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quinta-feira, 21 de março de 2019

ENTREVISTA | Conversa sobre James Baldwin





No início de fevereiro passado, recebi mensagem, via Messenger, do repórter Carlos Andrei, do jornal O Tempo, diário produzido em Belo Horizonte (MG), consultando-me sobre possibilidade de entrevista a respeito do escritor negro James Baldwin (1924/1987). Sinalizei positivamente, propus que a conversa fosse por escrito e, na sequência, respondi às perguntas com toda boa vontade mesmo em meio a uma gama de atribulações, passando a esperar, depois, que o material saísse na íntegra, na forma pergunta/resposta. Infelizmente, saiu, muitos dias depois, apenas uma pequena matéria, com algumas referências ao que eu procurei pontuar de modo a contribuir, tanto quanto possível, para relacionar Baldwin às agruras do tempo presente. Em especial, quis ressaltar a contribuição que a obra do romancista e ativista pode nos dar, por exemplo, para o enfrentamento crítico da questão racial. Segue aqui, com leves correções, o que, por questões compreensíveis em jornalismo profissional, não foi conveniente à “grande imprensa” divulgar.     


CARLOS ANDREI Desde o ano passado, a obra de James Baldwin vem ganhando mais visibilidade em função do documentário Eu não sou seu negro (I am not your negro) e da adaptação de Se a rua Beale falasse (If Beale street could talk) para os cinemas, com estreia no Brasil em janeiro passado. Até então, como você percebe a circulação da ficção dele? Estava restrita a um círculo de especialistas e poucos conhecedores?

ANELITO DE OLIVEIRA Sim, Baldwin estava praticamente esquecido nas últimas três décadas não só no Brasil, mas nos países falantes de língua portuguesa, a começar por Portugal, onde sua obra voltou a circular ano passado em novas traduções. O documentário "I am not your negro" fez ressurgir o interesse pelo autor num momento em que antigas chagas voltaram a abalar a vida social por toda parte, como o racismo contra negros, a misoginia e a xenofobia. Creio que, desde os anos 1960, o interesse pela obra de Baldwin no Brasil, em especial, foi relativamente pequeno, mesmo entre grupos minoritários, como negros e lgbtqs, em razão da difícil relação entre intelectuais de esquerda e os EUA, sempre percebido pelo prisma do imperialismo. Ainda hoje não é fácil compreender que o fato de um autor ter nascido num determinado país, escrever na língua oficial daquele país, não significa que ele seja um mero reprodutor de preceitos ideológicos característicos das elites daquele país.

CA Ele viveu nos Estados Unidos num momento em que os movimentos pelos direitos civis estavam em andamento. Pode-se dizer que Baldwin se vale da literatura para contribuir para os debates e reflexões que se fizeram em torno do combate ao racismo a partir desses movimentos?

AO Baldwin pertence à linhagem de escritores-críticos, que praticam a literatura não só com interesse estético, mas sobretudo com interesse político. Sua obra não é o que se denomina vulgarmente como "literatura engajada", empenhada na defesa de causas partidárias, ideológicas etc. Trata-se de obra que, antes de mais nada, é fazer artístico de qualidade extraordinária, em que a linguagem desponta como o dado mais importante. A contribuição para o debate de temas como racismo, homossexualismo, misoginia e desigualdade social se dá, em Baldwin, sem os estereótipos clássicos de todo realismo, sem conversão da literatura em panfleto. A linguagem literária, com seu estatuto polifônico, possibilita que Baldwin exponha a problemática de modo sempre rico, sem os maniqueísmos simplistas comuns aos discursos dos movimentos sociais.

CA Diversos autores comentam como Baldwin antecipou discussões que depois seriam desenvolvidas em outras áreas do conhecimento, como as ciências sociais, ao pensar o racismo não desvinculado das intersecções entre gênero e sexualidade. É talvez justamente por serem permeadas por essa visão que as obras dele vêm cada vez mais despertando interesse?

AO Sem dúvida. O chamado "feminismo interseccional", que tem como uma de suas principais representantes a estadunidense bell hooks (sic), tem raízes evidentes na obra criativa e crítica de Baldwin. Se tomarmos um personagem como Rufus, protagonista do romance "Terra estranha" (Another country), vemos que a complexidade do racismo, segundo a perspectiva baldwiniana, está relacionada a classe social e sexualidade, o que significa que, para compreendermos o racismo, é preciso discutir classe e sexo. Na personagem Ida, nesse mesmo livro, irmã de Rufus, o racismo se mostra conectado a gênero, cultura, afeto, geografia etc, como um elo numa corrente social que enreda todos os sujeitos.


CA Por outro lado, enquanto o escritor ainda era vivo, você acha que a obra dele pode ter sido recebida com ressalvas, inclusive por integrantes do movimento negro? Você acha que ele se situava numa posição muito delicada naquele momento?

AO Sim. Movimentos sociais constroem uma imagem ideal de seus representados, o "seu" negro, a sua "mulher", o seu "homossexual" etc. Trata-se de construção com finalidade política, que visa afirmar uma identidade que é negada pelas forças reacionárias de uma sociedade, processo que, obviamente, não pode lograr êxito sem determinação do tipo "o negro é isso", "a mulher é isso", "o homossexual é isso" etc. O mal-estar produzido por Baldwin, desde o início nos anos 1950, deveu-se a sua resistência a se enquadrar na imagem ideal de negro, pobre e gay. Sua auto-imagem era de um homem, na acepção do humanismo filosófico francês que estava em voga nos anos 1940, tempo decisivo no processo de formação do autor de "Giovanni's room" (O quarto de Giovanni). Para esse humanismo, professado por autores como Martin Heidegger, o homem se define em termos interiores, de valores éticos e culturais, não em termos exteriores, de valores econômicos, raciais, sexuais. Baldwin, como o personagem de Sidney Poitier no filme "Adivinha quem vem para o jantar", queria ser percebido como um homem, não apenas como um negro, o que faz dele um escritor desprovido de quaisquer preconceitos,  a começar pelo preconceito racial. Disso resultou a reprovação radical de sua obra por Eldrigde Cleaver, membro dos "Panteras negras", para quem Baldwin não passava de um adulador de brancos - um equívoco grosseiro, claro. 

CA Baldwin exilou-se na França. De que forma essa experiência se reflete em seus livros, a seu ver?

AO Baldwin passa a viver na França a partir de 1948, quando tinha 24 anos, portanto. Segue o caminho de vários autores estadunidenses em direção à Europa, a começar pelo pós-romântico  Henry James  no fim do século XIX.  Entre autores negros, Baldwin é o segundo célebre a se estabelecer na França, tendo sido precedido por Richard Wright, autor do clássico "Native son" (Filho nativo). Esse auto-exílio é decisivo no processo criativo do romancista, como se vê tanto em O quarto de Giovanni quanto em Terra estranha. O distanciamento geográfico permite ao autor uma percepção aguda, desmascaradora, da vida social estadunidense, sem que isso signifique uma superestimação ingênua da França. Baldwin é exemplo notável de sujeito negro que experienciou criticamente a condição diaspórica num momento em que, assim como hoje, o mundo está mudando radicalmente de pele.

CA Se a rua Beale falasse sai agora pela Companhia das Letras, junto com o filme. A obra aproxima-se das anteriores ao abordar a questão do racismo, certo? Mas você acha que ela também traz outros aspectos que em romances predecessores Baldwin ainda não havia abordado?

AO O modo como Baldwin explora a questão racial é sempre dialético, centrado nas contradições que envolvem a experiência social do negro estadunidense. Não se trata de abordar o negro para o negro, digamos, mas o negro em relação com o não-negro e com as esferas de poder. O romance Se a rua Beale falasse explora uma das relações mais dramáticas da experiência social do negro por toda parte, não só nos EUA, que é a relação com o poder judiciário. O racismo arraigado na "forma jurídica", para lembrar Foucault, é o acréscimo considerável  que a obra apresenta em relação à produção anterior do autor: a lei é branca.

CA De que forma você acha que as narrativas do escritor podem reverberar no Brasil de hoje? E por que elas seguem pertinentes no presente?

AO O Brasil de hoje é desenvergonhadamente racista. Temos um presidente que se elegeu alardeando seu racismo. Políticas de promoção da igualdade racial, como cotas nas universidades públicas e reconhecimento de terras quilombolas, praticadas pelos governos petistas, turbinaram o ódio aos negros que, no fundo, sempre foi cultivado pelas elites "escandinavas" brasileiras. Por outro lado, a matança de lgbtqs e mulheres segue em alta por toda parte no país, também com a autorização do governo defensor da família, da ordem e das armas. Neste país da idade das trevas, a obra de James Baldwin soa providencial, inspiradora para a luta necessária contra o racismo, a homofobia e o feminicidio, uma luta que não pode ser travada, evidentemente, no vácuo, sem referências diversas, inclusive literária. 


CA Há algum texto específico dele que você gostaria de ver publicado aqui no Brasil, caso ainda não tenha sido traduzido?

AO Além de grande romancista, Baldwin foi poeta, dramaturgo e extraordinário ensaísta, autor de obras que tiveram um impacto enorme nos EUA da década de 1960 e pautaram a luta pelos direitos civis do povo negro. Uma coletânea de ensaios  fundamental, inclusive para se compreender a obra romanesca do autor, é Notes of a native son (Observações de um filho nativo).



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