se profundamente. Eram iguais, cópias. Eram terrivelmente iguais, como duas folhas de papel A4. Esforçava-se para sentir algum cheiro. Eram inodoros.
Mas eram educados, sem dúvida, por isso ansiavam por suas perguntas ou respostas. Como os feria aquela intransitividade! Ele não estaria ferido. Era o agressor - ele era o agressor. Nele, a humanidade se havia perdido naquele instante. Fera. Não ficariam ali, encurralados. Se tinham feito algo, se lhe tinham feito algo, tudo era justificável. Mas aquela situação era insustentável. Quem é você? Chega assim, de uma hora para outra, e nos olha como inimigos. Sim, eram inimigos. Um. Dois. Três. Todos - um reino inimigo. Não tinha nada mais a lhes dizer. Não eram dignos de ouvir.
- Então, vamos almoçar? -, disse o mais porco de todos.

LITERATURA | Criação

O retorno
O difícil era mesmo retornar. Ir não era tão fácil, mas até certo ponto era mais fácil. Mas retornar... difícil, como?. Havia muitos caminhos. Todos iguais e diferentes. Deveria escolher um deles, e caminhar. Estava a pé. Mas isso não significava nada. Se estivesse a cavalo, também sentiria a mesma dificuldade. Não sabia o que era andar a cavalo, mas sabia que também o cavalo faria o mesmo movimento de um lugar a outro. Qual? Teria que escolher entre muitos, não poderia escolher todos os caminhos. A pé, o fato de não dispor nem mesmo de um cavalo, situava a questão mais diante dele mesmo. Poderia andar menos ou andar mais. Poderia chegar facilmente aonde ia. Poderia se perder e não chegar a lugar nenhum. Era preciso escolher em face do próprio pé. O pé era, sem dúvida, um parâmetro fundamental nessa escolha. Estava a pé. Se tivesse pensado nisso realmente, não iria. Mas quando se quer ir, não se pensa tanto. Exatamente porque se sabe que não se vai. Exatamente porque se sabe que se fica no pensamento. Então, não pensara realmente no retorno. Tinha ido, e estava na hora de retornar. A pé. Ouvindo o próprio caminhar. Estaria sozinho por um longo tempo. Como isso lhe causava apreensão! Sozinho no caminho. Qualquer que fosse o caminho escolhido. Àquela hora, havia outras pessoas caminhando. Mas eram outras pessoas. Não o veriam. Também estariam sozinhas, ensimesmadas. Estaria sozinho. A pé, sempre se está sozinho. Inútil tentar se aproximar dos outros ao seu lado, também caminhando a pé. Estariam, a pé, encerrados numa distância intransponível. Ficaria em silêncio. O tempo todo caminhando em silêncio. Compenetrado em si mesmo. A apreensão se convertia em terror. Retornava ao mundo de onde tinha partido. Era melhor ficar ali. Parado. Olhando.

sábado, 12 de dezembro de 2009

CULTURA | Experiência de comunidade

ANELITO DE OLIVEIRA - A imagem no cabeçalho, de 2007, é de Sophie Calle, substituindo aquela de Maiakóvski, que ficou por um longo tempo contemplando, elegantemente, as coisas aqui. Tem sentido demais uma artista desconcertante entrando depois do poeta eternamente novo, incessante brilhar. Há aproximações possíveis - a interatividade, a alteridade, a espontaneidade etc -, mas não é isso que quero suscitar. A poética de Sophie Calle, elevando-se a partir de experiências de comunidade, colocou em relevo um referencial estranho à cena cultural brasileira neste momento. "Cuide de você", a exposição da artista que passou por São Paulo e Salvador, inscreve uma dúvida de ordem ontológica no rosto do sujeito, inquire-o na direção do ser. Solicitar a 107 mulheres uma abordagem da questão, tal como se processou o trabalho, é mais do que confessar que não se sabe o que é isso, o que é cuidar de si.
Mas o que é isso, afinal, isso de solicitar a outrem que diga aí, que pense sobre a questão que alguém, encerrando um relacionamento, enunciou? Pode ser um modo de sinalizar para uma compreensão de que o se é, o que se pensa que se é, é uma questão que diz respeito a outrem, é, portanto, uma questão ética por excelência. Mas, sendo assim, a ética não passa a constituir um entrave à afirmação mesma do sujeito, não passa a ser um parâmetro fadado a condenar o sujeito pela via do enquadramento na percepção do outro? Se a outrem cabe dizer o que eu sou, então não sou nem posso ser o que eu mesmo quero ser, não sou livre para fazer uma escolha fundamental, o que coloca esse trabalho da artista francesa na contramão da modernidade em termos ontológicos. Claro, nosso devir moderno sempre significou e ainda significa liberdade de poder ser, de ser tudo e nada, de não ser, também. Sophie Calle desvela uma espécie de horizonte intramoderno.
Por dentro, nas entranhas dos dias que temos vivenciado, no seio da experiência comum, na "comun-idade", não há uma identificação absoluta entre o que se diz e o que se é, mas um profundo distanciamento entre sujeito - o que enuncia em relação a um objeto - e ser - o que silencia em relação ao mundo. Assim se torna compreensível que um "Cuide de você" seja recebido com estranheza, como expressão sem significado suficiente, que pode ser decodificada a contento pela comunidade, por uma comunidade de mulheres, no caso. Desviar a questão de um sujeito e compartilhá-la com outrem, com o aval de uma compreensão aberta da arte, é atestar a necessidade de um enfrentamento verdadeiro de questões fundamentais que o próprio sujeito, imerso no cinismo cotidiano, já não consegue empreender. Só o ser, que porta a dimensão do cuidado, da "cura" (Heidegger), sabe o que é cuidar de si. Sophie Calle aguça esta compreensão.

sábado, 5 de dezembro de 2009

JORNALISMO | Micropolítica do afeto

ANELITO DE OLIVEIRA - Vejo que novembro já acabou e dezembro já está aí, derramando-se. Vai ficando cada vez mais difícil perceber a passagem do tempo. Parece que está tudo sempre igual, que todos os dias têm a mesma cara. Um fato apenas me provoca a pensar que não, que estes últimos sete dias são diferentes dos demais: a morte do jornalista, crítico literário e, antes de mais nada, poeta Alécio Cunha. Aconteceu por volta de meia-noite, sábado passado, em Belo Horizonte. Estava internado desde o início de outubro em função de um AVC, como comentei aqui em postagem anterior. Uma lástima!, e claro que é pouco dizer assim, soa como frase feita, uma terrível lástima!, pior ainda. O que dizer diante de uma morte tão prematura, aos 40 anos, sobretudo quando nos sabemos com o vício de considerar toda morte como fato antes do tempo? O que dizer para além do previsível? Não é fácil falar da morte, sobretudo quando se trata da morte de alguém que, na sua existência, revelou-se tão vivo, tão vivaz. Mas é preciso encontrar um jeito de falar - fiquei pensando estes dias - para intensificar a chama dessa vivacidade, para manter resistentemente acesa uma imagem.
Conheci Alécio Cunha através dos seus textos no jornal "Hoje em dia", onde atuou nos últimos 13 anos, por volta de 1996. Chamou-me a atenção a competência com que tratava informações relativas à poesia contemporânea, dos concretos para cá. Deve ter sido em 1997, setembro, nosso primeiro encontro pessoal, quando fui à redação daquele jornal divulgar o lançamento do primeiro número da revista "Orobó". Ao ser perguntado sobre mim - creio que pelo editor do caderno de cultura, Roberto Mendonça -, Alécio disse, naquele entusiasmo juvenil que tanto o distinguia: Anelito de Oliveira? Claro que conheço, do jornal "Não", lá da UFMG, dos textos no jornal "Estado de Minas", de amigos comuns etc. Atendeu-me com uma generosidade surpreendente, revelando uma consideração enorme por algo - minhas investidas artístico-culturais - que eu mesmo via a partir de um viés natural, sem ênfase, apenas como tentativas de fazer alguma coisa. Alécio revelava ali aquela que passou a ser, para mim, sua principal virtude profissional, aquilo que dizia que nele o jornalismo era, no fundo, uma questão de humanidade: o respeito pelo trabalho do outro.
Num período em que os media passaram por profundas transformações, de meados dos anos 1990 a esta primeira década dos anos 2000, o jornalista Alécio Cunha deu uma contribuição decisiva, na capital mineira, para a permanência da relação dos leitores com jornal impresso, deu estímulo novo a essa relação. Essa contribuição foi a inscrição de índices de personalidade, elementos de ordem ética e moral, na produção de notícias, de modo que o que Alécio reportava e escrevia vinha com suas digitais inconfundíveis, notícias com substância, sem o superficialismo noticioso que acabou por se rotinizar, e escritas com elegância, com um estilo próprio, informando e formando a um só tempo, ou pelo menos tentando formar. O “Hoje em dia” passou a ser, no âmbito do jornalismo cultural mineiro, uma referência de qualidade na cobertura de livros e eventos de literatura, tudo encontrando em Alécio Cunha uma recepção no mínimo sensível. A abordagem de Alécio – antes, no dia ou depois do fato literário se processar – tornou-se, pouco a pouco, um gesto sempre esperado por autores, editores, livreiros e leitores, uma espécie de carimbo de que algo – um livro, um lançamento, uma performance – realmente começava a existir.
Naturalmente, a atenção devotada por Alécio à literatura tinha a ver com o fato de que era poeta e leitor insaciável, mas tinha a ver, fundamentalmente, com uma compreensão crítica da sociedade contemporânea e da indústria cultural, do lugar que impulsionou a expansão do jornal e hoje autoriza sua própria estrangulação. O cuidado de Alécio Cunha com a literatura sempre me fez pensar - e agora ainda mais - que, para ele, a literatura era referência de um mundo outro ou, melhor, de um modo outro de estar no mundo, era algo de benjaminiano, aurático, viés que encontra ressonância em sua poesia inatualizante: “Lírica caduca”, “Mínima memória”. Na literatura, Alécio se relacionava, especialmente, com a poesia, abordando, noticiando, resenhando quase tudo que saía de poetas estreantes ou veteranos, relacionava-se, portanto, com a margem da literatura. A positividade com que enfocava o trabalho dos poetas era, sem dúvida, a alegoria de uma defesa da poesia contra a barbárie que, nestas últimas duas décadas, foi-se estabelecendo como princípio de sociabilidade no país. O poeta Alécio, demasiadamente humano, fez no seu jornalismo pontual aquilo que a maioria não consegue fazer na literatura, na universidade, na vida: uma cativante micropolítica do afeto.

domingo, 8 de novembro de 2009

LITERATURA | Criação

As maçãs
Suponhamos que havia muitos anos que esperavam por aquelas maçãs, diariamente reparando os caminhões passando carregados. Mestiços do Mucuri - nutrição, tanto quanto desnutrição, também é uma questão étnica. Ali estavam, pois, entre chorar e devorar - e, se chorassem, a polícia, as ongs, os políticos, podiam chegar. Toda uma geração, inúmeros, tornou-se imposssível discutir questões de direito.
Uns queriam caixas, e se lançavam de qualquer jeito, outros queriam apenas umas cinco unidades, mas também estavam afobados, queriam comer na hora, com as mãos sujas, lambendo os beiços. No fundo, havia um consenso em torno de uma espécie de significado do paraíso, o que era isso em termos estomacais. Antes era, e depois também seria, apenas a vontade, sempre em suspensão, de comer maçã - o inferno do desejo.
Estavam saboreando as maçãs, e gostariam muito, muito mesmo, que o motorista também participasse da ceia, enchesse a cara. Olhando nas ferragens, concluíam, pensando com ciência, que o motorista não se sentiria bem, ficaria com pena do dono da firma, sentimento de trabalhador, deixasse ele lá, pois, esmagado. Como esperaram por aquele milagre mediado por um desastre! Finalmente, Deus.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CULTURA | O desmoronamento do IMS

ANELITO DE OLIVEIRA - Como receber a notícia do fim das atividades do Instituto Moreira Salles (IMS) em Belo Horizonte, com o fechamento do seu elegante espaço em pleno centro da cidade, senão como um desastre cultural de proporções nacionais? E como acreditar, por outro lado, que as autoridades públicas municipais, estaduais e federais, bem como setores da iniciativa privada, tenham deixado, estejam deixando, tal fato acontecer?
Talvez isso – a permissão do desastre - diga muito sobre a permanência no país de um desinteresse das elites socioeconômicas pelo acesso, por parte das pessoas em geral, a bens culturais que conscientizam, humanizam e transformam modos de estar no mundo. Para quê, sobretudo, transformar pessoas, principalmente pobres? São mais úteis ao sistema, sem dúvida, do jeito que estão, sem saber sequer de onde vieram, o que as distinguem das coisas – enfim, são mais úteis sem passar efetivamente pela “perturbação” da cultura.
O IMS foi, ao longo dos últimos anos, não só uma referência cultural em meio à brutalidade e banalidade cotidiana de uma metrópole, mas uma referência de modo outro, inteligente, de lidar com a cultura, muito diverso daquele exibido historicamente pelos órgãos municipais e estaduais, viciados no “pão e circo”. O IMS sempre ostentou uma compreensão altamente generosa de público, rompendo com preconceitos históricos e disponibilizando, para as pessoas em geral, obras de arte contemporânea, gestos literários e musicais dos mais elevados.
Sob a sensível direção do poeta Antonio Fernando de Franceschi – um homem raríssimo, da estatura de alguns dos maiores que este país já produziu, um Mário de Andrade, um Antonio Candido -, o IMS vinha desempenhando um papel de agregador e formador de pessoas pela cultura, oportunizando um envolvimento sóbrio, pensado, com a arte. Suas ações o distinguiram, desde o início, de espaços culturais públicos, como os Centros Culturais BH e UFMG, bem como o “engessado”, restritivo, Palácio das Artes.
Em BH como em outras cidades do país, os espaços mantidos pelo IMS configuraram, de meados dos anos 90 para cá, um exemplo extraordinário, sem precedentes, de responsabilidade sociocultural por parte da iniciativa privada. Franceschi, como fiz questão de lhe dizer tantas vezes, foi nosso Ministro da Cultura ideal ao longo deste tempo. E se tudo parece estar desmoronando ante o olhar cínico dos Governos, da mídia e dos “homens cordiais”, convencionais, é porque este país é mesmo, como Bianchi nos provou, cronicamente inviável.

sábado, 31 de outubro de 2009

JORNALISMO | Incidentes de outubro

ANELITO DE OLIVEIRA - O mês de outubro começou e terminou com dois incidentes terríveis em Belo Horizonte, os quais, além de me chamar a atenção, acabaram por me tocar, chocar, entristecer, por razões humanas e culturais: o AVC sofrido pelo jornalista, crítico literário e poeta Alécio Cunha e a morte prematura do artista plástico Fernando Fiúza. São dois dos nomes mais expressivos do cenário cultural e jornalístico da capital mineira, com uma contribuição extraordinária, constante, há anos, e pelos quais sempre tive respeito e admiração. Não cheguei a conhecer Fiúza pessoalmente; talvez o tenha até avistado alguma vez - sua imagem na foto (no "Hoje em Dia" de ontem, diário onde Alécio construiu sua brilhante carreira de jornalista cultural) me parece familiar, correspondendo, alias, à sobriedade que sempre percebi no seu trabalho.
Alécio Cunha, por sua vez, sempre foi um entusiasta das ações culturais que encaminhei ao longo dos anos 90 em Belo Horizonte: o jornal "Não", a revista "Orobó", os livros da Orobó Edições, o Suplemento Literário de Minas Gerais; foi o primeiro a revelar um olhar pró-ativo, na imprensa belorizontina, sobre a minha ida para o Suplemento, atitude que se manteve ao longo dos quase cinco anos em que estive à frente da criatura de Rubião, mesmo nos momentos em que, no próprio “Hoje em Dia”, o poeta Marcelo Dolabela, movido por questões menores, pedia renitentemente ao governador a minha “cabeça”. Super-sociável, Alécio, no exercício do jornalismo, sempre esteve ao lado da generosidade, da solidariedade, configurando-se como um exemplo de dignidade profissional.
Sempre me vi como um amigo seu e sempre o tive como um amigo raro, um grande companheiro de geração, um dos poucos em que se encontram inteligência e sensibilidade sinceras. Quando lancei meu primeiro livro solo em 2000, o fracassado Lama, Alécio estampou notícia e resenha na capa do caderno de cultura do “Hoje em Dia”. Quando publicou seu primeiro livro em 1999, o surpreendente Lírica caduca, escrevi uma resenha no Segundo Caderno do jornal "Estado de Minas", acolhida por um outro escritor e jornalista mineiro admirável, Jorge Fernando dos Santos, que a estampou com o título de “O peso e a prisão em Lírica caduca”. Com o título original – “O peso e a prisão” -, segue aqui essa reflexão sobre Alécio poeta nascente, na esperança de tantos outros encontros, projetos, conversas pela vida.

O peso e a prisão

ANELITO DE OLIVEIRA - O primeiro livro de Alécio Cunha, Lírica caduca (Por Ora, 1999), encontra seu mérito, sobretudo, na coragem de um “eu” confessar seu fracasso, ainda que, talvez, contra sua própria vontade: “(não suporto)” , está escrito ali no encerramento de um poema que parece se empenhar justamente em descrever uma paisagem poética, um cenário de poesia . O encerramento se conecta imediatamente com o título do texto, que é “Anjo manco”, o impossibilitado de caminhar normalmente, aquele que, arrastando-se, não consegue ir muito longe, logo se cansa e para. Realmente – pensamos ao final da leitura – era preciso que um “eu” se anunciasse para que aquele título alcançasse uma maior coerência: a caminhada é insuportável porque falta segurança nas pernas. Contudo, se não estamos no chamado “mundo real” de que falamos comumente e sim numa “realidade de signos” (Haroldo de Campos), é válido perguntar pelo motivo dessa insegurança.
Por força do lugar geográfico que o homem habita, este lugar-Minas, e da atmosfera poética brasileira que o artista respira atualmente, o poema de Alécio Cunha é concentrado em si mesmo, não nomeia nada além de seu próprio corpo que, na verdade, não passa de uma sombra, a ilusão de um corpo, um mito apenas, logo: o autor apenas deseja nomear quando pensa estar nomeando. A insegurança do poeta, seu reconhecimento metonímico indireto, como “anjo manco”, desestabilizado, demonstra uma certa insatisfação com essa incapacidade do poema, estabelecida pelos seus censores disfarçados, de nomear algo mais que si mesmo, de sair de sua sombra. Alécio Cunha não concorda com esse veredicto, não suporta esse quadro supostamente exótico, quer alcançar o fora do poema, trazer esse fora para dentro, mas o poeta, sua máscara-mecanismo para realizar tal gesto, é manco, falta-lhe agilidade para dar o salto, falta-lhe aquela “rapidez” sustentada por Ítalo Calvino como uma das qualidades estéticas fundamentais para o próximo (este) milênio.
Desta visada, outra questão se apresenta, colocando-se mesmo como pano de fundo do mínimo drama do poeta: a tradição poética, que tem inegável presença no trabalho em questão, é um peso, mas o instante poético, a atual cena neoparnasiana que se verifica no Brasil, é uma prisão. Depreende-se um posicionamento ativo diante da tradição mais longínqua e mais recente em poemas como “Pós-Baudelaire”, “Nau Caetana” e, principalmente, “Lendo Drummond”, que tem a astúcia sempre desejável de articular texto e lugar: “exigir da pedra/nenhuma explicação/ pelos caminhos”. Dir-se-ia que o poeta tem consciência de que é preciso desdizer, romper com uma “lírica caduca”, bem como é preciso colocar algo no lugar, pois esse algo é que denuncia a presença de alguém por trás de uma linguagem. É preciso dizer, mas dizer o quê? De uma latente incerteza decorre uma frustração generalizada neste primeiro livro de Alécio Cunha, um constante “fracasso-êxito” (Sartre) que aponta para uma colocação do desatino da existência moderna antes das convenções morais pós-modernas.
Frustração encontra-se, por exemplo, no final do poema que dá título à pequena coletânea, “Lírica Caduca”, e em “Geográfica”. No primeiro: “há uma gota de sangue/em cada luar”; no começo e fim do segundo: “desesperar resposta/desesquecer o tapa/ (...) sumir do mapa”. Ambos estão longe de serem perfeitos do ponto de vista da construção, vão-se enfraquecendo lentamente como se quisessem desistir de sua própria realização, como se se realizassem a contragosto, um enfraquecimento que acaba por constituir o anteclímax da frustração final. No rastro dessa frustração é preciso ver, contudo, o traçamento de uma rápida cartografia da “agoridade”, do espaço-tempo que reúne o ontem e o hoje, passado e presente, Modernismo e Pós-vanguarda. Essa frustração é uma contribuição significativa do poeta Alécio Cunha, principalmente à medida que faz emergir Mário de Andrade (“Há uma gota de sangue em cada poema”) num ponto sanguíneo, o que parece estar dizendo, analogicamente, que o poeta só pode existir como tragédia, não?
Texto publicado no jornal Estado de Minas, Segundo Caderno, em 1999, aqui redigitado por Guilherme Fernando, menino nosso, que Alécio conheceu quando pequeno e sobre quem me perguntava duas semanas antes de adoecer, no mês de setembro último, quando nos reencontramos na redação do Hoje em Dia depois de quase cinco anos de distanciamento em função dos meus muitos deslocamentos.

JORNALISMO | 17 vezes ali havendo

ANELITO DE OLIVEIRA - De fato, chegou ao fim, há dias, o segundo movimento sob o signo do que estou entendendo por havência – e, desde então, contemplo o silêncio a distância de quem estranha. Estou reconhecendo, nesta última noite de outubro, que a 17a carta foi a última, deve ficar como a última, contrariando até a mim mesmo, que relutava que fosse a última: escrever é resistir a desistir, desejar o desejar. Mas continuar dizendo assim, tentando dizer – já que admito, de um certo horizonte, a possibilidade de nada efetivamente ter sido dito 17 vezes ali havendo -, seria ultrapassar o limite que, neste acontecimento escritural, interessa apenas forçar: além dali é surreal, ainda que ali mesmo o seja a seu tanto já também. O que há, uma havência, está no limite do que não há, da ausência. As cartas se destinaram a essa situação, a dar a ver uma cartografia do corresponder, a havência disso que se faz contra a solidão.

domingo, 25 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima sétima carta




devo parar de te escrever.
não porque você esteja suficientemente escrita, mas porque a vontade de escrever é só sua - e infinita: uma espécie de morte.
a escrita, lançada daqui, não te alcança.
no fundo, te perde no desejo mesmo de te alcançar
{você bosque demais.
pede notícias, exterioridades, significados -
sempre a ânsia de ter o mundo mais perto.
não há o que remeter para além deste -
o remetente.
a carta é o que não chega a ser -
e, na sua insuficiência,
arfando como um urso na neve,
é.




lembranças.




eu

sábado, 24 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima sexta carta





por si só, bastante como se apresenta, incessante movimento no mesmo lugar, indo, vindo, indo - mas não, falta, falto ali, devo faltar,
então, explicações, palavras contra o que está sendo, para desfazer o que quer ser, que ainda não chegou a - e a janela, aberta, fecha
-se, ali, lembra, não mais percebe o aberto, a eternidade se dando a ver, como no poema de rilke, sem a apreensão da finitude, puro animal vendo,
a lembrança, os comprometimentos, o trabalho o trabalho o tripalium!, o mundo como tortura, os outros como inferno - explicações,
o verdejante amanhecer dos singelos povoados, o amarelecer da tarde sobre o mar enquanto andamos -




sem palavras.





lembranças.





eu

LITERATURA | Criação

décima quinta carta


era para ter sido enviada de lá, com o que se passava [relevos, eucaliptos, casebres], à medida que, sem chegar a pensar [desamparo, operárias, imundície]. todavia, resistimos a nós mesmos, como se houvesse possibilidade de sair integralmente disso que sempre foi a condição intramundana [um clarão na merda], como se houvesse saída para fora quando tudo é absolutamente dentro [percepto]. pensamos, duvidamos, voltamos - com a letra no bolso.
lembranças.
eu

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima quarta carta



ouvindo nelson cavaquinho outro dia, depois de tanto tempo, aquele sol que não pode viver perto da lua, não é que não queira, é que não pode,
o que é o sol?,
o que é a lua? e,
finalmente,
o que é viver? - é no que penso agora. sempre o distanciamento, sempre a impossibilidade de coexistência, a tal ponto que vai ficando possível, como não?, falar em incompossibilidade de mundos, falar de gritantes contrariedades.
estava tão claro,
e como está escuro!,
tudo se mostrava como agora se esconde.
perto.



lembranças.



eu

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

décima terceira carta



por tantas vezes tem sido a primeira vez. penso, como não?, em zenão. você diz, quer dizer, que não, que haja progressão - de um a... devemos chegar a algum lugar, devemos aportar - ítaca!
pois é. somos o que aconteceu depois - o burguês, a burguesa, o trabalho, o dinheiro, o stress, o desencantamento, o fim.
a não progressão, o estado de somente estar, é um nunca chegar em casa para nunca estruturar sociedade nenhuma, para nunca chegar a um mundo onde até as tartarugas perdem a cabeça.



lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

décima segunda carta


digamos que, nesta tarde, alguém tivesse ido até o portão, pensando ter ouvido algo que nem mesmo bob, o pequeno cão adoentado, ouviu.
abriu, e ficou esperando que alguém se apresentasse. ficou ali, do lado de dentro, durante muito tempo, esperando. quem era, não se apresentou.
o que lhe restou foi apenas fechar o portão depois de tentar, insistentemente, ver quem é que estava ali, que visitante havia chegado sem avisar.
terá isso algum significado muito claro, tanto que enunciá-lo lhe parece redundante demais. digamos apenas que você tem estado no mundo, sem dúvida.



lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

décima primeira carta



você me pergunta pelas coisas. sempre o desejo de saber, como se eu soubesse algo sobre alguma coisa. você, certamente, sabe - e desejo que não me diga nada.
mas as coisas, não há dúvida, existem, dão-se a ver - e em certos momentos fica mesmo impossível não vê-las.
por exemplo, o telhado das casas do alto daquele mirante. parece outra cidade. quando tudo começou, não pensei que chegasse a tanto, que haveria um limite.
todavia, não estou bem certo se aquilo que vejo dali realmente existe, se chega a ser uma coisa ou é viagem minha. talvez seja.
quando penso nessa distorção entre o que vejo e o que sinto aqui, tendo a concluir que não devo atender a seu pedido de informação.
concluo.


lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

décima carta


sempre digo que nada deveríamos,
que deveríamos, alias, parar de dever, mas você continua comprando, comprando, essas sacolas de angústia de marca, tudo vai-se acumulando, acumulando, os comunicados ofensivos chegando na caixa de correios, credores, como lobos, uivando lá fora,
o ideal seria jogar fora, amontoar tudo na porta do inferno,
que você insiste em chamar belamente de shopping,
mas você se preocupa, no fim das contas, ainda se preocupa com a sustentabilidade ambiental, não quer produzir mais lixo, quer salvar o mundo, você, obama e marina, apesar do capitalismo, com a colaboração dos santos capitalistas,
uma coisa não tem nada a ver com a outra,
tem?



lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

nona carta




você ainda acredita na verdade, chora quando alguém lhe diz algo comovente, por exemplo, que margarida, a amiga, está morrendo,
mesmo que seja um vegetal, mesmo que quem lhe diz isso esteja se referindo a uma preocupação com o jardim,
tanto faz,
a verdade, para você, é isso,
alguém dizendo diferentemente alguma coisa, é a verdade para você, segundo o que você concebe como verdade,
e é assim mesmo que você vai-se revelando a própria verdade,
você é a verdade,
quando penso em você,
e como tenho pensado!,
penso exatamente nisso: alguém chorando desconsoladamente pelo mundo




lembranças.




eu

sábado, 10 de outubro de 2009

CULTURA | Inclusão social pela poesia

ANELITO DE OLIVEIRA - A 23a edição do Salão Nacional de Poesia Psiu Poético está acontecendo em Montes Claros desde o dia 04 de outubro, com a promessa de chegar até a próxima semana, dia 13, 14. Há de chegar lá, como todo ano, mas é essa disposição de efetivar uma travessia que me parece demarcar a ambição desse evento - e só aquilo que é ambicioso, independente de onde ocorra, deve nos interessar na cultura, sinal de força humana. Nessa sua extensão, o Psiu revela a intensidade com que lida com seu objeto, que apenas aparentemente é a poesia: no fundo, seu objeto é a inclusão social pela poesia.
Na sua longa e admirável trajetória - a maioria dos projetos culturais morre nas primeiras edições -, o Psiu Poético recebeu e continua recebendo nomes proeminentes da cultura literária e musical brasileiras: Waly Salomão, Arnaldo Antunes, Jorge Mautner, Thiago de Mello, Adélia Prado, Alice Ruiz, entre outros. A participação, ultimamente, do inquieto poeta e performer Fernando Aguiar, que mantém o fervor da invenção em Portugal, acena para uma relevância que o evento tem ganhado para além do país. A tendência é, sem dúvida, essa relevância crescer como exemplo de resistência a um mundo cada vez mais contrário à poesia, mais fútil.
Todavia, o que distingue decisivamente o Psiu é o arrastão que consegue promover a cada ano de tantos poetas e curtidores de poesia, gente que emerge das margens de Montes Claros, cujo centro é historicamente sem graça, áspero demais. Gente que se encontra com outras gentes, que se deslocam de vários lugares igualmente marginais do país, e aí se configura o grande MSP - Movimento dos Sem Poesia - nos dias de Psiu, suplicando atenção - psiu! - para sua existência no campo social. Isso é massa, como dizíamos no momento em que o evento surgiu, naqueles ternos anos finais da década de 80.
Depois de tantos anos, não há como não reconhecer uma comunidade Psiu, que tem como referência de sociabilidade a poesia. Não se trata de uma Geração Psiu, de um grupo organizado apenas em torno de valores estéticos - e isso é positivo. Psiu é mais um caso de sociedade do que de literatura, ou mesmo de poesia enquanto fazer, enquanto atividade de artífices. Tudo, esteticamente proposto, é permitido no evento porque o que interessa é a presença de pessoas num encontro com o encantamento, com a dimensão negada pelo pragmatismo cotidiano. O Psiu Poético é a ação cultural mais significativa, mais original, da Prefeitura de Montes Claros.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

LITERATURA | Criação

oitava carta


fico pensando no que significa assumir a prosa, já que é imprescindível para chegar até aí, no mundo, onde você escuta rádio aeme e lava roupa -
é começar a abordar isso, como polícia, que é como sempre se aborda, baculejos.
é difícil aceitar um conhecimento por invasão, tomando o poder no espaço corpóreo, tocando em tudo como se apenas coisas, órgãos, fossem -
mas, sim, é assim que tudo fica mais claro, que a existência se torna algo absolutamente claro. mas também absurdamente simplista.
não, assumir a prosa pode ir além do mundo onde a marquesa saiu a tantas horas, que tanto incomodava valéry, para atingir a possibilidade da chegada - inesperado sentido -
na noite, sem conhecimento, sem querer dizer nada que você compreenda e responda representando - que o escuro nos esconda.


lembranças.



eu

LITERATURA | Criação

sétima carta
não é que queiramos, mas a descontinuidade nos constitui. se eu disser o seu nome aqui, pensarão que diz respeito apenas a você. não. claro que não. a descontinuidade é algo ambivalente, ou mesmo polivalente, vale-age pluralmente. você não ia, mas dizia que ia. eu ia, pelo menos desta vez. fui. lá estava o lugar - deserto, à espera de algum sentido, ou de um outro sentido, certamente, sempre há sentido. sabia que a chuva a impediria de chegar lá. a chuva desmanchando o cabelo. essas coisas prosaicas: chuva, cabelo, noite. mas o sentido de existir nunca passou de prosaicos desmanchamentos: alguém andando na chuva - desmanchando-se. o contrário disso é alguém olhando a chuva de dentro de casa. tudo tem nome, e diz tão pouco. não vale a pena dizer nada sobre isso. claro, não estou dizendo. espero que não diga nada.
lembranças.
eu

LITERATURA | Criação

sexta carta


recebi a notícia,
e não tenho resposta nenhuma a dar - e também não hei de comprar alguma.
talvez seja interessante que não haja resposta, que sua notícia, afirmativa, fique no ar das perguntas.
você diz que - afinal,
aconteceu. sim, os acontecimentos daí,
os daqui, os de longe, todos são interessantes, mui interessantes,
não é?


lembranças.


eu

LITERATURA | Criação

quinta carta


esse jeito de viver é seu,
o de morrer será de outra gente, daqueles que não passam horas pensando nas possibilidades impossíveis.
esse mal-estar na possibilidade -
as mesmas palavras para as mesmas coisas para um mesmo mundo, tudo funcionando tão bem como se fosse feito para funcionar.
de fato (sempre, quando não há fato nenhum, nem mesmo interpretação),
a intransitividade como expressão do que não cabe na ordem estabelecida,
e é, portanto,
degredo, silêncio,
segredo.


lembranças.


eu

LITERATURA | Criação

quarta carta


assim, no meio do que não foi, nasce alguma coisa
ainda, a vida.
impossível e necessário começar a entender, mesmo se tudo está ausente.
o que havia lá?
vinha correndo pela rua, como se estivesse a pé.
queria chegar antes de alguma coisa.
as palavras saltavam de suas mãos.
quem era você?


lembranças.


eu

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

CULTURA | O que dizer agora?

ANELITO DE OLIVEIRA - A poesia e a política sempre foram, para mim, duas possibilidades extremas de ação, uma conectada ao "eu" e outra ao "mundo". Nenhuma das duas jamais chegou a ser um absoluto, algo bastante, são dimensões relativas. Ao me ater ao eu nunca quis falar de algo apenas interior, tampouco quis falar de algo apenas exterior ao me ater ao mundo. Daí que, embora situadas nos extremos da havência, no rastro do "Il y a" lévinasiano: da situação de estar havendo no mundo, poesia e política nunca foram incompossíveis - para mim, somente.
A questão é que a ação poética e a ação política nunca foram, também, apenas o que eram ou são ainda para mim, algo com sentido suficiente em mim mesmo. Quando me encontro com uma e outra possibilidades de dizer-fazer, um jogo já está definido em termos de verdade (poesia) e mentira (política), poesia e política já estavam definidas como extremidades incompossíveis. Poesia e política não eram apenas, feliz e infelizmente, o que eu sentia ou o que eu pensava, eram menos, eram mais. Poderia renunciar às duas, quimeras dos antigos, leviataneidades - sim, eu poderia.
Mas se a poesia fosse apenas o que eu sentia, seria algo circunscrito a uma pessoa, a um ego. E se a política fosse apenas o que eu pensava, seria algo igualmente circunscrito a uma pessoa, a um ego, também. Nego. Nego tanto que cheguei a tentar dizer esta negação tantas vezes, como num poema chamado "eu", aparecido no Suplemento Literário de Minas Gerais de junho de 99: "sei que digo, e o que digo sou eu/ para além do nome". Há o outro na poesia, não como objeto, mas, sobretudo, como sujeito, ou, no limite, como o "subjetile" de Artaud tensionado por Derrida, um terceiro.
É possível banir o outro, e nesse banimento - tão constante na poesia hegemônica no país hoje - revela-se a produtividade de a política não ser o que eu pensava, ou ainda pense ser. O outro é banido por um excesso de racionalização, que culmina sempre em tirania da razão, numa anulação da política, portanto. A política é também o que eu sinto, assim como a poesia é também o que eu penso - também, não só, porque os outros contam. A bem do outro, é preciso sentir e pensar com agudeza, distinguindo poesia de poesia em poetas, e política de política em políticos. Lula chorando no Rio, o Psiu Poético berrando no sertão.

domingo, 27 de setembro de 2009

JORNALISMO | Na cabeça do mal

ANELITO DE OLIVEIRA - Certo, um pouco de realidade para emocionar realistas: o atirador de elite, posicionado a 40 metros de distância, acerta bem na cabeça de Sérgio, que, com uma granada na mão, ameaçava matar mais que uma refém: ameaçava matar o bem segundo os benditos.
O bem mata o que os benditos definem como mal e não é crime nenhum, não é nada de mal - todos batem palma porque o tiro foi certeiro, porque o mal foi decididamente abatido e impedido de proliferar no mundo, que é o mundo do bem, dos que, tão bons, ainda tentam salvar o mau, levando-o a um pronto socorro.
Não, o mau não deve morrer, mesmo quando ferido de morte, o mau, o bandido, o sequestrador, o terrorista, deve continuar vivo para que possa continuar representando a imagem do mal e para que, numa primavera no bairro de Noel, na Vila Isabel, possa render "glamour" para o povo do bem, para que esse povo mostre ao mundo o quanto é do bem.
Sérgio, que é um monstro segundo o ponto de vista dos benditos, certamente deve ter pai, mãe, irmão - e seria interessante se a grande imprensa, dirigida pelo povo do bem, mostrasse o que eles pensam sobre a competente ação do atirador de elite. Mas, claro, a grande imprensa é inimiga do mal, é uma bandeira da ética, e entende que o mal, além de tudo, é negro.

LITERATURA | Criação

terceira carta


tanto tempo aqui, (e embora não pareça),
longe daqui, disso que está circunscrito por um nome, mas aqui mesmo - a cidade é aqui,
e vocês no mundo, aí,
onde continua sendo o mundo, fora do que se é, em torno do corpo, com palavras, com revólveres, dentro de casas apartamentos fábricas bares praças bancos ruas cinemas matagais -
todas as ilhas, ilhas,
e seria preciso alcançá-los, sempre foi e ainda é, continua sendo, por isso a narrativa, por isso a ânsia de dizer, mas antes é preciso chegar em casa, mas onde é isso? -
chegar em casa.
onde? onde?
depois da guerra, a guerra continua por não haver um
depois da guerra.
então,
o silêncio -
digno, vivo, infeliz.


lembranças.


eu

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

LITERATURA | Criação

segunda carta

exato.
era sobre isso que tinha que dizer alguma coisa. mesmo sem ninguém para ouvir nada ali por perto. chegaria alguém, depois.
ter que dizer chamaria alguém, convidaria alguém a estar ali, em face da possibilidade de um encontro.
não interessa muito o que seria dito, que acaba sempre sendo impossível de se dizer totalmente. como seria dito, sim, interessa.
seria dito em silêncio, naturalmente, a sentir. diria respeito a uma distância intransponivel entre um lado e outro.
os dois, lados!
é possível.

lembranças.

eu

domingo, 13 de setembro de 2009

LITERATURA | Criação

primeira carta

os correios estavam fechados naquela tarde. ou estavam fechados naquela manhã. ainda era antes de 12 horas no país, com o mesmo sol decidido.
alguém deveria começar uma carta assim, tocando na dificuldade real de se escrever uma carta, cartas, atualmente.
todos veem as portas de aço dos correios - é real. fechadas - mais real ainda.
o real é assim: coisa de aço, fechamento.
e alguém lá fora, sem direito a entrar, esbarrado na impossibilidade, com um envelope na mão -
irreal?

lembranças.

eu

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

JORNALISMO | A havência do nada

ANELITO DE OLIVEIRA - Chega ao fim, neste exato momento, a série "Diálogos para um monólogo", que comecei a publicar dia 22 de agosto, dando vazão a pensamentos soltos, sem nenhuma preocupação maior que a de soltar o próprio pensamento preso que tem sido uma marca do sujeito dos dias que vivenciamos - contra a vontade até dos indivíduos que somos.
Esses microtextos não têm a pretensão a ser nada previsto na dinâmica das formas literárias: nem poesia, nem conto, nem teatro, teorema, fragmento filosófico etc etc. Alias, sim, têm uma grande pretensão: a ser nada. E tudo que posso dizer não é nada de novo desde Mallarmé: como é difícil produzir uma forma-nada, absolutamente fora de qualquer sentido de forma!
De todo modo, é isso que entendemos, no fundo do desentendimento que nos habita e nos instiga e nos move e nos indefine no mundo das definições, por escrever: isso que resiste ao nome, que luta contra o nome em nome de um permanente vir-a-ser na linguagem. Que esses "Diálogos" sejam uma cena de escrever, um movimento no sentido de inscrever a havência, o alarido do nada havendo, já é algo.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 39

- quem está aí?
- quem está aí.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 38

- parece que o mundo não tem havido.
- certamente, não. tem apenas sido.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 37

- o que fazer com as palavras?
- escondê-las. escondê-las.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 36

- alguma lembrança?
- de uma lembrança.
- do passado?
- não, do presente.
- o que constitui?
- uma relação, elo.
- tem sentido?
- fundamentalmente.
- o que há no fundo?
- uma havência.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 35

- a natureza da obra é infinita?
- a infinitude da obra é natural.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 34

- talvez não tenhamos entendido.
- outra vez o entendimento?!
- quantas vezes for necessário.
- mas não é uma necessidade vã?
- o que nisso tudo não é vão aqui?
- sem dúvida, nada se contém.
- talvez não tenhamos entendido.
- pretende explicar em definitivo?
- mas não sou eu que devo fazê-lo.
- quem, então, explicará? clarice?
- é uma possibilidade. ou ludwig.
- mas ambos estão ausentes aqui!
- talvez não tenhamos entendido.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 33

- esta mancha.
- onde?
- no seu rosto.
- ...
- sangue?
- existência.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 32

- o que deliciavam lá?
- algo parecido com amor.
- qual era a cor, suave?
- grave, como um tecido.
- muita gente por perto?
- sim, não, uns, o povo.
- ali na frente, olhando?
- ali, bem ali, oprimido.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 31

- sinto muito.
- sinto pouco.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 30

- sem saída?
- opaco.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 29

- a janela está aberta, vê.
- e se estivesse fechada?

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 28

- acho que não vale a pena.
- mas você não tem certeza?
- tenho a certeza minha.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 27

- estranho!
- nem tanto.
- como entender?
- difícil.
- todos viram?
- sim, sim.
- o que disseram?
- nada.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 26

- o que olhavam?
- não consegui ver.
- estavam perto?
- quase dentro.
- então, eram eles!

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 25

- não é uma contradição?
- de fato, ainda não sei.
- parece-me uma contradição.
- em que termos? como?
- nos termos de um processo.
- no fundo, há só um processo.
- aparentemente, sim, mas...
- deveria ser diferente, ser...
- sim, deveria ser algo seu.
- mas onde cabe a possessão?
- difícil perceber, decerto.
- se ninguém quer assumir.
- mas, uma contradição, não?

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 20

- teve ouro?
- não.
- teve gado?
- também não.
- teve fazenda?
- claro que não.
- funcionário público?
- parece.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 19

- lembra?
- certamente.
- esqueça.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 18

- outrora voltava para casa.
- o que aconteceu?
- difícil saber.
- uma mudança?
- talvez.
- de quê?
- de mundo.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 17

- a noite acontece depois do dia.
- é mesmo.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 16

- o que fazemos em nós mesmos?
- esquecimento.
- do que somos?
- do que já fomos.
- essencialmente, heidegger etc?
- sem pensamento.
- o que fomos?
- nós mesmos.
- o que somos?
- indiferença.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 15

- o que se perde?
- onde?
- na vida.
- o viver.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 14

- uma certeza.
- a solidão.
- outra certeza.
- a solidão.
- a única certeza!
- a solidão.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo – 13

- ainda não entendi certas coisas.
- eu também não.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 12

- há o covarde.
- por certo.
- como reconhecê-lo?
- de perto.
- como é?
- nojento.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 11


- o dia começou com o sumiço do óculo.
- onde estava?
- na sensação de incompletude.
- como era?
- a verdade.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 10

- há o incompreensível.
- onde?
- no incompreensível.
- na palavra.
- não, na ausência.
- o que é?
- o próprio não.
- em face de?
- não.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 9



- ninguém sonha.
- todos dormem.
- como?
- na suspensão.
- de si?
- do mundo.
- como entender?
- sonhando.

LITERATURA | Criação

Diálogos para um monólogo - 8




- o que esperava?
- o inesperado.
- como resposta?
- como pergunta.
- como distinguir?
- pela vontade.
- de quê?
- de justiça.
- o esperado é injusto?
- a resposta.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação





Diálogos para um monólogo – 7



- algum desejo de mentir?
- não.

LITERATURA | Criação






Diálogos para um monólogo – 6



- vai dormir?
- parece.
- até que horas?
- até o fim.
- do sono?
- do pesadelo.
- proust?

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 5


- aconteceu alguma coisa ontem?
- não.
- alguma previsão para hoje?
- não.
- a vida continuará?
- sim.
- do mesmo jeito?
- sim.
- bom dia.

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 4




- o que é uma pessoa?
- a outra de.
- de quem?
- de si mesma.
- um disfarce?
- não. menos. mais.
- então?
- o disfarçável.

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 3



- alguém que tenha dito a verdade?
- nina simone.
- o que houve?
- o insuportável.
- estamos condenados?
- sem dúvida.

domingo, 23 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo – 2



- o que pensa quando não está pensando?
- que é preciso não pensar.
- é possível?
- é impossível.
- como, então?, não pensar.
- fazendo.
- o quê?
- nada.

sábado, 22 de agosto de 2009

LITERATURA | Criação




Diálogos para um monólogo - 1


- alguma dificuldade na vida?
- todas.
- é o mesmo que nenhuma. a maior.
- o tempo.
- qual?
- sempre passando, acabando, escapando.
- resolva. fácil.
- como?
- morrendo.
- em que sentido?
- todos.

sábado, 8 de agosto de 2009

LITERATURA | Isso, a poesia, um poeta

No desespero para ganhar ilusoriamente a vida, os textos vão ficando pelos cantos, sempre “para depois”, para um momento que nunca chega, amarelando. Na maioria das vezes, pela dificuldade de publicação em papel – especialmente, em papéis legitimados como mais valiosos na cultura ocidental, que detêm mais prestígio: jornal, revista, livro. Com a internet – mais ainda, com a possibilidade de ter um espaço mais ou menos personalizado aqui –, é possível dar visibilidade a coisas que, por tantos motivos, não foram nem têm sido publicadas em papel. Não é, naturalmente, a mesma visibilidade. Meios diferentes, receptores idem.
O que me interessa mais aqui é a possibilidade de compartilhar tantos escritos, de ontem e de hoje, que nunca quis nem quero que sejam apenas do meu conhecimento, que existam apenas para mim. Nunca escrevi nem escrevo apenas para mim, o que não quer dizer que escreva, como tantos, apenas para outrem: escrevo para a relação, na relação, relacionalmente, digamos. Daí uma dificuldade histórica de publicar: isso não agrada ao leitor, segundo os donos dos “media”, que é sempre o leitor que esses donos querem formatar, ideal, bestial. Escrevo, sem dúvida, contra esse leitor, na contramão do que o define.
Há 18 anos, no terrível 1991, escrevi um texto sobre o primeiro livro daquele que reconheço como um dos agentes culturais mais significativos dos anos 80, com uma atuação intensa em Minas Gerais até meados dos anos 90: José Edward Vieira Lima.
A Pátria que te pariu, título desse livro, era a exata medida de uma consciência crítica pegando fogo. O livro vinha na sequência de um trabalho de pesquisa extraordinário sobre o músico do sertão norte-mineiro Zé Coco do Riachão, que resultou no livro Artesão de sons, uma contribuição das mais relevantes para a compreensão da cultura popular brasileira. O livro de Edward foi fundamental para um reconhecimento internacional de Zé Coco.
Conheci Edward pessoalmente em 1990, numa mesa-redonda no Salão Nacional de Poesia Psiu Poético, evento que acontece há mais de duas décadas em Montes Claros graças ao incansável Aroldo Pereira. Já tinha lido
A pátria que te pariu e, no calor de uma hora contextual bastante complicada, acabei fazendo um apontamento apressado, genérico e negativo sobre o livro. Era um apontamento apenas sobre a “cara” do livro, não sobre o autor – e tantos não entenderam nada ali, queriam “sangue”, o país “sangrava” parindo esta ideia peemedebista, petista e “inclâmica” (dos inclames, Indivíduos de Classe Média, para lembrar o inventor Sebastião Nunes) de democracia.
Em 1991, logo que aportei em Belo Horizonte, entrei em contato com José Edward, o que, para alguém na fúria dos vinte anos, levando a poesia mais a sério que a própria vida – era o meu caso –, tinha um sentido de prova de respeito. O poeta, ativista cultural, jornalista e produtor musical – na época, estava à frente, ao lado da publicitária e professora Valéria Raimundo, da empresa “Arte & Fato” e produzia, entre outros, Markú Ribas – recebeu-me no seu escritório na Av. João Pinheiro com a generosidade dos velhos combatentes, compreendendo e estimulando meus arroubos da juventude.
Conversamos bastante sobre poesia, crítica, vanguarda, música, cultura, política etc etc tomando chope no Pelicano, ali no Malleta. Sobre a crítica, Edward me falava que havia uma lacuna a ser preenchida nos jornais em Belo Horizonte, que ninguém estava exercendo a crítica literária, e que via em mim todas as condições para essa tarefa. Ele mesmo se encarregou de fazer a “ponte” com o “Estado de Minas”. Deu certo. Depois de algumas contribuições ao “grande jornal dos mineiros”, escrevendo sobre autores como Bioy Casares e Dylan Thomas, propus ao editor da página “Autores e livros”, o escritor e jornalista Jorge Fernando dos Santos – que sempre acolhia minhas resenhas com grande entusiasmo -, a publicação de uma série de textos sobre poetas mineiros em atividade.
O primeiro nome que me veio à cabeça foi José Edward Vieira Lima, não por gratidão amiga, mas em função do problema que
A pátria que te pariu! trazia de volta: o engajamento político-social da palavra poética. Levei o texto ao editor, que o leu e logo passou às mãos do então editor geral, comunicando a este o meu projeto da série de textos. Depois de uma leitura diagonal, daquelas que possível fazer em Redação, o editor disse, educadamente, que era interessante (era a época desse adjetivo, talvez um índice do que chamo de desvanecimento da crítica literária nos dias que correm), mas que não tinham espaço para aquilo.
Saí, com aquela desilusão comum a escritores nascentes, sem saber como fazer para que aquele texto ali, escrito nas laudas timbradas do “Estado de Minas”, que eu carregaria intacto comigo pela vida afora, chegasse ao conhecimento de possíveis interessados, especialmente o autor criticado. Além do interessante, outra coisa me marcou, até mais, na fala do editor geral do Segundo Caderno: tire isso do texto – ele sequer pronunciava as palavras -, não pode. “Isso” era um dos versos do livro que eu citava: “q merda cagada não volta ao cu”. Terá sido isso a gota d´água do processo?
Longos anos depois, já em 2008, voltei a enviar um outro texto sobre o livro de José Edward – o mesmo José Edward Vieira Lima de 1991, agora com o nome de poeta abreviado – ao jornal “Estado de Minas”, agora a propósito da segunda edição, modificada, com novos poemas e o título apenas de
Pátria que pariu! e outros poemas, edição da Autêntica. Não citei o verso “constrangedor”. Saiu no Caderno Pensar. E fiquei, fico, pensando que o poeta deve ter pensado que eu levei 17 anos para dizer algo sobre seu livro!
Aqui, reabrindo a barraca depois de mais de um mês de distância (falarei a respeito logo mais), como prova de sincera consideração, vão o inédito de 18 anos (tal e qual, apenas com o acréscimo de um título e algumas adequações gramaticais) e o texto que saiu ano passado, escritos de dois momentos diferentes numa mesma baderna chamada nação, dois momentos de um diálogo com um poeta e sua poesia insubordinada.



Acerto de contas


Parece tratar-se de uma tradição no campo da literatura: poetas e escritores sempre se obrigam a fazer uma espécie de “acerto de contas” com eles mesmos, na maioria das vezes. Ferreira Gullar é um dos que já admitiram de viva voz o cumprimento de tal ritual. Foi ao escrever seus ditos “poemas portugueses”, incluídos em seu livro A luta corporal. Usando processo de metrificação, afirmou Gullar um tempo, após a publicação do referido livro, ter apenas acertado contas com a poesia tradicional. Um outro exemplo, até certo ponto, pode ser extraído do poeta Carlos Nejar, que no momento, depois de tanto palmilhar a estrada literária, surge com um livro de sonetos intitulado Amar, a mais alta constelação – parece que quis acertar contas com a forma.
Pode ter sido isto, essa espécie de sentimento de indignação por não ter conseguido levar adiante um certo projeto no tempo de sua concepção, que conduziu José Edward Vieira Lima à publicação de A pátria que te pariu em 1990. Trata-se do segundo livro (o primeiro no gênero poesia) de um poeta nascido em 1965, na cidade de Brasília de Minas (Norte de Minas), que passou boa parte de sua vida envolvido com movimentos de cunho cultural. Militou principalmente em cidades próximas à de sua origem, como São Francisco e Montes Claros. Nesse meio tempo, entre outras coisas, fundou entidades culturais e se dedicou a escrever crônicas para alguns jornais.
A consideração “teórica” de que todo título é um resumo metalinguístico do que o autor tem a dizer em sua obra é de suma importância em se tratando de A pátria que te pariu. Não é necessário muito esforço para se chegar à conclusão de que se trata de uma arte literária engajada que está se aproximando – e, para o leitor atento, este anúncio na capa pode facilitar o caminho para o entendimento da proposta do poeta: “prefácio de Fausto Wolff”. Trata-se, realmente, de um livro de poemas que vem à tona – a multidão impedida de passar por arames farpados na foto da capa – para preencher uma lacuna que surge já no início da carreira do poeta, um grito que o estava incomodando – a comprovação que o leitor terá.
Na verdade, o primeiro livro de poemas de José Edward é um fruto retardatário quando se trata de levar em consideração seu todo e, principalmente, a proposta anárquica que fundamentalmente o orienta – digamos, a raiz da fala do poeta que nele está contida. Isto muito embora se saiba nos dias de hoje que “a pátria que nos pariu”, a partícula essencial da poesia de José Edward, continua sobrevivendo/sofrendo sob os problemas ali postos em forma de motivos poéticos: falta de educação, falta de pão e outras faltas que ocasionam a miséria do povo. Por este aspecto, indiscutivelmente A pátria que te pariu é um livro que caberia bem no ambiente político-literário da década de 70, quando, aliás, muitos poemas parecem ter sido escritos.
Incluídos em duas subdivisões denominadas “margens pérfidas” e “margens plácidas”, respectivamente, os poemas “guerreiros” de José Edward – que não compreendem todo o teor do livro – trazem consigo a mesma despreocupação formal e conteudística daqueles que vieram à tona no momento ditatorial brasileiro. O objetivo do poeta é um só: reclamar através de uma poesia de cunho panfletário. O poema “O salário não compensa” enfatiza: “como se come aqui/ é que não se sabe/ como esse crime se dá/ é que não se pune”. O poema “Olhos da cara” conclui: “A dívida que teremos (?) de pagar/ com a miséria e a dor deste povo/ é o nó-górdio da pátria latina/ e isso é uma coisa cristalina e amara:/ nos tem custado os olhos da cara!”. Outros poemas ainda nessa “face” (“A puta quetipa” e “Vitórias de pirro” como exemplos) ironizam a pátria que "te" pariu com a utilização de personagens de sua política da época de sua composição, como os ex-presidentes João Figueiredo e José Sarney. A soma de tudo, em última análise, constitui o sentido medíocre da obra para o tempo de sua publicação, de que o poeta parece tentar se livrar ao se desdobrar em outras “faces” poéticas – o que pode ser visto como a retomada de um estilo mais sério.
Faz-se necessário um retorno às primeiras páginas de A pátria que te pariu para o entendimento de que o propósito literário de José Edward muda em virtude do tempo. O poeta se liberta, pelo visto, da utopia revolucionária que envolvia os poetas da chamada “geração mimeógrafo de 70” e sua poesia vai trilhar um novo caminho: o da metalinguagem. Começa então a exposição do seu processo de composição do poema, o qual é sintetizado neste quase-prefácio: “quando paro o poema do verbo parir eu sofro do verbo sofrer porque todo poema nasce de um parto do verbo par (t) ir e qual parto do verbo parir parar ou partir não é doloroso do verbo doer?! Mas quando transo o poema do verbo transar também sinto prazer do verbo pra ser pois todo poema é precedido de orgasmos & mais orgasmos do verbo gozar e sucedido de vibrações & mais vibrações do verbo vibrar”. Tal esclarecimento é traduzido nas demais “faces” do livro de forma ousada, através da qual até mesmo a impressão de lábios com batom sobre a folha passa a caracterizar um poema (“Gravidez psicológica”, seu título). Com esta reviravolta – pode-se considerar –, a obra ganha seu espaço/sentido no ambiente literário atual.
Consciente do seu ofício e com o sentido engajado no seu tempo, José Edward vai se impondo o desafio de explorar as possibilidades linguísticas como que tomado pela necessidade de constituição do poema novo. Desta forma, o longo discurso que caracteriza o lado “guerreiro” do livro passa a ser submetido a um processo de condensação, o que acaba fazendo com que o poeta lance mão de outro recurso para sua expressão poética: o visual. Mas mesmo com um ideal diferente, os poemas contidos no livro, em sua maioria, ocupam-se de denunciar os problemas/personagens famosos da pátria que "te" pariu, como é o caso do hai-kai denominado “Renúncia da palavra”, em que se lê: “Se Jânio/ fi-lo porque qui-lo/ eu falo porque calo”. O poeta conserva uma mesma ironia e um olhar político-crítico em seus poemas que cheiram a um Oswald de Andrade, como em “Memória 64”, em que se lê: “Pobres revolucionários:/ além de subversivos/ eram subnutridos também”. Uma ironia às vezes cortante, como no poema “Aos q ficam”, em que se lê: “q merda cagada/ não volta ao cu”.
A “face” metalinguística de A pátria que te pariu pode ser sintetizada, sobretudo, com o poema “A mística morte em mi maior e em mim menor da meta linguística”. Trata-se de um poema que ocasiona a constatação das diversas tendências poéticas de José Edward, a partir do qual é possível vê-lo como um poeta ainda em fase de formação. Surgem ali a tendência para uma poesia crítico-panfletária, a tendência para uma poesia visual, a tendência para uma poesia marginal e, acima de tudo, a tendência para uma poesia metalinguística. Desfilam pela “Mística morte...” personagens literários famosos, como Augusto de Campos, Guimarães Rosa, Mallarmé, Sousândrade, Mário de Andrade, Baudelaire, Maiakóvski, entre outros. Também circulam ali personagens do “pensamento universal”, como Marx, Maquiavel, Leonardo da Vinci e Cia. Por fim, o poema não constitui a revelação de um dom poético, mas sim um projeto que deve nortear a poesia de José Edward a partir do próximo livro.



A nódoa no brim


Entre as importantes iniciativas editoriais do ano passado em Minas, destaca-se a publicação de Pátria que pariu! e outros poemas, de José Edward, pela Autêntica. Projeto gráfico inovador – uma caixa com os cadernos soltos, os poemas impressos em papel diferenciado –, é trabalho que atesta, a exemplo de publicações de Editoras como Nankin e Ateliê, esse novo pensamento editorial brasileiro em curso, segundo o qual o livro em si é um objeto de arte, o que, claro, nunca foi ignorado pelos melhores poetas modernos.
O livro de Edward é uma reedição de A pátria que te pariu (bastante modificada, como já se vê), publicado em 1990. Alguns poemas foram extirpados, outros, escritos ao longo de quase duas décadas, foram acrescentados, modificações que, felizmente, não comprometeram a essência (e quase digo, com mais agudeza, “essância”, numa pertinente conexão Lévinas/Derrida) do livro. Permanece um renitente berro como motor dessa poesia, o desabafo, para o possível leitor, mas que é índice de abafamento, também, para o poeta.
Herdeira de Drummond, Gullar, Brecht, Maiakóvski e tantas outras grandes vozes do século XX, a poesia de Edward é altamente transitiva, coloca-se num diálogo frontal com o leitor, aspecto de que deriva sua estranheza para os dias que correm. Não se trata de uma linguagem para poucos, apenas para poetas, como a que tem sido hegemônica no Brasil desde o início dos anos 90 para cá, intransitiva, “coisal”. Para Edward, como para seus precursores, a linguagem é, naturalmente, um meio, não um fim em si mesmo.
Tal compreensão, cultivada pelo autor, parece ter-se ampliado depois de tantos anos, uma ampliação que talvez seja até o motivo maior da reedição do livro. Na primeira edição, o título (A pátria que te pariu) aponta para uma inquirição direta do leitor, como se o poeta lhe apontasse o dedo em riste. Agora, nessa reedição, o título (Pátria que pariu! e outros poemas), a própria expressão corriqueira ganha relevo, como se o poeta tivesse decidido “livrar a cara” do leitor. Tempos diferentes, autor e leitor ideais (Eco) diferentes.
Nessa mudança de relação com o leitor, revela-se, com precisão, a drástica mudança dos anos 80, quando os poemas enfeixados na primeira edição foram concebidos, para estes anos 2000. A questão ali, para uma poética socializante, era incomodar o leitor, tirá-lo de sua alienação e, no limite, fazer com que entrasse para o PT e elegesse um operário para a Presidência da República, prova máxima de consciência crítica. Não só a poesia, mas todas as artes (em especial, o rock), como se sabe, estavam empenhadas nessa “revolução”.
No prefácio que acrescenta à Pátria que pariu! e outros poemas, cujo título (“Duas décadas nessa noite - as ilusões perdidas”) remete ao controverso ídolo do jornalismo dos anos 80 que foi Paulo Francis, José Edward explica, passo-a-passo, o que aconteceu nas duas últimas décadas no Brasil, concluindo, ao enfocar o Governo Lula, com ar de desalento: “Roubaram nossos sonhos, estupraram nossos ideais, estelionataram nossas esperanças, emPanTurram-se (sic) com o poder...” Em face disso, especialmente, é que, para ele, perderam-se as ilusões.
Se a crença radical em Lula como salvador da pátria, era um erro de perspectiva política, a responsabilização do leitor – e leitor de poesia – pela mudança da pátria, tal como aparecia no “tom” da primeira edição do livro, era um erro de perspectiva poética, mais do que um mero arroubo de juventude. Erro que, entretanto, José Edward (Vieira Lima, como então assinava), assim como o Titãs do disco “Cabeça dinossauro”, não poderia deixar de cometer, mesmo sabendo que pagaria caro – como acabou pagando – por ele: tantos, a maioria, não viram em seu livro o poeta audaz que, de fato, trazia em si.
Todavia, errar, naqueles fins de anos 80 de nervos tão acirrados, era, até certo ponto, uma questão de honra. O acerto, em termos culturais, estava identificado com o “establishment”, tinha um quê de “endireitamento”. Errar era se dizer errante (daí que eu pense mais na “essância” que na essência dessa poesia, num misto de essência com errância, na ânsia do errante, digamos). A honradez do errante se deixava marcar pelo esforço de pensar. A pátria que te pariu, o primeiro rebento lírico de José Edward, revelava (melhor: esbanjava) esse esforço num rol de citações.
Entre elas, que constituíam recurso bastante comum à época e agora soam incomuns, figuravam, figuram, Darcy Ribeiro e Guimarães Rosa, além de – mais que uma citação, uma carta de recomendação – prefácio, agora posfácio, de Fausto Wolff. Eram vozes que no calor daquela hora, no final da “década perdida”, tinham o poder de desviar o foco da discussão da poesia em si para a realidade brasileira mais premente, e esse desvio era mais do que necessário, era fundamental, sobretudo para a formação de um poeta-crítico.
Apesar de compreensível, tratava-se de aspecto discutível à medida que resultava, ao final das contas, num apego a circunstâncias, a determinados conteúdos que, por mais explosivos que fossem, pertenciam a um determinado momento histórico. Assim, o risco iminente, que a poesia de José Edward corria, era o de permanecer como algo datado, fadado a ter o mesmo destino de grande parte da poesia dita social, produzida por tantos em tempos e lugares diferentes, especialmente nos anos de autoritarismo legitimado.
Esse risco foi positivo pelo simples fato de que, graças a ele, um poeta encontrou sua razão de ser num tempo prosaico, em que a cultura brasileira avançava a passos de ganso em direção a toda esta porcaria em que estamos imersos atualmente. A pátria que te pariu, arriscando tudo – inclusive a não ter reconhecimento como poesia – acabou por promover uma inversão de parâmetro para a criação poética que, se não chega a ser original, era importante em fins dos anos 80, e o é ainda mais hoje: a poesia se origina do meio da cena política, tagarelante, e não da cena literária, amesquinhada.
Sabendo-se subversivo das regras do jogo poético-literário, o poeta dizia, e continua dizendo, em seu “Habeas corpus”: “antes que me malhem/ e atirem pedras, decreto:/ mal não há em fazer poesia/ com bravatas e verborragia/ com rima torta e teor panfletário/ se ela conseguir despertar um patriota/ no apático leitor imaginário”. Como epígrafe, este poema traz os versos de Bandeira: “Vou lançar a teoria do poeta sórdido:/ aquele em cuja poesia há a marca suja da vida (...)/ O poema deve ser como a nódoa no brim:/ fazer o leitor satisfeito de se dar o desespero”.
Se se pode dizer que a vida continua suja, apesar de tanta “poesia social”, apesar de José Edward, não se pode negar que essa sujeira se deve, cada vez mais, à omissão da grande maioria dos “cidadãos”, para quem só há um projeto interessante no mundo: cuidar da própria vida. Mudar a vida, torná-la mais “limpa”, requer, portanto, incomodar esses “cidadãos”, dizer-lhes, em alto e bom som, que são responsáveis pelo que está aí nos assombrando por toda parte. Utopia de dinossauro, essa que vemos na poesia em questão? Sim. Mas é melhor que nada.

Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, pág. 5, Belo Horizonte, 05 de março de 2008.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

UNIVERSIDADE | Janine e a USP

ANELITO DE OLIVEIRA - Paul Valéry tinha um certo desdém por aqueles que se davam ao trabalho de formular perguntas para as quais, no seu entendimento, já tinham resposta. Tipo de situação que se apresenta no artigo de Renato Janine Ribeiro sobre a crise na USP (“Que universidade é essa?”, Folha de S. Paulo, Mais!, 21 de junho 2009). Ora, na pergunta do seu título já se revela a resposta: é a universidade distante da realidade comum, experienciada diariamente pela maioria das pessoas. “Essa” - demonstrativo para coisas, seres ou situações distantes - é a universidade pública brasileira em geral, estadual ou federal. O modo de ser universidade que a USP expõe neste momento não é patrimônio de São Paulo, mas do país. Um modo complicado, que está a exigir, ano após ano, descomplicação, compreensão, para que sobre ele se possa atuar de maneira adequada. Óbvio que, para resolver um problema, é preciso enfrentá-lo adequadamente, abrindo mão de soluções pré-determinadas.
A crise na USP tem ensejado contribuições expressivas para esse enfrentamento. A de Janine não é mais uma, mas uma outra contribuição bastante especial em virtude da sua relação direta com a Capes, órgão responsável por parte da regulação da pesquisa universitária no país. No seu artigo, falam o professor da USP e o ex-diretor de avaliação da Capes no período de 2004/08. Disso, sobretudo, decorre uma espécie de “harmonia pré-estabelecida” na argumentação, que acaba por relativizar os dados objetivos da questão. O primeiro desses dados é que, se a “USP é a melhor universidade da América do Sul”, como Janine abre seu artigo afirmando, não há por que negar a existência efetiva de um “povo USP”, formado por seus professores, pesquisadores, alunos e servidores técnico-administrativos. É esse “povo” que vem, ao longo de tantos anos, pesquisando, escrevendo, editando, ministrando aulas, aprendendo, mantendo a burocracia, cuidando do patrimônio edificado, vigiando, cozinhando, tomando conta do lixo etc.
A USP é obra do “povo USP”, assim como as outras universidades públicas são obras dos seus respectivos “povos”. Ao “povo UFMG”, cabe o reconhecimento pelo que aquela universidade é, ao “povo UNB” também e assim sucessivamente. Não é questão de mérito, de “meritocracia”, mas de reconhecimento, daquilo que implica uma problemática afim da democracia tanto quanto da epistemologia: não há democracia nem conhecimento sem reconhecimento também do que está escondido, invisibilizado, na história: a “cicatriz” de Ulisses no célebre texto de Auerbach. Dizer que “o povo que existe é o paulista, que sustenta a USP” é bastante simpático, desperta a admiração daqueles que, situados nos diversos degraus da pirâmide social, não cessam de acusar as universidades públicas de elitistas, burguesas e excludentes. Mas, na verdade, esse tipo de colocação constitui um lugar comum, naturalmente demagógico, sobre instituições públicas nos chamados Estados de Direito Democráticos. Rigorosamente, acaba por dissolver a especificidade na generalidade, o concreto na abstração, simplificando o que deve ser enfrentado em sua complexidade.
A existência do “povo USP” não pode ser pensada, ao contrário do que Janine parece sugerir, a partir de uma formal recorrência a palavras com “fumos” de conceito que nos foram legadas politicamente, mediante relações de poder, pelos gregos e romanos antigos. O que o “povo USP” é, bem como o que são os demais “povos” das outras universidades públicas brasileiras, deve ser compreendido a partir da história social brasileira, pois resulta do corpo-a-corpo com essa história, não com outra. Esses “povos” exibem, como não poderia deixar de ser, um sentido próprio de povo, de democracia, poder e autoridade. Seu sentido de povo, por exemplo, não é exclusivista: o “povo USP”, assim como os “povos” das outras universidades públicas, não se concebe em relação de oposição com os paulistas, mas antes de complementação. Uma polarização entre dois povos, como está clara na reflexão de Janine, tem enorme valor para aqueles que, inimigos da universidade pública, querem desqualificá-la, valendo-se, antes de mais nada, do expediente do estigma, do rótulo, para dotar o “desafeto” de uma dimensão exótica.
Como povo paulista, o “povo USP”, ao contrário do que Janine absurdamente afirma, os servidores, docentes e alunos, sobretudo estes, não recebem nada de graça. Pagam impostos, contribuem com a sua parte para a efetivação, na cotidianidade, do que constitui o “comum”, para lembrar Hannah Arendt, da comunidade. Homens e mulheres, ricos e pobres, pretos, brancos etc na USP são, evidentemente, idênticos aos demais paulistas em face do “comum”, uma identificação que se amplia como diferenciação altamente legítima: São Paulo torna possível o “povo USP”. É parte dessa diferenciação, sem dúvida, o mal-estar que se revela em forma de crise a cada outono na USP. E que é positivo, legítimo, à medida que se trata de exposição daquele “desejo” que, como o próprio Renato Janine Ribeiro postulou num dos seus ensaios, faz parte da natureza da democracia: desejo de participar das decisões, de ser visto e ouvido, de ser sujeito, enfim, das ações que concernem a toda a comunidade. Que mal há nisso?
Sim, para aqueles que são autoridades na USP e nas demais universidades públicas brasileiras, e que não têm tempo para cuidar do sentido estético encerrado na “auctoritas”, o mal reside exatamente no desejo de democracia, de forma que isso, esse desejo, não é desejo pelo desejo, manifestação com um fim em si mesmo, baderna. Trata-se, para as autoridades, de desejo de poder, que é denúncia de que, segundo o próprio “povo”, falta poder nas mãos do “povo” e, por outro lado, há muito poder nas mãos da cúpula, das autoridades. Acionada, a polícia chega para caracterizar o tipo de poder de que as autoridades se veem investidas: poder real, mecanismo de dominação. Para Janine, autoridade, enquanto “auctoritas”, não se confunde com poder, enquanto “kratos”, o que a realidade nua e crua acaba por contestar, mais uma vez, numa universidade pública brasileira.
A Reitoria da USP, valendo-se da colaboração da polícia, exerce um poder autoritário, a exemplo do que fazem as demais instituições tidas como democráticas fora da universidade (como falar em diferença entre poderes públicos no país?), com a mesma finalidade: conter o desejo legítimo de uma coletividade numa democracia. O “povo USP”, então, deveria suportar o autoritarismo, o processo de eleição indireta para Reitor e outras questões que o oprimem porque a Universidade, segundo Janine, “é um meio para certos fins que a nossa sociedade consensuou democraticamente”, porque a qualidade científica poderá ser ameaçada em função de uma “redução da autoridade ao poder”, porque o mais importante é a autonomia da Universidade etc etc. Ou seja, para Janine, é preferível deixar tudo essencialmente como está porque o que importa mesmo é a essência. Impossibilidade da democracia? Não me lembro desse consenso na sociedade brasileira.







quinta-feira, 18 de junho de 2009

JORNALISMO | Jorge Salomão

ANELITO DE OLIVEIRA – Nestes últimos dias, revirando o alfarrábio que tenho cultivado há tantos anos para chegar ao primeiro volume do que chamo de “Inutilidades”
(um projeto acalentado há muito tempo, reunião de textos esparsos publicados por jornais, revistas, livros dos outros ou escritos e deixados de lado por vários motivos, sobretudo pela dificuldade de publicação, por não despertarem interesse de formatadores de discursos),
encontro esta pequena entrevista que fiz com o poeta, letrista e performer baiano Jorge Salomão, um dos nomes emblemáticos da cena cultural brasileira dos 70/80, por ocasião de sua vinda a Montes Claros em outubro de 2005, quando foi homenageado pelo evento Psiu Poético.
Não me lembro exatamente por que não consegui publicar este material. Lembro-me que o enviei para o jornal “Estado de Minas”, mas não saiu. Talvez pela “inconveniência” das ideias, aquilo que constitui exatamente sua grande graça, traço de uma singularidade.
Jorge!
Lembro-me, sim, de ter ficado meio sem graça de não ter podido recebê-lo com o “grande jornal dos mineiros” em punho:
- aqui está, Jorge, sua “brasa” queimando Minas afora.
Não queria que a entrevista ficasse restrita às Gerais, onde a cultura escrita, por bem e por mal, não é o forte.
Queria que as palavras de Jorge, ditas com sua naturalidade verdadeira, atingisse o alvo certo: são palavras de uma indignação contra aqueles que ordenam o Brasil, que estão nos centros de poder.





A brasa do ser


Homenageado do Psiu Poético 2005, Jorge Salomão, uma das últimas estrelas da poesia brasileira, chega a Montes Claros na próxima quinta-feira para performances, debates e outras intervenções


Parceiro de Frejat e Adriana Calcanhotto, entre outros, autor dos poemas de “Mosaical”, Jorge Salomão é uma das principais atrações do Psiu Poético 2005, que acontece de 04 a 12 outubro em Montes Claros, pleno cerrado norte-mineiro.
Com o tema “Cabecidades / poetas invenções”, esta é a 19ª edição do evento que já teve, entre tantas participações ilustres, a do irmão de Jorge, o saudoso Waly Salomão, Tom Zé e Capinan.
Não apenas parece: o evento, coordenado pelo poeta Aroldo Pereira, egresso da cena cultural de fins dos anos 70, realmente tem uma certa afinidade com o horizonte tropicalista, também é coisa de um outro Brasil.
Jorge Salomão fará sua primeira participação no Psiu na quinta-feira, dia 06 de outubro, às 20hs, no centro cultural Hermes de Paula, onde acontecerá a maioria dos espetáculos.
Com Jorge, passarão este ano pelo Psiu figuras e ponta poética, como o ouropretano Guilherme Mansur, a carioca Vera Casa Nova e o português Fernando Aguiar, entre muitos, muitos outros poetas, performers, atores e músicos.
A programação do Psiu Poético 2005 antecipa a grande celebração que acontecerá no próximo ano, quando o evento, já reconhecido como o mais importante no gênero no país, chegará a sua 20º edição.
No final da tarde de 26 de setembro, enquanto andava pelo centro do Rio de Janeiro, Jorge Salomão conversou comigo sobre sua participação no evento, lamentou Bush, Lula e Gil, elogiou o Brasil e disse que vai mostrar a brasa do seu ser a quem for vê-lo no Psiu.
Como o falador Waly, Jorge queria falar mais, mas a linha caiu. Confira trechos da nossa conversa.




Qual sua expectativa em relação ao evento?

Estou super alegre por poder participar. Gosto muito do histórico do evento, os temas que foram debatidos durante todos esses anos, as pessoas que participaram, os muitos questionamentos que o evento vem fazendo à cultura e à sociedade brasileiras. O Brasil precisa muito de eventos como o Psiu atualmente.

Você está pessimista com o mundo?

Não. Sou otimista. Mas não dá pra ficar indiferente a todo esse terrorismo que Bush vem espalhando pelo mundo. Essa situação reflete em tudo. Mesmo nós, brasileiros, não conseguimos ficar totalmente otimistas diante dessa situação. Mesmo nós que somos uma nação de pessoas boas, cheias de esperança.

E com o Brasil de Lula, você está otimista?

Tenho confiança em Lula, mas acho que seu governo não está indo bem. Dizem que a economia nunca foi tão bem. Mentira! Ninguém vê dinheiro circulando. Por mais que eu pense, não consigo ver avanço neste Governo em todas as áreas. Não quero, de qualquer jeito, espalhar o vírus do pessimismo.

Não é difícil produzir poesia neste contexto de terrorismo global e crise local?

Não. Mesmo diante de tudo isso, eu exercito a poesia 24 horas por dia. Escrevo, faço performances, faço palestras etc. A vida é um mix de coisas alegres e tristes.

O que pensa, especialmente, sobre a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura?

Particularmente, adoro Gil, que, inclusive, fez música em minha homenagem (“Jeca total”). Mas sua atuação como ministro tem sido fraca. Tudo muito burocrático, um ministério cheio de gravatas. Cultura é diferente de agricultura.

Como pensa que Waly reagiria a esse contexto?

Se estivesse vivo, Waly também estaria sofrendo dificuldades.

Então, você está angustiado?

Mesmo sendo, modéstia à parte, um expoente, um escritor, uma celebridade, claro que fico angustiado vendo, por um lado, um Brasil maravilhoso, cheio de graça e beleza, e, por outro lado, uma geração de jovens chatos. Mas sou sartriano e penso que a angústia é o caminho para a liberdade.

O que falta, afinal, para melhorar social e culturalmente o Brasil?

Falta criar uma dinâmica em todos os setores. Tudo é muito enjoativo. O Brasil é o país do possível, com inúmeras possibilidades de dar certo.

Pra finalizar, como será sua apresentação no Psiu Poético?

A performance que vou apresentar, “Jorge Salomão Poesia Show”, é uma leitura diferente de poesia, com um clima quente, em que transparece a brasa que é o meu ser. Gosto da coisa mais brutal que o ser pode dar, como pedra bruta de onde sai o diamante. Não sou um poeta tradicional, mas um malabarista do verso, um revolucionário.





Evocação de Jorge Salomão


ANELITO DE OLIVEIRA - “Política voz”, aquela sua letra reverberada por Frejat, é a voz de Jorge Salomão, atravessada por uma incessante inquietação em face do “status quo”, voz de um “out” radical. A primeira vez que a ouvi foi debaixo de lágrimas na escadaria da Biblioteca Nacional, naquela noite de maio de 2003, no velório de Waly Salomão. Jorge estava desmontado – e não fazia questão de amenizar nada: o homem diante da monstruosidade do mundo. Fiquei um tempão olhando para Jorge ali, sem jeito de conversar com ele, assim como tinha ficado um tempão, ao lado do ensaísta e escritor Evando Nascimento, olhando Caetano e Gil, que lá estavam, e sem jeito de falar com eles sobre Waly – sobretudo Caetano, ali como pessoa; Gil estava como ministro. Quando cumprimentei Jorge, começamos a conversar, ele logo se pôs a escrever um poema - ou momentos depois o escreveu, já não me lembro - em homenagem a Waly e me passou - ou me mandou via correios - para publicar no “Suplemento Literário”, que eu então editava.
A exemplo da entrevista acima, o poema também não foi publicado. Não sei o que houve. Parece que não deu certo um número especial que eu planejava em homenagem a Waly. O Secretário de Cultura de Minas Gerais à época (Luiz Roberto Nascimento e Silva), que parecia ter alguma reserva em relação ao poeta (sequer compareceu ao lançamento, na Livraria do Ouvidor em BH, de um número especial sobre o centenário de Drummond, que contou com a presença de Waly, que era um dos colaboradores e, também, o então Secretário Nacional do Livro e da Leitura – do Livro e da Loucura, como eu preferia dizer, e ele ria, ria escancaradamente, como só o próprio o sabia), talvez seja a razão de não ter saído o número sobre Waly – devia ter saído assim mesmo, de qualquer jeito! Mas não saiu. Acabei saindo, e não sei aonde o poema de Jorge, escrito à mão, no meio da agonia, foi parar. Espero encontrá-lo algum de dia, ou que Jorge o tenha guardado na memória.
Todavia, recordo que tudo que o poema dizia, ou fundamentalmente dizia, era por que o homem em geral, a espécie, desmonta-se, porque ele Jorge estava ali assim, desmontado, tal qual eu mesmo me vi diante de um irmão morto em 93 que, por sinal, tinha também aquele gênio espalhafatoso, impaciente, de Waly: desmonta-se porque se esbarra num lugar. O poema de Jorge detonava a Bahia, como se aquele lugar fosse o “culpado” por aquela morte tão prematura, como se a Bahia tivesse “matado” Waly. Agora, pensando bem, como me parece que tem tudo a ver! Lugares podem castigar e matar pessoas, bem como as podem acolher e estimular a viver. A Bahia, no velório de Waly, era referência de união para alguns dos baianos mais populares que estavam ali, mas para Jorge Salomão, não. Eu, que na noite anterior à notícia da morte de Waly tinha me abandonado à leitura das “Lamentações de Jeremias”, tinha uma voz ressoando na cabeça: “o homem da palavra é o homem da solidão”.
Incompreensão. Jorge desmontado na escadaria era isso. Talvez era isso também um outro grande cara, abraçado ao caixão de Waly, tão admirado por este: Marcelo Yuca. Merecia, como Waly, ser compreendido, em algum lugar, talvez em Minas Gerais, no Psiu Poético, em Montes Claros. Waly, várias vezes convidado, acabou decidindo aparecer como homenageado do evento em 2001 ou 2002, não me lembro ao certo. Ligou-me certa tarde, eu atravessando a Augusto de Lima em Belo Horizonte em meio a um monte de problemas, e me perguntou se poderia “avalizar” o evento, bem como estar em Montes Claros na noite de sua apresentação. “Avalizei”. Quando, depois de cancelar todos os compromissos, voei para Montes Claros e cheguei ao Centro Cultural Hermes de Paula, poetódromo do Psiu Poético, lá está Waly numa agonia performática: Eu quero meu dinheiro! Eu quero meu dinheiro! - algo assim. Ainda não tinha recebido o cachê combinado e havia possibilidade de receber só depois de retornar ao Rio. Gritava ao telefone, falando com a então Secretária de Cultura, e depois virava para mim e ria macunaimicamente. Depois de um debate, a que não faltou gozação walyana com ares de coisa séria para irritar gente ridícula, saímos a caminhar, juntamente com outros órfãos da poesia, em direção ao restaurante reservado a todos os participantes do evento, vala comum de famintos, sem a companhia do povo do poder local, sem deferências. Waly, a sua maneira, reclamava do descaso, e eu pensava no descaso como sendo um traço típico da cultura local nortemineira.
Três anos depois, já voltando a viver em Montes Claros (morei nesta cidade no final dos anos 80), foi a vez de Jorge Salomão ser homenageado pelo Psiu Poético. Pensei que seria mais bem recepcionado que Waly. Nada. Num momento no mercado central, onde acontecem algumas atividades do evento, teria sido até destratado. Tentei, pelo respeito e admiração que tenho por Jorge desde quando não pensava que o conheceria pessoalmente, fazer com que sua passagem por aqui não fosse tão desastrosa: conversamos várias vezes, convidei-o a participar de um programa de rádio que inventei na rádio Unimontes, convidei o pessoal de um jornal para entrevistá-lo. E vejo que foi tudo muito pouco. Entre nossas conversas, falamos da possibilidade de tornar possível uma edição da sua poesia completa. Jorge voltou para o Rio. Um dia me mandou uma carta via Aroldo Pereira, coordenador do Psiu Poético. Nunca mais fui ao Rio, nunca mais tive notícias de Jorge por qualquer meio. Nosso diálogo tem estado suspenso, e espero que esta publicação seja uma ponte reformada com esse “ladrão de fogo” ainda capaz de provocar incêndio com palavras ou, no mínimo, quebrar copos com o silêncio dos sons nos discos da vida.

domingo, 14 de junho de 2009

LITERATURA | Lama revisited

ANELITO DE OLIVEIRA - Em 2000 – quase dez anos já! –, publiquei o poema-livro Lama pela Orobó Edições, lançado numa noite de chuva (tudo a ver) em Belo Horizonte, na livraria Scriptum, então point da poesia. Era um trabalho que estava “pronto” desde 1997, com o qual havia ficado envolvido desde 1994. Quanta estranheza acabou suscitando este fato! Quatro anos para escrever isso?! Quatro anos para “desescrever” isso, eu me dizia compreensivamente. Se fosse um suposto romance, com suas duas mil páginas de banalidades supostamente interessantes, ninguém estranharia, claro. Mas, a exemplo de tantas figuras ilustres – Mallarmé, Rubião -, não se tratava de escrever apenas mais uma coisa literária. Queria – sempre o desejo! – ir além, para além da convenção. Aonde cheguei com isso? Até agora não sei, tanto que continuo envolvido com esse texto, sobretudo com questões que lhe dizem respeito. Por exemplo, a relação entre dizível e visível em poesia, como adequar essas duas dimensões, como “resolver” a inadequação fundamental entre essas duas dimensões. Há alguns anos, fiz uns reparos na primeira edição, chegando a esta feição – que aqui disponibilizo -, em vias de sair em papel, talvez agora no segundo semestre ainda ou no ano que vem. Lama é apenas um problema de poesia, cuja dignidade passa, necessariamente, pelas circunstâncias individuais, sociais e estéticas em que foi operacionalizado.







LAMA


2ª edição, revista e modificada








“Caminho dia e noite
como um parque desolado”


Vicente Huidobro











A José Benedito Rocha (in memoriam)
e Valdeir do Rosário,
fora da literatura, no meio da vida







Neste tête-à-tête comigo
Paisagens num abismo
Sóis rachados na janela
Paraísos enforcados
Por todo lado nuvens
E nuvens dormem nuas
Pássaros inutilizados
Na aragem uma chuva
Petrificada rumor de
Ossos secos cantando
Dentro de mim roendo
O tempo mais fundo
Uma coisa contra tudo
E outra abaixo dela o
Bate estrondo quedas
Corpos duros atirados
Num muro áspero de
Cimento e silêncio tal
Qual pobreza o negro
Contra o azul um soco
A noite em fúria nas
Entranhas do dia no
Meio das coxas desta
Tarde partindo a luz
Que se parte por fora
Por dentro quebrando
Vidros de pensamentos
Sobre o chão na lama
Do chão e na sua alma
O furor aceso as feridas
Chuva a rolar sobre a
Laje ideias saindo das
Coisas para uma noite
Nascendo perdida crua
E presa entre paredes
Água afogando todos
Os sentidos envolvendo
Tudo como uma luva
Esquecida no canto do
Passado nas gargantas
Escuras dos cantos e
Cantos e olhos perto de
Baratas as mãos entre
Os dentes inutilizadas
O pênis arrefecido no
Perfume do sono e ela
A boca costurada como
Uma estrela surda nos
Braços abstratos leves
E vis e brancos neves
Nevadas pés flutuando
Cabides livros pedras e
Penas mudos no quintal
Um tempo quebrado
Volta tudo se reparte
Novos cacos para
Velhas partes de um
Corpo que arde num
Tecido de cicatrizes
Tecer palavras como
Quem esquece de tudo
Caminhando em meio
A suaves folhagens de
Um parque fundo mas
Tão vazio de tudo ali
A sorver flora e fauna
Os ouvidos escondidos
Dentro do bolso imundo
Os olhos soterrados no
Submundo da alma o
Nariz morto nas verdes
Velhas águas de uma
Gripe não sei se o céu
Merece o azul o sono
Inventa outra arte os
Dedos cavam neste ir
De deserto e mar sem
Nada além de sombras
Do aquém não sei se
Ao fim haverá sol para
Estar sob esquecer e
Sair abrir uma porta
Olores de outra música
Nesta sesta aberta entre
Árvores vento de luzes
Brisas de filme mudo
Gestos palavras livres
No ar tudo vai volta
Relógio disparado e
Ouço o que é a morte
Com sua frieza cacto
Toco um dedo ali na
Pestana dessa mulher
Amarela lago de nada
Fonte de lama noites
Tristes diviso fogos
Explodem nos meus
Ombros
Pedaços de tempos
Despedaçados mãos
De crianças abertas
Vozes esmagadas na
Praça de cansaço e
Tristeza suspiros de
Sufoco abandonos na
Calçada choque nos
Olhos bêbados ela a
Morte cresce aquela
Tarde retorna furada
Jorrando sangue eu e
Ela andando no meio
Da chuva a chover
Penetrar um espelho
Dilacerado onde um
Olho derrapa e corta
O corpo resiste a ver
Olhando um tempo e
Atrás dele o desvisto
Pergunta que se faz
Resposta que não vem
Uma lança se lança
Às costas do sentido
Ponto de convergência
Enigma depois atrito
Fresta para o proibido
O sono crescendo para
Dentro do pesadelo e
O corpo lento agora
Que a cabeça quase
Dormente pensa pura
Rolando lúcida sobre
O tempo entre sons a
Se soltar andando cega
Como bois de silêncio
Um olho está dizendo
Paisagens ouvidas ao
Ir através da neblina
Parece que abro mais
Além do aberto o olho
Da morte com o pé que
Piso
Em cada dia que passo
Sob a curva da noite
Que todo dia realiza
Nas costas das coisas
Sinto flácido levando
Nas mãos algo que
Deve ser a morte com
Sua sombra de aço por
Baixo de todos os sons
E letras girando sobre
O papel resisto indo
Para dentro do abismo
Os tempos voltam uma
Nau ao longe num mar
Nervoso no centro de
Mim esta voz rasgando
Lâmina rouca nesses
Dias de alegria gritos
Bandeiras e apitos e
O oco da vida rindo
Agora a tarde caindo
Inútil contra a tarde
Folha triturada por um
Inseto azul começar a
Morrer lentamente ler
Gota deslizando na telha
Vozes tardes voando
Quando nada sangrava
Eles faziam festas na
Tela inocentes da vida
Lâmpada murchando
Sol só não sonha céu
Sentido não sente ou
Os ponteiros seguem
Loucos estando ébrios
Um eu que corra sobre
O caminho onde andava
Naquela tarde comigo
Quando a noite cresceu
O sol estava parado ali
Vigiando como um sinal
E eu passou mudo como
Um farol
O que já vi outrora
Agora uma dor desmancha
A festa o filme o falso
Todas as imagens ilusórias
E ressoa renitente apenas
Esta voz a apodrecer como
Lençol velho ao sol de um
Lugar cortante
E este tempo quando o
Corpo fumaça rolando
Incessantemente vapor
Qualquer dentro deste
Quarto essa tarde ou
Naquela ou dentro de
Outra distante de mim
Se deitando entre as
Flores amarelas e o
Muro e o lixo e o ouro
E a usura de tudo numa
Cidade enquanto as
Coisas ardem e morrem
Entre as pessoas e a
Roupa das pessoas
Comigo e com elas nós
Sem cores perdidos e
Perdendo-se a perder
De vista gotas sopros
Estrelas encardidas
No meio da noite sem
Ninguém e todos mas
Sem ninguém e pobres
Soltos nas ruas bares
E becos encharcados
De cerveja babando
Desilusão tragando e
Cheirando cagando na
Privada suja urinando
Caminhando sem rumo
Pelas ruas invernadas
Frutos de nada apenas
A sombra fria a sombra
Silenciosa de silêncio
Que nunca mais vai ser
Vida