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sexta-feira, 27 de março de 2009

MANCHA | Guilherme Mansur

ANELITO DE OLIVEIRA - Sob o título "Encantadora precariedade", publiquei o texto abaixo sobre o poeta, designer gráfico e artista plástico ouropretano Guilherme Mansur ano passado, no segundo número do jornal "Caderno de Leitura", invenção do saudoso João Alexandre Barbosa na Edusp, lá nos fins dos anos 80, e que o inquieto Plinio Martins Filho recolocou em circulação, com o auxílio luxuoso do crítico Manoel da Costa Pinto. A convite dos dois, escrevi issso que é tanto sobre um raro "inventor" (Pound) quanto sobre um ser humano extraordinário, com quem tive prazer de conviver durante quatro anos no "Suplemento Literário de Minas Gerais". Esta reprodução é, sobretudo, para acusar a saudade daqueles dias, relembrar um grande amigo, suspender um pouco, ainda que virtualmente, a distância que hoje se impõe entre os gerais rosianos, onde me encontro, e as minas alphonsinas, onde Mansur se encontra. Com esta reprodução, instauro aqui uma seção voltada para o mundo gráfico-editorial, para falar de editores, designers e as "manchas" que fazem no papel.
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Encantadora precariedade
“Tipoeta”, como o definiu Haroldo de Campos, o mineiro Guilherme Mansur desenvolve, há 30 anos, em sua barroca Ouro Preto, uma extraordinária atividade editorial, que está fundamentalmente ligada a sua prática de poesia, ou antes: que se desdobra de sua particular percepção do fenômeno poético. Não é possível dizer ao certo, quando nos encontramos com suas raras produções (e, de fato, é sempre um encontro, algo marcante), onde termina um processo editorial propriamente dito, o desempenho de uma tarefa como outra qualquer, e começa um processo criativo, algo sem uma finalidade objetiva, com ares da intransitividade inerente à coisa artística.Antes de mais nada, ressalta-se nesse trabalho a tentativa de dar a ver algo raro, que ainda não foi feito, o que resulta em estranheza, num produto para poucos, sem possibilidade real de despertar o interesse de leitores-consumidores, aqueles que têm uma relação comum, digamos, com o objeto livro. Não são esses, claro, os receptores visados pelo editor Mansur, a quem ele oferta seus produtos gráficos. Ele visa aqueles que reconhecem no livro um objeto de arte capaz de proporcionar uma experiência estética singular, que se daria num interstício de linguagens, entre o que, a priori, é para ser visto (arte plástica) e o que é para ser lido (arte verbal).Descendente de proprietários de gráfica, Guilherme Mansur cresceu entre tipos, clichês, papéis, chapas, tinta, cheiro de cola, guilhotina, zumbido de cortes, dobras, embrulhos. Enfim, despertou para a poesia em meio a toda a parafernália que constituía, inevitavelmente, o mundo gráfico há alguns anos, toda uma “sujeira”, uma “bagunça”, que (fato lamentável de um ponto de vista cultural) vai-se tornando cada vez mais difícil de se encontrar hoje em dia em função das novas tecnologias de impressão. As edições de Mansur são marcadas por esse ambiente em que ele se criou, atravessadas por uma precariedade que acaba por se afirmar como seu dado encantador.Entre os muitos autores editados pela Tipografia do Fundo de Ouro Preto, destacam-se alguns dos principais poetas da cena literária brasileira de fins do século XX para cá, como Paulo Leminski, Régis Bonvicino, Sylvio Back, Laís Corrêa de Araújo, Josely Vianna Baptista e, especialmente, Haroldo de Campos. Este, que na última década fazia questão de destacar um olhar crítico que, na verdade, sempre cultivou sobre o capitalismo (“forma de fome”), certamente soube entender a importância do gesto de Mansur como resistência aos “enlatados” editoriais. Contra a massificação no âmbito das letras, um pouco de aura, de artesanato, de “espírito” manual.De fato, é uma sutil tomada de posição em relação ao que está estabelecido no mercado editorial hoje que se apresenta, por exemplo, em edições como Finismundo: A Última Viagem, do poeta paulista, e na antologia de escritos das etnias indígenas Mbyá e Nivacle, três volumes (Neblina Vivificante, O Amor entre os Nivacle e Soninho com Pios de Periquitos ao Fundo), organizados, sob o título geral de “Cadernos da Ameríndia”, pela poeta e tradutora paranaense Josely Vianna Baptista e pelos antropólogos paraguaios Luli Miranda e Miguel Chase-Sardi. Essas edições, que dificilmente o interessado pode conseguir em algum dos melhores sebos que estão por aí, são, sobretudo, um acontecimento gráfico-editorial irrepetível, o esplendor de uma simplicidade considerada, de certa forma, obstáculo à venda de produtos editoriais. Mansur, evidentemente, pertence à estirpe daqueles que se engajam na realização da própria obra, desinteressados em relação ao que o sistema sociocultural possa achar ou não, a estirpe dos assistemáticos por excelência. Seu método criativo tem referenciais próximos e longínquos no tempo e no espaço, mas, certamente, o mais decisivo de todos foi e é Amilcar de Castro. Como este (que reformou a diagramação do Jornal do Brasil nos anos 60), Mansur (que reinventou a diagramação do jurássico Suplemento Literário de Minas Gerais nos anos 90) parece entender que a arte, independente do suporte ou do gênero, distingue-se pelo que é: uma forma que pensa.

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