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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

ENSAIO | Evocação de "Evocações"

ANELITO DE OLIVEIRA - Livro empenhado não só em expor questões de vária ordem – histórica, social, estética, existencial, ética, religiosa etc -, mas também em propor veios operatórios para essas questões, Evocações, com sua feição hibrida de testamento de um poeta e inventário de um tempo, recorre a Edgar Allan Poe para enunciar, claramente, uma espécie de método negativo de apreensão da qualidade da alma.
Em “Ídolo mau”, que se abre com epígrafe do espelho Villier de L´Isle Adam, chega-se à ideia do bem a partir de um tensionamento da ideia do mal, que não constituiriam dimensões pré-determinadas, pré-estabelecidas, aprioristicamente fechadas, mas dimensões moventes, passíveis de alteração, abertas ao porvir.
Há, portanto, um binarismo – bem e mal – a estruturar o texto, mas que tem valor apenas elementar, enquanto índice, pode-se dizer, de mundanidade, de relação com o mundo em geral, de tal forma que também se pode dizer que esse binarismo é parte da proposição do método negativo de apreensão da qualidade da alma: sob a égide da racionalidade binária ocidental, lançam-se os dados da questão.
Também a moralidade, que se desdobra quase que naturalmente da recorrência ao binarismo bem e mal, exerce ali, na operacionalização da questão, uma função elementar, uma vez que não é de “mores”, de costume, que se trata, mas, rigorosamente, de “ethos”, de interioridade da ação, uma vez que é de Pensamento que se trata, do Pensamento como possibilidade de salvação para o “proclamador da Fome, da Peste, da Guerra”.
O Pensamento em questão – grafado no texto com “P” maiúsculo – teria, assim, uma força reparadora em relação à exterioridade sociohistórica, compreensão tornada possível numa intercessão pontual com Poe, se concordamos, seguindo a sugestão do autor, que realmente não se trata de qualquer pensamento, de mera expressão de uma ordem racionalista da própria “ratio”. Nos primeiros parágrafos de “Ídolo mau”, lemos:

De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
Estás agora preso à calceta de sentimentos negros e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à calceta de sentimentos negros.
Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.
Como a ave noturna e luceferina do – Nunca mais! – desse peregrino e arcangélico Poe – como essa ave noturna, pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.
E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da noite, da grande noite do Nada, convulsamente soluçarem e só vês errar os espectros lívidos da Saudade arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.
De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.
De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo, feio, torto, te avassalou supremamente, que a própria origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te, repele-te.
Tu não morrerás mais!

(CRUZ E SOUSA, Obra completa, Rio, Nova Aguilar, 1995, p. 616-617)

Claro está que não se trata apenas da ave, mas da ave de um significante, da ave cuja identidade sombria, noturna, constituiu-se artificialmente, construiu-se, como resultado surpreendente de um longo esforço de pensamento que teve lugar na Poesia.
Do significante “Nunca mais!” emerge a imagem de uma desilusão que não pertence ao poema, que não é do poema, mas sim ao lado de fora, ao externo, ao mundo, e que por isso mesmo coloca o poema em relação com o mundo: o poema não constitui um fora do mundo, um fora da história, não está alienado do mundo, tampouco está subordinado ingenuamente ao mundo.
A recorrência ao Corvo-significante, enquanto imagem da desilusão com o mundo, é, por si só, reconhecimento da positividade de um pensamento que se processa pela via da negatividade, negando o que não é – o artifício como mundo – para afirmar o que é – o mundo como artifício.
Não há em “Ídolo mau”, assim como em “The raven” (POE, The raven and other favorite poems, New York, Dover Publications, 1991), uma opção da parte do poeta entre as duas dimensões do mundo, uma opção ideológica, claro que não. Há uma relação texto-mundo que nos permite entrever um tensionamento dessas duas dimensões, que se dá num mais além da naturalidade sacrificada pelo processo de modernização, dado que atravessa as práticas literárias do século XIX.
No limite, o que interessa a Cruz e Sousa é dar a ver os traços que singularizam sua “alma”, que a constituem como sua própria alma, portanto, dar a ver a sua interioridade. Ocorre que essa interioridade só existe em relação com o mundo, como dimensão subjetiva que só alcança objetividade no mundo.
Logo, no poema de Poe como na prosa de Cruz, há algo de uma redução fenomenológica do mundo: o mundo, objetivamente, é solidão, é cinismo, é artifício, “constructo” na “ratio”, que, paradoxalmente, também não é o mundo, ou seja, não é o artifício que decide sobre a qualidade das coisas, que decide o que elas realmente são – porque artificial, no sentido lato, tudo é: tanto o mundo quanto o poema, a razão está por toda parte.
A fertilidade da intercessão Cruz/Poe consiste, afinal, no aguçamento do problema da relação sujeito-objeto, poeta-mundo, resultando na confirmação daquele ponto de vista de Paul Valéry (Variedades, São Paulo, Iluminuras, 1991, p. 194), segundo o qual “é a execução do poema que é o poema”.


Fragmento de ensaio publicado na Revista USP, N. 90, São Paulo, Junho/Agosto 2011. Este ano, como se sabe, completaram-se 150 anos de nascimento de Cruz e Sousa (1861). O que os donos das letras pátrias fizeram? Nada, claro.

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