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sábado, 3 de abril de 2010

LITERATURA | Criação

A oferenda


Veja, e depois me fale o que achou. Deixou sobre a mesa e foi saindo. Nunca mais voltou. Não sei onde andará, se continua vivendo por ali. Minto: fiquei sabendo outro dia que continua vivendo por ali, que ainda anda na noite. Talvez não seja tão difícil sua localização, o mundo é pequeno, cada vez mais, as noites sóbrias. Não sei exatamente o que lhe diria, sempre me vem à lembrança a enfermidade daquele nosso amigo. A oferenda tinha a ver com ele, com o fim do século passado. Nunca soube por que eu, tão distante, deveria ver. Tampouco soube por que deveria falar sobre o que veria. Não sei se me ocupei dessa questão objetivamente naqueles dias, eram tantas coisas, tantas pessoas, tantas imagens. Mas agora, aqui, tudo chega a me intrigar. A força de uma intriga é o que há de mais intrigante num sujeito. A ponto de chegar a não haver mais autonomia do que intriga nem do que está intrigado. Devia ver. E, num tempo, vi. A primeira vez foi como se já tivesse visto, e fiquei pensando se tivesse sido como se jamais tivesse visto. Sentir isso era algo bastante óbvio, coisa de quem está cansado de significados. A segunda vez foi como se eu tivesse passado a vida inteira evitando ver o que via ali. Passei alguns dias inquirindo o que estava por trás da natural resistência a tantos encontros, refletindo sobre a razão de tantos desencontros. E então, na terceira vez, comecei a compreender que não havia distância entre ver e ser naquele instante, que tudo se amalgamava numa mesma instância, numa noite-viver. Evidentemente, eu me havia resgatado do fundo de um esquecimento involuntário, reencontrava-me depois de tanto tempo naquele olhar, especialmente. Lá, no lado de dentro da noite, o desamparo era uma forma fundante de conhecimento. No limite, a morte. Inútil, dolorido, tentar explicar acontecimentos, encenações de um mundo inexplicável. Apenas ver, devia ver. Viagem do século XX.

2 comentários:

  1. Oi, Anelito. Vi seu artigo sobre o Mansur no Pensar e gostei muito.

    Lembro de um artigo seu sobre o Adão Ventura, quando ele morreu. Logo acima do seu saiu um artigo meu sobre Lugar Público, do José Agrippino.

    Como lá não se remunera, desisti de colaborar.

    Abs do Lúcio Jr.

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  2. Anelito: sugira um editor para o Wilson lá no Sul de Minas.

    Abs do Lucio Jr.

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