Elogio de Murilo Mendes
A história dos poetas
Os poetas vêm escrevendo, ao
longo dos tempos, uma história singular, extraordinária, à margem da História
Oficial que nos é imposta a cada dia por toda parte, pela escola, pelas
igrejas, pela televisão etc. Não é uma história em que se ressaltam grandes
acontecimentos, em que se procura a sacralização de determinados nomes, em que
o objetivo maior sempre acaba sendo a mitificação de mortais vencedores,
elevando-os a um panteão de supostos imortais. A história que os poetas
escrevem é totalmente diversa porque, naturalmente, articula-se a partir de um
ângulo diverso, incomum, estranho. Não é do alto, do pico de uma montanha ou da
janela de um castelo, que os poetas veem, mas sim do baixo, do chão – o poeta é
mesmo, como se lê no “L’albatroz” de Baudelaire, um “exilé sur le sol”, um
“exilado no chão”. Vendo de baixo, conseguem revelar realidades que a História
Oficial ignora ou considera irrelevantes, mas que são – não cessamos de
constatá-lo – os constituintes fundamentais da existência humana. Essa
existência, a nossa, não é mais nem menos do que foi configurado nos textos
bíblicos, nos poemas homéricos, nos “récits” trágicos e cômicos, na Divina comédia, n’Os Lusíadas, no Fausto, no Grande Sertão: Veredas, enfim, em tantos outros escritos cuja
grandeza deriva, sobretudo, do fato de revelarem um dado impressionante: a
verdade está no outro. O que nos diz “O livro de
Jó”? Que a verdade está no “pobre”, naquele que, libertado de toda “riqueza”,
inteiramente despojado, pode ouvir sua voz interior, não é escravo de ninguém.
O que nos dizem Odisséia e Ilíada? Que a verdade está no
“agonístico”, no que porta o “agon”, no conflituoso, naquele que joga sobre as
próprias costas as ânsias dos seus semelhantes e, em nome deles, para dar-lhes
um outro porvir, enfrenta o mar, dilacera-se na guerra. O que nos dizem os trágicos,
um Sófocles, um Eurípides? Que a verdade está no cego (Tirésias), que a verdade
está na mulher (Medéia), está, portanto, naquele que todos pensam que não
enxerga ou naquela que ainda hoje, aqui e em tantos lugares, é tida como
inferior, como incapaz, como mero objeto. Também os outros textos aqui
espontaneamente lembrados remetem-nos ao entendimento de que a verdade, a mais
plausível verdade, está fora daquele lugar onde a maioria absoluta está
acostumada a procurá-la, fora do centro, fora de foco, fora do Mesmo. A
história dos poetas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, pode mesmo ser tida
como a história da escrita dessa verdade
do outro, essa censurada verdade do
outro, essa insuportável verdade do
outro.
Poesia-inventário
Toda essa digressão pareceu-me necessária para afirmar que Murilo Mendes acrescentou preciosas linhas a essa história que os poetas vêm escrevendo, incansavelmente, ante a não rara indiferença de letrados insensíveis. Não são todos os poetas, evidentemente, que lograram, já no século XX, acrescentar algo a essa história, mas tão-somente aqueles que, como Murilo, mantiveram-se presos ao “espírito religioso” que Mário de Andrade ostentava e incitava nos primeiros modernistas mineiros. Dizia o autor de Macunaíma, naquele seu estilo único de filosofar sorrindo, em carta a Carlos Drummond de Andrade nos distantes anos 20: “Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz de viver a vida: é ter espírito religioso. Explico melhor: não se trata de ter espírito católico ou budista, trata-se de ter espírito religioso para com a vida, isto é, viver com religião a vida. Eu sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach e ponho tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que vai figurar nas paredes dum bailarico e morrer no lixo depois como um romance a que darei a impassível eternidade da impressão”. Murilo Mendes, de quem é possível dizer que tenha praticado esse “espírito religioso” em amplo e estrito senso, não esteve indiferente a nenhuma manifestação da vida, praticando algo como uma poesia-inventário, feita de elementos díspares pertencentes a uma família-mundo, não apenas a família biológica ou artística (a do homem, a do poeta). Seu trajeto começa justamente com a inventariação – no sentido de uma recapitulação, de um resgate, de uma rememoração – da imagem do exilado, e não apenas daquela fixada por Gonçalves Dias, como literariamente, pelo viés da intertextualidade, interpreta-se. O exilado muriliano, ao contrário daquele do romântico, não lacrimeja de saudade porque não se sente apartado realmente do seu país, por um simples fato: não concebe o apart-amento, a separabilidade. Para esse exilado, não há países, não há divisões territoriais, há uma terra apenas onde convivem “macieiras da Califórnia”, “gaturanos de Veneza”, “poetas”, “pretos”, “sargentos do exército”, “monistas”, “cubistas”, “filósofos polacos”, “sururus”, “Gioconda”, “carambola”, “sabiá” etc etc. Nessa “Canção do exílio”, com que nos deparamos já no primeiro livro do poeta (Poemas, 1930), insinua-se o caráter múltiplo que marca a poética muriliana, caráter esse que tem tanto motivações estéticas – tão debatidas pela crítica com o intuito de atestar uma obra “poliédrica” - quanto éticas. Estas, a meu ver, precedem aquelas – e Murilo Mendes o exemplifica a contento ainda no seu primeiro livro quando, no antológico poema “Mapa”, investe contra todo tipo de mapeamento, sectarização, estabelecimento, a começar pelo tempo, os pontos cardeais e a educação, inaugurando uma “bagunça transcendente”.
O mapa muriliano
Diz Murilo Mendes no poema “Mapa”:
Almas desesperadas
eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se
tapeiam,
os que brincam de
cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco
e vários suicidas e amantes suicidas,
e os soldados que
perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem
fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os
transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu, que
inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do
homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros
que tive,
vida de planos
ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do
cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos
criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto
modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos
homens que movem o mundo,
nem triste nem
alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em
transformação.
São palavras de um libertário, de um sujeito que quer se libertar e também libertar os outros, romper com a segmentação, com a “territorialização”, procedendo a uma “desterritorialização”, como diria Deleuze. O “mapa” de Murilo Mendes desdiz o nosso mapa de cada dia, que nos fecha num individualismo insano, para afirmar um novo mapa, o mapa da verdade poética, que nos abre uma vivência coletiva. Nesse novo mapa, sim, os viventes não estão limitados por quaisquer mecanismos da chamada “vida prática”, não estão castrados por “nenhuma teoria”, estão, finalmente, livres. Trata-se de peça das mais ousadas não só da poesia brasileira, mas da poesia moderna como um todo, que só encontra parâmetro em espíritos inquietos como Rimbaud, Whitman, Lorca, Paz, Maiakóvski, Lezama, bem como nos seus contemporâneos brasileiros, um Mário, um Oswald e um Drummond. Com este, Drummond, também mineiro, o “Mapa” de Murilo Mendes guarda inegáveis afinidades. Pensemos em poemas como “Nosso tempo”, “Cidade prevista” e “América”, em que o autor de A rosa do povo, movido pelos acontecimentos trágicos da Segunda guerra mundial, deixa falar o sonho de uma sociedade em que todos vivam em comunhão. O poema de Murilo Mendes aponta para o fato de que essa comunhão, à medida que só pode se efetivar realmente com a liberdade de cada um, é uma causa transtemporal, que independe de contextos determinados, uma causa moral, uma causa ética, uma causa profundamente poética. De todo modo, é significativo que dois poetas mineiros já no século XX – Murilo e Drummond – tenham aguçado esse tipo de questão - a da liberdade -, o que, antes de mais nada, desperta-nos para o fato de que essa, ainda que não objetivamente, também foi, ou acabou sendo, a questão de um Aleijadinho (libertar a forma, deixar que ela se desdobre, “clonar” apóstolos, santos, igrejas), a de um Cláudio Manuel da Costa (libertar a sensibilidade, ampliar as faculdades imaginativas, “escrever” uma cidade) e a de um José Severiano de Rezende, o rebelde simbolista que se libertou da batina de padre, nunca se conteve nem mesmo nos limites da poesia e, no fim das contas, acaba se libertando, como Murilo Mendes, do próprio mapa do Brasil, partindo para a Europa e morrendo em Paris em 1931. Portanto, o autor de A poesia em pânico e Poesia liberdade tem, senão precursores, pelo menos predecessores no Estado onde nasceu, ou, melhor dizendo, exemplos que talvez tenham contribuído, de alguma forma, quem sabe como parte do imaginário que inevitavelmente nos complementa, para que a liberdade se tornasse o próprio fundamento do seu gesto poético. Essa liberdade que ainda não temos, que cada vez mais desconhecemos a despeito de tanta propalada democracia, essa realmente “dificile liberté”, como diz Lévinas, essa liberdade que não temos, no fundo, porque, se um dia a tivermos, acontecerá aquilo que o “Mapa” de Murilo Mendes prevê: “o mundo vai mudar a cara”. Será, acrescento, um “murilomundo”.
Este breve ensaio em tom de intervenção oral, um dos inúmeros guardados que fico bestamente guardando, foi escrito em 2001 e lido pelo poeta mineiro Luís Eustáquio Soares, em atenção generosa a uma solicitação que lhe fiz (eu estava em viagem), em evento de lançamento de um Suplemento Literário de Minas Gerais (que eu então editava) especial em homenagem ao centenário de nascimento de Murilo Mendes no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Naquele momento, recebi uma carta atenciosa da viúva do poeta, Maria da Saudade Cortesão Mendes – também poeta e tradutora, filha do historiador e escritor Jaime Cortesão -, agradecendo-me, desde Lisboa, pelo Suplemento e por este texto. Estranhamente – o que só se explica em função do estado de desinformação em que estamos submersos com tanta informação hoje em dia -, só no final de fevereiro último tomei conhecimento de sua morte, ocorrida ainda em 2010, e fiquei bastante perplexo, porque era uma das figuras poéticas do século XX que eu pensava que ainda teria o prazer de alcançar vivas. Maria da Saudade completaria 100 anos agora em 2013 e aqui socializo este texto – também – em homenagem a ela.
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