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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

CRÍTICA | Anelito de Oliveira


Convite ao desvio


Compreende-se facilmente o silêncio da crítica, ou do que ainda existe sob esse nome, em relação à poesia, especialmente aquela que se apresenta no suporte livro. Não é fácil pensar o que se mostra em palavras, rimas, ritmos, estrofes, quando temos plena consciência – ainda que também saibamos se tratar de uma consciência possível – de que a questão não se esgota nisso que vemos e lemos. Ouro Preto, livro de poemas de Mário Alex Rosa recentemente publicado pela Scriptum, é exemplo da complexidade da poesia escrita e enfeixada em livro. Aparentemente, é uma poesia conformada ao enunciado, que não teria nada a nos dizer para além do que já está dizendo, uma linguagem que se bastaria a si mesma. Assim, uma leitura ideal dessa poesia seria aquela imanentista, subordinada ao texto, “close reading”. Mas, para além da aparência, Ouro Preto é, já a partir do título, um convite ao desvio do visível, do que se dá a ler, em função do que, numa experiência lírica muito honesta, que é a desse autor mineiro, escapa à sistematização, a um pensamento ainda que sensível, “poético”. 
Ouro Preto nos convida a ultrapassar a exterioridade – uma cidade – em direção à interioridade, ao sujeito. Nesse movimento – pensado, obviamente – é que uma voz vai-se distinguindo de outras tantas vozes que abordaram Ouro Preto – de Cláudio Manuel a Affonso Ávila, passando por Murilo e Cecília. Não é só o timbre do poeta que é diferente, mas, sobretudo, o “logos” que subjaz a essa voz, o seu modo de pensar Ouro Preto, que é “sentimental”, no sentido schilleriano, marcado pelo sentimento da perda, do desligamento, de um choque, enfim, no plano afetivo. A cidade de Ouro Preto, com seus lugares hoje catalogados como históricos, é o cenário do objeto dessa perda, que é o amor. Falar de Ouro Preto, ao longo de todo o livro, significa falar desse amor perdido, e vice-versa, o que resulta numa conjunção muito fértil – porque problemática – de elementos públicos e privados. Fértil porque estimula a criação; problemática porque subordina a criação a um horizonte ideal, que é o de um amor romântico, um horizonte afim, consequentemente, de uma Ouro Preto ideal, cultivada por um sujeito que, no limite, passa a ser também idealizado.
À medida que joga com dados hauridos na experiência, numa relação amorosa, Alex Rosa demonstra que não é um poeta idealista no sentido forte. Suas cenas de amor se passam na Ponte de Antônio Dias, na Casa Guignard, na Ponte de Marília, na Praça Tiradentes etc. Esses dados concretos, reais, não fazem dele um poeta realista, claro, mas nos levam a lê-lo, no mínimo, como um poeta de “consciência crítica”, para recordar Affonso Ávila. O procedimento idealista que permeia Ouro Preto, o pessoano “fingir que é dor”, porta uma intencionalidade, evidentemente (a consciência se define pela intencionalidade, pensava Husserl, como se sabe), sobre a qual é preciso refletir. O livro de Alex Rosa se coloca sob o signo do diálogo, como nos alerta o poema de abertura, com a tradição literária, uma intenção implícita na recorrência a Ouro Preto, “cidade letrada” (Rama) por excelência.
Ressoando Gullar, Drummond, Alphonsus, o poema de abertura, “Cantiga que não responde”, inscreve, no rastro da pergunta renitente (“Quem poderá dizer”, “Quem poderá responder”, “Quem salvará a menina”), o desejo de um poeta de que a poesia possa “resolver” algo na ordem do simbólico que, por sua vez, “ordena”, desde o âmago, o real socialmente compartilhado, o plano com que lidamos na cotidianidade. Mário Alex Rosa, não há dúvida, acredita no poder ordenador da poesia, o que se percebe na cautela com que elabora seus poemas, na vontade inequívoca de manter o controle do que escreve. Isso explica, em termos conteudísticos, por que a abordagem do amor perdido nunca descamba para desabafos, nunca resulta nas “baixarias” do discurso amoroso. O ideal estético, de uma poesia bastante disciplinada, “limpa”, pensada, prevalece mesmo em face da premência, assentada no sofrimento, que o sujeito tem de falar de si, de abrir seu “coração”.
Esse ideal estético é antibarroco ou, se quisermos, defensivo em relação ao barroco, como o poeta revela em “Diariamente na Ponte de Marília”: “A rima é velha, até mesmo gasta,/ mas volto a ela para dizer que/ não sou homem barroco,/ condição tão vária; estou oco?/ Estou louco?/ Não explica nada”. Este poema (que não é simples, que, como tantos do livro, apenas se traveste de simples, é idealmente simples) é desnecessário para a configuração do perfil antibarroco do poeta. Seu desejo de ex-plicação – isto é: de dissolução das “plicas”, das dobras que configuram o barroco, como postula Deleuze -, uma racionalização para-clássica, fundamenta o gesto poético em Ouro Preto: ex-plicar um evento amoroso, ex-plicar uma perda, ex-plicar lugares onde se passou o amor perdido. Poemas como “Notação”, “Exposição”, “Da falsa formação”, “A arte de Elizabeth Bishop”, “Conversa num café” e “Lendo E. D.” escancaram esse desejo de ex-plicação por parte do poeta, um desejo de clareza contrário, à primeira vista, ao barroco.
Todavia, tão – ou mais – importante do que o poeta diz em “Diariamente na Ponte de Marília”, ou seja, que não é homem barroco, é o que ele também já está dizendo no rastro da negação: que ser barroco não é uma questão apenas de significante, de rima, de superfície, mas também de significado, de substância. Esse poema é falsamente simples, volto a dizer, porque não se esgota no que diz, no enunciado, na relação de um sujeito com seu objeto amoroso, porque implica a tradição literária, porque pensa a partir de um poder ordenador da poesia, no qual o poeta acredita e acaba por ser um dos complicadores do seu gesto. Assim, diz ainda o poema em questão: “O vale cedo ou tarde/ invade a tua casa, a tua cidade./ Não espera Marília passar,/ ela um único pastor/ soube amar”. 
Em face deste desdobramento, que sugere uma intempestividade afim do barroco, pode-se dizer que, apesar do ideal para-clássico do poeta, o mundo ouropretano visado se barroquiza, entra em ebulição e contagia o sujeito, colocando-o numa situação crítica. Daí, no desfecho do poema, lemos: “A minha rima é pobre/ mas ainda trago feito nobre/ o amor que ora te ofereço/ na desgraça de quem por pouco/ não se mata./ Mas, se por azar outra vez errar,/ esse diário não será tarde demais?”. O mais importante neste poema irregular, errado e errante, não é a questão  esteticista, a recusa do barroco e o intertexto com Gonzaga, mas a sincera impossibilidade, da parte do sujeito, de não jogar com a própria vida no ato de criação, o que significa acionar um conjunto de forças que o sujeito não controla totalmente, não domina, forças que, na realidade, dominam esse sujeito, oprimem-no e o obrigam, por outro lado, a travar uma dolorosa luta pela emancipação.
Em poemas como “Ouro Preto”, “Oito de julho” e “Visita”, os mais consistentes do livro, assistimos à narrativa dessa luta. Não é uma luta circunscrita ao poema, a drumondiana luta com palavras, mas uma luta pela compreensão do entorno do outro e de si. O que anima essa luta é o ideal, sem dúvida, da poesia como força ordenadora, mas esse ideal esbarra sempre nos “muros” da história (“os homens endurecidos/ não sabem abrir porta”), que se revela uma contraforça desordenadora. No desfecho de “Visita”, Mário Alex Rosa escreve que “Este poema apenas tangencia/ a falta que nunca acaba/ o fim de todas as coisas”. Trata-se de uma visita a Ouro Preto, à história, à tradição literária, ao amor romântico etc. Trata-se de uma visita movida por um ideal e, ao final, um reconhecimento da frustração desse ideal. Mas é justamente nesse reconhecimento que se revela o fundamento crítico da poesia de Ouro Preto que, no nível do enunciado, não é tão fácil perceber, mas que está ali, para além do dito, na forma cultivada há tantos anos por esse discreto e comovido poeta.       

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