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domingo, 5 de junho de 2011

ANÁLISE | A política da tradição

ANELITO DE OLIVEIRA – Durante um longo tempo, a questão fundamental na vida literária brasileira foi ter uma tradição própria, diversa daquela imposta pelos colonizadores europeus. Ter uma tradição significava, de fins do século XVIII até as duas primeiras décadas do século XX, assumir no país uma identidade diferente daquela dos europeus, especialmente portugueses, uma identidade brasileira. Esse processo tem seu estímulo decisivo em dois fatos eminentemente políticos, como se sabe: a inconfidência mineira, em 1789, e a independência do país, em 1822, “citada” em 1922 pelos primeiros modernistas. Assim, ter uma tradição implica assumir uma identidade, e assumir uma identidade implica, por sua vez, entrar em conflito com outra identidade, visada como mais forte, o que nos conduz à ideia de tradição como problema, e não como - o que é estranhamente comum perceber entre nós - solução.
Enquanto se configurou como extensão reverente da tradição cultural europeia – Caminha, Anchieta,Teixeira, Oliveira etc -, a literatura foi, no Brasil, uma atividade ingênua, no mau sentido, incapaz de causar qualquer mal-estar ao colonizador, a começar pelo próprio escrevente – não escritor, para lembrar a célebre distinção de Barthes -, também ele, esse escrevente, “vestido” de colonizador. Hoje, nos exercícios de anacronia que nos habituamos a fazer, desentranhamos problemas fascinantes daquela produção textual fundante do que viria a se tornar uma literatura brasileira. Mas é preciso dizer, uma vez mais, que não havia uma intenção problematizante, digamos, ali, uma vez que essa intenção exige uma “consciência crítica”, para falar com Affonso Ávila, que só começa a se apresentar, de modo turbulento, com Antônio Vieira e Gregório de Matos e Guerra. Essa “consciência crítica”, atravessada por uma rude racionalidade, mergulhada na crise que define o sujeito barroco, é que faz emergir um problema onde só se via solução sob o signo do encantamento.
Para Vieira e Gregório, não basta abordar o entorno maravilhoso, é preciso abordá-lo e pensá-lo a um só tempo, é preciso abordá-lo e criticá-lo, a um só tempo. Trata-se de tirar as coisas do seu lugar natural, de investir contra sua naturalidade, inscrevendo-as na dinâmica historial, mais ainda: numa conflituosa dinâmica historial. As coisas não são o que são por um mero capricho da natureza, mas em função de um processo histórico conduzido a partir de determinados princípios e com vistas a atingir determinadas finalidades. Vieira e Gregório, como nos mostraram, mais recentemente, estudos de um Bosi, um Hansen, um Pécora, portam uma visão aguda sobre o seu tempo, e essa agudeza, para o propósito desta reflexão, interessa à medida que constitui índice gritante do modo problemático como uma nova civilização, a americana do Brasil, relaciona-se com aquela que a colonizou em definitivo, a europeia de Portugal. Para Vieira e Gregório, não é possível exaltar, seria falsidade exaltar, uma realidade inteiramente nova, um presente sem passado, algo estranho ao “velho mundo”. Criticando – pela via da doutrina ou da sátira -, ambos acusam a ausência e a necessidade, por outro lado, de uma tradição na cultura local, e, neste caso, tradição equivaleria a referencial de civilidade, compreendida, especialmente, como obediência.
Diz Vieira no “Sermão da Sexagéssima”:
"Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane, que é isto? Assim como Deus não é hoje menos Onipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, por que não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim para aprender a pregar; e vós para que aprendais a ouvir".

E Gregório, no seu denominado “Contemplando as coisas do mundo desde o seu retiro”:

"Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa."

Enunciando do fundo do conturbado mundo barroco, o pregador e o poeta colocam em relevo, evidentemente, questões complexas, operacionalizadas de modo sintético, arbitrário: cultura, civilização, verdade etc. No final do século XVIII, com o advento das Luzes, essas questões, como se sabe, receberão novos contornos, imprecisos, metodologicamente deficitários, mas ainda assim instigantes. Os neoclássicos, operando a partir de um viés restaurador de valores culturais complicados pelo Barroco, acabam por se sensibilizar para um aspecto dissonante da cultura local – seu “infame ruído”, dir-se-ia, lembrando já Cláudio Manuel -, um aspecto dissonante que decorre da natureza a que está vinculada essa cultura, que não é mesma, civilizada, da terra portuguesa. Urge compreender essa natureza que, conforme a regra do jogo artístico árcade haurida em poéticas como a de Boileau, deve funcionar como um princípio de beleza, referência, afinal, de verdade: o belo é o verdadeiro. A compreensão dessa natureza resulta, em Cláudio, numa espécie de saturação dos signos da tradição literária europeia e consequente emergência de uma profunda inquietação, que seria o traço distintivo de uma legítima tradição brasileira, investida das contradições que permeiam o tecido social brasileiro, uma contra-dicção, sem dúvida, em que muitas vozes se atritam.
Reouçamos o célebre soneto “L” de Cláudio Manuel:

"Memórias do presente, e do passado
Fazem guerra cruel dentro em meu peito,
E bem que ao sofrimento ando já feito,
Mais que nunca desperta hoje o cuidado.

Que diferente, que diverso estado
É este, em que somente o triste efeito
Da pena, a que meu mal me tem sujeito,
Me acompanha entre aflito e magoado!

Tristes lembranças! e que em vão componho
A memória da vossa sombra escura!
Que néscio em vós a ponderar me ponho!

Ide-vos; que em tão mísera loucura
Todo o passado bem tenho por sonho;
Só é certa a presente desventura."

À tradição enquanto contra-dicção, o Romantismo, em linhas gerais, opôs uma tradição nacional, instaurando a primeira e decisiva cisão no seio da literatura brasileira, ainda não avaliada a contento. Há uma linha de continuidade entre o Iluminismo e o Romantismo, bastante clara nos Suspiros poéticos e saudades de Magalhães, tanto quanto há uma linha de descontinuidade entre o Arcadismo – que mantém uma relação ambígua com o Iluminismo, conforme se depreende na Formação da literatura brasileira de Candido - e o próprio Romantismo, o que se explica, sobretudo, em função das contradições do Romantismo. Tanto quanto o Iluminismo, o Romantismo da primeira geração – Magalhães, Porto-Alegre, Dias - e da terceira – Castro Alves, Tobias Barreto – quis produzir consciência – uma linha de continuidade, portanto. Diferentemente do Romantismo, o Arcadismo se conformou a partir de um sensível estranhamento do “modelo” europeu, numa relação que caracteriza uma difícil – porque sincera – adesão ao local.
Primeiro movimento literário propriamente dito, comprometido tanto com a afirmação de uma literatura nacional quanto com a construção da nação, comprometido com a afirmação de uma literatura como parte do processo de construção da nação, o Romantismo expõe, categoricamente, a dimensão política da tradição literária, que consiste no seu caráter “inventado”, não “original”, para lembrar a distinção nietzscheana em que Foucault descobre uma espantosa produtividade para a compreensão da relação entre saber e poder. Não há, a priori, tradição nenhuma, toda tradição é inventada, e esse processo, encaminhado sempre coletivamente (autores isolados não “inventam” tampouco consolidam tradições) é, inegavelmente, político, implica escolha, seleção, divisão, inclusão e exclusão segundo uma escala de valores. O Romantismo foi, do início ao fim – se é que seu projeto já chegou ao fim -, uma empresa polêmica exatamente em função da essência ideológica que se encontra nessa escala de valores, como não poderia deixar de ser, o que denuncia esses valores como valores de uma determinada classe, não de todos que habitam o espaço social. Criando e pensando e criticando e organizando o presente e o passado literário do país, os polivalentes românticos, responsáveis pelos primeiros gestos historiográficos na literatura brasileira, deram impulso decisivo ao processo de canonização de autores que tem, como contraparte, a marginalização de autores.
Também atuaram, ao longo do período romântico brasileiro, autores como Korpo Santo, Luiz Gama e Sousândrade, hoje citados, pesquisados, valorizados, mas que ficaram relegados ao esquecimento durante décadas. Apesar de importante, necessária, essa valorização desses autores no presente, no nosso presente, não altera radicalmente a imagem que temos do passado romântico brasileiro, do nosso Romantismo, o que nos leva à compreensão da força da tradição, que a tradição é, acima de tudo, uma força que se anuncia já no modo como nos referimos a ela: no singular. O Romantismo brasileiro continua a ser representado – e cultuado e ensinado – pelas três gerações, em termos de poesia, e por Macedo, Guimaraens, Taunay, Alencar e o primeiro Machado, na prosa. Demonstração clara da força do tempo passado sobre o tempo presente, ao contrário do que geralmente pensamos, nós, os entusiasmados prisioneiros do tempo presente.


REFERÊNCIAS


ÁVILA, Affonso. Sousândrade: o poeta e a consciência crítica. In: O poeta e a consciência crítica. Rio de Janeiro: Summus Editorial, 1978. 2ª Ed.
BARTHES, Roland. Escritores e escreventes. In: Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1970.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
COSTA, Cláudio Manuel da. Soneto L. In: A poesia dos inconfidentes. Org. Domício Proença Filho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Machado e Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: Nau/Puc-Rio, 2008. 3ª Ed.
GUERRA, Gregório de Matos e. “Contemplando as coisas do mundo desde o seu retiro”. In: Cinco séculos de poesia: antologia da poesia clássica brasileira. Sel. e intr. Frederico Barbosa. São Paulo: Landy, 2000.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PÉCORA, Alcir. Teatro do sacramento. São Paulo: Edusp, 1994.
VIEIRA, Padre Antonio. Sermão da Sexagésima. In: Os sermões. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.


Texto publicado no livro Diálogos com a tradição: permanência e transformação, Org. Osmar Oliva, Editora Unimontes, 2010. Algumas modificações foram feitas para esta publicação.

ENSAIO | Os sem-valor

ANELITO DE OLIVEIRA - A discussão sobre valores morais, éticos e culturais, encaminhada a partir de uma perspectiva transformadora, livre de quaisquer preconceitos, é imprescindível neste momento de exaltada estabilidade econômica no país, por um lado, e apreensiva instabilidade social, por outro. Com a pobreza histórica, digamos, administrada pelo Governo Federal – o que não quer dizer solução, como atesta o recém-lançado programa “Brasil sem miséria” –, o ambiente é dos mais propícios para o enfrentamento de índices alarmantes, como o da violência urbana, do alcoolismo e consumo de drogas em geral, evidências de degradação do humano. São índices que não podem ser contidos, tampouco revertidos, a partir de políticas públicas de ordem apenas econômica. São índices que exigem uma compreensão mais ampla, inclusive com o amparo da economia, para que possam ser operacionalizados de modo realmente eficaz. Com efeito, é exatamente no horizonte da economia que percebemos a consequência indiscutível da crise de valores, sempre evocada pelos moralistas de plantão, para o presente e futuro do país: pessoas inativas, fora da escola, na mendicância, desempregadas, dependendo de assistência dos governos. Economicamente, essas pessoas, todo um contingente de brasileiros ainda na miséria, representam ônus para o país – presídios, SUS, bolsas, UPPs - quando poderiam representar bônus. De um modo geral, os inativos, “sem-o-que-fazer”, “vagabundos”, são tidos como pessoas desprovidas de valores morais, éticos, culturais, religiosos, sem os considerados referenciais estruturantes da vida em sociedade, referenciais cristãos, em sua maioria, como sabemos: amor ao próximo, honradez, solidariedade, caridade, dignidade, entre outros. Trata-se de valores definidos aprioristicamente, sobretudo em virtude de dogmas cristãos, que acabam por entrar em crise e, finalmente, dissolvem-se na experiência nua e crua da vida social, na luta pela sobrevivência. Fato natural, sem dúvida, num país marcado pelo sincretismo religioso, mas contra o qual o indivíduo resiste em função do projeto civilizatório iluminista que determinou, como não poderia deixar de ser, os contornos da sociabilidade brasileira. Para se manter nos limites da civilização, diferenciando-se do bárbaro, o brasileiro em geral “funciona”, sem dúvida, a partir de princípios universais, seguidos pela maioria dos povos colonizados por cristãos europeus. Princípios que, num dado momento, entram em choque com suas especificidades sociais, materiais, resultantes da vida em sociedade. Nesse choque inusitado, toda uma escala de valores, assimilada à força, dilui-se como demonstração de sua inconsistência real, na vida comum, na “práxis” cotidiana. Se os valores clássicos de ordem religiosa, filosófica, política, cultural, econômica, impostos pelo processo civilizatório, tivessem validade no cotidiano dos que vivem na linha de pobreza no país não seriam, certamente, abandonados. O abandono desses valores se deve justamente ao fato de que não significam nada, à medida que aqueles que os ostentam – os pobres – não são valorizados, mas antes desvalorizados, relegados às margens de um país regido, historicamente, segundo uma permanente obsessão pelo absolutamente novo: um novo Regime, um Estado Novo, uma nova capital, uma nova Constituição e, assim, novos valores constantemente a superar valores decretados, pelas elites, como velhos, muitas vezes da noite para o dia, sem que sequer possam florescer e gerar os “frutos” prometidos. A efetiva democratização, por exemplo, que deveria continuar depois da “abertura” de 1985, é, na política, um valor então ostentado com entusiasmo e logo abandonado, nos anos 1990, sem chegar a se estabelecer em sentido forte, como regime dos “polloi”, da maioria pobre. Já não se postula a democratização do país, apesar de toda a evidência de um “pensamento único”, da vigência de uma ordem ainda autoritária, agora encoberta por um cinismo insuportável. O que está por trás desta situação, do abandono da democratização como valor político? À medida que a democratização não é mais um valor no cenário político nacional, mas um mero ingrediente retórico dos estabelecidos, é natural que o contingente de excluídos, de injustiçados por uma ideia bastante restrita de democracia, não se responsabilize mais pelo espaço público, não se preocupe com a preservação de valores fundamentais para a “saúde” do espaço público, como a tolerância. Cenas comuns nos centros urbanos – grandes, médios e até pequenos – são agressões gratuitas, das mais “leves” às mais pesadas, de um olhar a um palavrão ou um disparo de arma de fogo, como se as pessoas tivessem ido ali para exercitar sua vontade de agredir. Como resposta a este quadro de guerra, administrações públicas investem quantias exorbitantes em projetos de reurbanização, em novas instalações governamentais, a fim de deixarem, elas mesmas, o quanto antes o centro da cidade, o espaço historicamente consagrado como público, com a ilusão de garantir segurança, tranquilidade e produtividade aos burocratas. Como uma espécie de compensação, as antigas instalações governamentais são convertidas em centros culturais, como se a cultura pudesse resolver o problema que assola o espaço público – a banalização da violência –, pudesse acalmar as pessoas, discipliná-las. Realmente, isso pode surtir efeito em relação a um certo número de pessoas, ainda não totalmente adulterada pela experiência da cidade, os rebeldes sem causa da classe média, por exemplo. Mas a possibilidade é mínima disso surtir efeito em relação à multidão de pessoas que vai para o centro das cidades diariamente para “ganhar a vida”, para as quais o centro é um espaço de vivência da dura realidade capitalista. Essas pessoas têm, na verdade, um problema político com a cidade, que consiste na experiência da injustiça que caracteriza, decisivamente, sua relação com a cidade dos anos 1990 para cá. Quando a democratização era um valor político, diretamente vinculado a um ideal de justiça, o grande contingente dos sem-valor de hoje agia, sem dúvida, segundo uma perspectiva de cuidado, embalado pela canção de Milton e Brant: “há que se cuidar da vida”, “há que se cuidar do mundo”. Cuidar era, então, fazer justiça. Hoje, sob a égide de uma ordem estatal excludente, esse contingente exibe, com razão, um descaso pelo espaço público, atitude que precisa ser pensada como algo politicamente motivado, não como algo resultante de um excesso de democracia trazido pela famigerada “abertura”. A motivação, no caso, parte daqueles que, alçados às esferas de poder público, investem, absurdamente, em processos de precarização da democracia, de minimização de liberdades individuais sob o argumento – cínico, claro – de que estão investindo na sustentabilidade do social. Na verdade, as pessoas em geral – pobres, em sua maioria – interessam, mais do que nunca, como números, ou fontes de pesquisa, para o poder público, não como humanos, tampouco cidadãos portadores de direitos. São os sem-valor, de quem os moralistas interessados ainda por cima cobram valores morais.