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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

ENSAIO | Anelito de Oliveira



Poetas, políticos e polícias [Parte 1]



À procura do elo perdido


A poesia brasileira aparecida ao longo da década de 1990 foi vista com bastante entusiasmo, principalmente por pesquisadores universitários, por poetas estabelecidos que se reconheciam como seus influenciadores e, claro, pelos próprios novos poetas. Pode-se falar mesmo de uma certa unanimidade, entre os produtores e receptores dessa poesia, em torno de um caráter positivo da diversidade de linguagens que caracteriza aquele momento, tanto em termos formais quanto conteudísticos, o que não aconteceu em períodos anteriores, sempre marcados por posicionamentos ortodoxos, pela intransigência dos grupos fundamentados em valores estéticos e ideológicos.
Nos anos 90, cada um passou a fazer o que queria fazer: poesia verbal, visual, videopoesia, infopoesia, poesia sonora, soneto, poema-piada, balada, hai-kai, poesia negra, poesia gay, poesia feminina, neobarroca, modernista etc, um vale tudo. Assistimos, sem dúvida, a um espetáculo de democracia na cena poética, reflexo natural da chamada “abertura democrática” de 1985. Nunca se escreveu tanto, nunca a produção de livros de poesia foi tão grande, nunca houve tantas revistas voltadas para a divulgação de poesia.
Impossível negar a importância de toda essa efervescência para o processo sociocultural brasileiro como um todo, impossível negar a pertinência da democratização do espaço poéticoliterário. Não é isso, portanto, que pretendo sequer sugerir nestas linhas, não quero, para lembrar Leminski, “fazer chover no piquenique” da geração 90, mas apenas introduzir uma interpretação que me parece relevante, uma problematização fundamental em toda tarefa de interpretação, que é a de restabelecer o elo entre a voz e o lugar.
Esse elo, que corresponde à relação entre ideias e coisas, perde-se, oblitera-se ou dispersa-se inevitavelmente quando se fala, e, mais ainda, quando se escreve, ainda mais quando se trata de uma escrita incontrolavelmente conotativa, como é o caso da escrita literária e, de maneira muito particular, da escrita poética. Quando se escreve, perturba-se, inevitavelmente, a relação natural entre planos ideal e real; quando se escreve muito, a tendência é essa perturbação aumentar, tudo se nos apresentando embaralhado.
A perturbação é inerente à escrita, que vem a ser o alicerce da democracia, como argumenta Jacques Rancière em Políticas da escrita (Editora 34, 1995, p. 9-15): 
Ora, a escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia legitimamente e o leva a destino legítimo, vem embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer. A perturbação teórica da escrita tem um nome político: chama-se democracia. (...) Há democracia – e política, consequentemente – porque há palavras sobrando, palavras sem referente e enunciados sem pais que desfazem qualquer lei de correspondência entre a ordem das palavras e a das coisas. A deserção democrática da incorporação comunitária é solidária da deserção literária da encarnação. Literatura e democracia são dois modos de invenção de quase-corpos ou de incorpóreos cujo dispositivo fragiliza as encarnações e as identificações que ligam uma ordem do discurso a uma ordem das condições. Essa comunidade estética da separação é uma comunidade política da deslegitimação.


Do Barroco a Baudelaire


Nossa “comunidade” ocidentalizada tem em comum a experiência do “veto ao ficcional”, do “controle do imaginário”, como explorou exaustivamente Luiz Costa Lima (O controle do imaginário & A afirmação do romance, Companhia das Letras, 2009), toda uma tradição de repressão que a arte tem procurado, desde os antigos trágicos gregos, rechaçar, um ideal intimamente ligado à vontade de humanização do homem, como ficou modernamente dito pelos românticos alemães, de Goethe a Novalis. Rechaçar a tradição da repressão equivale a instaurar o “regime da letra órfã”, nos termos de Rancière, independente de “pai”, a letra arbitrária, selvagem, subversiva, que não depende de um Senhor para legitimá-la, como se ela não pudesse realmente estabelecer-se na presença do “pai”.
Este entendimento está claro, a meu ver, nas três principais poéticas da Modernidade ocidental: a barroca, a romântica e a simbolista, poéticas da desrepressão, pode-se dizeer, marcadas que são pela vontade de fazer emergir as sombras, as incompletudes, os dilaceramentos que constituem o sujeito no mundo. Interessante notar que aquilo que consideramos Barroco é relativamente “vizinho” de dois eventos de “liberação” da letra, o Renascimento e a invenção da imprensa. Barroco, Romantismo e Simbolismo são poéticas que, diferentemente da poética clássica de extração romana, não se relacionam de forma autoritária com o real, o que lhes permite colocar em xeque qualquer primado absolutizante de verdade, de belo, logrando explicitar, consequentemente, a crise do sujeito.
O reconhecimento do significado profundamente positivo dessas poéticas veio, a partir do final do século XIX, dos próprios modernismos, sobretudo, que no fundo são, por toda parte, reverberações do Barroco, do Romantismo e do Simbolismo, como, frisando as duas últimas poéticas, reconhece Alfredo Bosi, no seu O ser e o tempo da poesia (Cultrix, 1990, p. 151):
(...) a verdadeira poesia seguiu a senda aberta pelos românticos e pelos simbolistas inventando mitologias libertadoras como resposta consciente e desamparada às tensões violentas que se exercem sobre a estrutura mental do poeta. O Surrealismo e o Expressionismo são viveiros de mitos pessoais ou de pequenos grupos em que se projetam desejos de expansão titânica ou demoníaca de homens cuja força de ação se inflete sobre si mesma, incapazes que são de dominar sistemas cada vez mais anônimos. Demiurgo da própria impotência, o poeta tenta abrir no espaço do imaginário uma saída possível.
Dessas três poéticas descende a imagem que temos do poeta na modernidade. O poeta como estranho, o albatroz baudelairiano, “exilé sur le sol”, impedido de voar pelas próprias asas gigantes, o satã, o amaldiçoado, o maldito, o rebelado, o abandonado, o isolado. Tudo isso vale para Baudelaire tanto quanto para Rimbaud, Mallarmé, Blake, Hölderlin, Whitman, Cruz e Sousa etc. Baudelaire é a imagem-síntese do poeta na alta modernidade, o lírico que flana entre as ruínas do capitalismo, como o fixou Walter Benjamin (Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, Brasiliense, 1994), mas também o poeta que estabelece uma conexão entre a modernidade, socioeconomicamente entendida, e o Barroco, operando com uma “raison baroque”, como mostra Christine Buci-Glucksmman (La raison baroque: de Baudelaire a Benjamin, Galilé, 1984).
Essa imagem baudelairiana do poeta contém, portanto, uma estranheza psíquica, cultural, espacial e temporal, toda uma estrangeiridade que, até mesmo em função da sua encarnação no século XIX, passou a constituir a identidade do poeta nas primeiras três décadas do século XX. A imagem-Baudelaire está em Maiakóvski, em Lorca, em Pound, em Eliot, em Celan, em Trakl, em Vallejo, em Pessoa, em Sá-Carneiro, em Paz; está, em termos nacionais, em Mário, em Oswald, em Emílio Moura etc. Entretanto, no caso do Brasil, essa imagem aparece encarnada já no século XIX em Cruz e Sousa, que, através de Baudelaire, passou a “pensar a arte como espaço de representação dos abismos, da dor e do horror”, conforme o lúcido olhar de Ivone Daré Rabello (Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa, Nankin/Edusp, 2006).
Também assimilam essa imagem poetas como os mineiros Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de Rezende, mas é Cruz e Sousa que, com seu negro inferno, confere um traço diferencial brasileiro a essa imagem. Cruz e Sousa não é, obviamente, paradigma para a produção poética brasileira do século XX, apesar de sua fortuna crítica, de seus inúmeros adoradores e do respeito que muitos nomes ilustres lhe devotaram. Cruz e Sousa, que mais se aproxima da imagem baudelairiana do poeta, tem alguma coisa a ver com a desconexão dos poetas dos anos 1990 com Baudelaire no Brasil? Com esta pergunta, retornemos ao agora.


NOTA | Este texto é a primeira parte de um ensaio originalmente apresentado como conferência em 2000, na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que permaneceu inédito e, neste momento, está publicado em Orobó | Kadernu di Ynwenssões www.revistaorobo.blogspot.com.br. ANELITO DE OLIVEIRA

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