Páginas

quinta-feira, 11 de março de 2010

LITERATURA | Criação

O depósito

Chorava copiosamente, e não era um romance alencarino. A realidade, daquele jeito, estava ali. Bem de frente - ali. Olhava para ela como quem não pudesse fazer mais nada. Tudo estava feito, não tinha como refazer nada. Precisava aceitar que tinha acontecido. Ninguém acreditaria se tentasse dizer que não, que não lhe dizia respeito. Aquele olhar era uma forma de consolo: as pessoas erram, sabe como é, nunca estão totalmente concentradas em suas tarefas, cada vez mais atarefadas, mil coisas, stress, stress. Seu erro tinha sido dos mais humanos, precisava entender isso, nada de mais, apenas um vacilo. Não podia insistir em dizer que não tinha errado, tinha sim, e agora era o momento de reconhecer. Reconhecendo, assumiria a responsabilidade por aquilo. Tinha direito a contar sua versão, claro, claro, mas não destituiria o fato do lugar onde já estava alojado. Ela, a atenciosa atendente, estava ali para ouvir. Bebe água, bebe. Como não tinha nada dentro do envelope quando o abriram à noite?! Estava lá, ela mesma tinha se encarregado de organizar tudo, temendo exatamente que algo acontecesse, algo que jamais pudesse acontecer. Consultem as imagens de ontem, já foram consultadas, não apareço lá?, não temos certeza, como não?, estava muito cheio, uma multidão de gente, estive bem ali por volta de três da tarde, quero ver as imagens. Claro, poderiam permitir que visse as imagens, mas elas acabariam até por complicar a situação. Gostariam de pensar, para o seu bem, que talvez não fosse ela a única responsável pelo fato: alguém teria colocado o envelope em seu nome, digamos, uma hipótese, que alguém tivesse feito isso, normal. O importante mesmo não era o fato de ela aparecer ali efetivando o procedimento, tudo muito superficial, mas a qualidade da substância do procedimento. Tinha que pensar nisso, na qualidade daquilo, não na quantidade que estava em jogo. O envelope estava vazio, vazio, completamente vazio, sem nada, um absurdo! Quem acreditaria nela? Imagens, imagens! Melhor acabar tudo ali. Bebe mais água, bebe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário