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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

RESENHA | Fazendo a literatura afrobrasileira existir

ANELITO DE OLIVEIRA - Organizada por Zilá Bernd, a Antologia de poesia afrobrasileira: 150 anos de consciência negra no Brasil, que acaba de sair pela Mazza Edições, reedição atualizada de trabalho aparecido em 1992 sob o título de Poesia negra brasileira, é mais um gesto significativo para o necessário abalo das verdades estabelecidas no campo literário brasileiro com a contribuição de críticos, historiadores, pesquisadores, professores e, mais ainda, de jornalistas ignorantes.
A exemplo do que fiz aqui há pouco a propósito de Literatura e afrodescendência, antologia organizada por Eduardo de Assis Duarte e publicada pela Editora UFMG, também quero dizer, em face dessa antologia de Zilá Bernd (pesquisadora insuspeitável), que o fato de ser um dos autores elencados deixa-me numa situação meio desconfortável para dizer algo a respeito, sobretudo elogiar - e quero elogiar, inclusive, o primoroso trabalho gráfico-editorial.
O ideal seria, e é, que outros dissessem, avaliassem, criticassem, mas, sinceramente, não tenho muita esperança, ou quase nenhuma, quanto a isso. A mesquinharia tomou conta da vida sociocultural brasileira, dos meios de comunicação associados aos governos, da academia burguesa. E ressoa, desde sempre, um silêncio estratégico, sistemático, em torno da produção literária - não só criativa, mas também científica - de afrobrasileiros no país, como se essa produção não existisse, ou, de fato, não devesse existir.
Nomes como Luiz Gama, Lino Guedes, Solano Trindade, Oliveira Silveira, Oswaldo de Camargo, José Carlos Limeira, Ana Cruz, Jussara Santos, entre tantos outros que as duas antologias nos apresentam, não existem para as agências - escolas, faculdades, editoras, redações - e agentes - professores, pesquisadores, críticos, editores, jornalistas - do sistema literário brasileiro. Incluo-me entre esses inexistentes.
Trata-se de um fato grave demais, gravíssimo, para ser ignorado, e que sempre foi e continuará sendo ignorado em nome de um suposto bom funcionamento da literatura brasileira, em nome de um mito de literatura brasileira que remonta aos primeiros românticos, isto é, literatura brasileira como expressão de civilização brasileira - e os negros, como os índios e as mulheres, seriam uma ameaça a essa civilização.
Para o grupo étnico hegemônico nas Américas - não se trata de problema só da América do Sul, claro -, o grupo dos não-negros (pouco importa como seus membros se considerem etnicamente), o grupo que é maioria nos espaços de poder(é isso que conta mesmo) não é interessante que os negros existam totalmente, de todos os modos possíveis, mas que eles existam precariamente, apenas de alguns modos, sobretudo aqueles menos privilegiados, menos valorizados, os consagrados modos negros de existir.
É interessante, assim, que os negros existam para o trabalho braçal, corporal, para a carvoeira e o futebol, mas não para o trabalho mental - "o" trabalho, segundo a tradição etnocêntrica. A literatura, refinado trabalho mental, não seria para negros, portanto, sobretudo negros brasileiros, entes oriundos de uma cultura oral. O racismo científico, definitivamente, não é coisa do século XIX, ou, podemos pensar, o século XIX ainda não terminou no Brasil.
De um modo geral, a antologia de Zilá Bernd, assim como a de Eduardo de Assis, estimula-me a pensar que o reconhecimento da produção literária dos afrobrasileiros não pode se dar isoladamente, sem um trabalho pelo reconhecimento real - não retórico, como é comum no Brasil - dos valores históricos, culturais e econômicos dos afrobrasileiros, sem um trabalho político, portanto, empenhado na correção das desigualdades materiais e simbólicas que marcam as relações entre negros e não-negros.
Esse trabalho deveria começar urgentemente pelo "forçamento" (Badiou) do Governo Federal, através do seu Ministério da Educação, para que adquira exemplares das antologias e os distribua nas escolas e faculdades públicas do país, que leve os autores participantes das antologias para falar com alunos, professores e pesquisadores nessas muitas instituições. É um absurdo que todos os governos brasileiros nada tenham feito até hoje de inteligente, sério, pela literatura afrobrasileira.

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