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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

RESENHA | A potência do ficcional

ANELITO DE OLIVEIRA - O segundo livro de Leida Reis, A invenção do crime, publicado pela Record, é um caso literário significativo neste ano em vários sentidos, daqueles que suscitam inquietações que nos parecem dignas de exposição pública. Primeiramente no sentido da formação de uma autora: é o retorno de um nome que estreou discretamente em 1991, com um livro de contos de título altamente sugestivo, The cães amarelos (de presente), edição da própria autora de que poucos tomaram conhecimento, e que é, seguramente, um dos trabalhos narrativos mais relevantes aparecidos ao longo daquela década em Minas Gerais. Foram nada menos que 19 anos de silêncio, período em que parecia que a escritora era mais um dos tantos que aparecem e desaparecem constantemente na vida literária, vítimas de um sistema complicado, para dizer o mínimo, em que o sucesso não raro custa a própria alma, exigindo um rompimento com os princípios mais “sagrados” do indivíduo, uma renúncia à autenticidade. Escritores que não se rendem aos esquemas de produção e circulação impostos pela indústria cultural, que implicam relações simbólicas e materiais, geralmente são marginalizados.
A invenção do crime mostra que Leida Reis esteve num silêncio produtivo durante todo esse período, empenhada na construção de um estilo “seu” num tempo em que o estilo, assim como outros elementos clássicos, deixou de ser um valor real na cultura, nas artes, na literatura, em que não ter estilo passou a ser uma atitude louvável, desejável até como mecanismo de facilitação de vendas. Nestas duas décadas, anos 90/00, abertas efetivamente com as “quebras de tradição” político-econômica nos anos 80, estilo passou a significar uma espécie de afirmação da noção de identidade como coisa fixa, eterna, o que, como pensa Stuart Hall, tornou-se impraticável na pós-modernidade, quando as identidades se tornaram flexíveis, ocasionais. Construir um estilo é, neste cenário de desestilizações, tarefa arriscada, à medida que pode ser interpretado, na cínica cultura letrada em que nos encontramos, como ostentação de uma identidade, de um modo próprio de escrever, quando não ter identidade é mais vantajoso, significando que se tem todas as identidades, uma para cada situação. A autora atravessa com ânimo invejável essa questão, forjando seu estilo em meio a ecos de autores brasileiros e estrangeiros em atividade.
De certa forma, o esforço da escritora neste livro consiste em encontrar um ponto fixo, uma referência auto-sustentável, para estruturar um discurso razoável, verossímil, sobre o agora, sobre este espaço-tempo que se define por uma permanente fluidez, por uma dinâmica de fluxos em todos os segmentos, dado responsável por toda sorte de complicações: social, cultural, ética, política, econômica etc. Essa referência é encontrada numa imagem que há muito está em evidência como sendo ideal do sujeito pós-moderno: um homem “semiesquizofrênico”, como ele mesmo se define, célebre escritor mineiro, amigo de Mia Couto e Agualusa, figura com mais de 60 anos, morador de BH, autor de romances policiais, leitor, naturalmente, de Poe, Agatha Christie, Conan Doyle e outros nomes do cânone policialesco. A partir desse narrador estereotipado – e por isso mesmo “mais” real –, Leida Reis articula seu romance (evidentemente, também um metarromance, ocupado com a reflexão sobre a arte de narrar) a duas questões decisivas na contemporaneidade ocidental, em termos literários e culturais, que já provocaram tantas páginas, como as de Benjamin, Foucault, Ricoeur e, no Brasil, de Silviano Santiago: a questão do sujeito e a da narrativa.
Valendo-se cautelosamente, sem exageros fáceis, do suspense dos romances policiais, o narrador d´A invenção do crime, num procedimento bastante comum na literatura e no cinema neste tempo de entusiasmo globalizante, leva-nos a cinco lugares diferentes (Líbia, Rio de Janeiro, Angola, Romênia, São Paulo), relatando situações aparentemente criminosas, antes de chegar ao ponto crítico da obra, digamos: o universo de um escritor “sui generis”, já que nem todo escritor tem o hábito de dar 32 voltas e meia (!) agarrado ao seu cão no apartamento, dotado de uma consciência crítica sobre a complexidade da “psique” que lhe permite administrar sem sobressaltos a própria loucura. O perfil estranho desse narrador, que só encontramos no último longo capítulo do livro, fundamenta, ao final das contas, a estranheza de que se reveste a narrativa dos acontecimentos ao longo dos cinco capítulos anteriores: um narrador estranho narra coisas estranhas, cuja compreensão exige uma elucidação do seu ponto de vista, donde emana a especificidade de sua percepção. Dizer que esse ponto de vista é o da literatura – como não? – é um lugar-comum que, automaticamente, conduz-nos à velha pergunta sobre o que pensa, então, a literatura a respeito do entorno de que se alimenta, bem como a respeito de si mesma.
Segundo o ponto de vista do narrador deste novo livro de Leida Reis, o maior castigo que um criminoso pode receber não é a prisão, o tradicional confinamento atrás das grades, nem mesmo a morte física, civil ou moral, mas sim o desaparecimento do mundo visível, do convívio social a que está acostumado, a partir de um apagamento de todos os elementos que configuram sua identidade – documentos, bens materiais e simbólicos, relações pessoais etc: é o que se passa com um traficante de armas na Líbia, com um traficante de drogas no Rio e com um Promotor de Justiça na Romênia, por exemplo. O maior castigo é, portanto, a invisibilização do sujeito, o que significa que, para o narrador, existência pressupõe visibilidade, que quem não é visto não existe efetivamente. A base do novo “método” punitivo é o polêmico conceito de desconstrução de Jacques Derrida, conhecido, claro, por um escritor cultivado, leitor de Freud e Althusser. Tornar criminosos invisíveis, apagar tudo que os constitui enquanto sujeitos num determinado lugar no mundo, equivaleria a uma aplicação – não ao pé-da-letra, como o narrador enfatiza a fim de realçar sua honestidade intelectual e garantir credibilidade à sua narrativa – do conceito de “desconstrução” de Derrida.
Um “método” de punição tão inovador, haurido na filosofia contemporânea, acaba por demandar um personagem igualmente novo para colocá-lo em prática – que o narrador considera como ápice da sua obra de escritor –, cujo nome é apenas Herói, sempre grafado com “H” maiúsculo, índice fundante, naturalmente, do mundo da literatura ocidental. Disso, dessa aproximação irônica de dois campos de conhecimento tão convergentes quanto divergentes entre si, literatura e filosofia, decorre a fertilidade romanesca d´A invenção do crime. Ali aonde nem mesmo a filosofia derridiana chega – porque se restringe ao campo conceitual, como pontua o narrador –, no meio da realidade como ela é, com sua avalanche de surrealidades, a literatura, com sua força de imaginação, avança, livre das amarras de um pensamento lógico, com a finalidade precípua de ativar o campo das impossibilidades. O Herói, com “H” maiúsculo sempre a realçar sua auto-suficiência, funciona como um agente do impossível em relação a uma problemática premente neste século, que vitima um enorme contingente de pessoas por toda parte: a criminalidade vinculada ao tráfico de drogas e outras tantas mazelas sociais.
Aproximando ironicamente literatura e filosofia, sem intenção de praticar uma pernóstica literatura filosofante, a ficção de Leida Reis logra um desvio da narrativa policial vulgar, praticada pelo pior Rubem Fonseca e seus imitadores no país, em favor de uma perquirição sobre o lugar da literatura num mundo criminal, onde, como nunca, a moda é matar, até porque, em países como Brasil e Angola, a punição é para poucos. Como a literatura pode contribuir para mudar essa situação, uma vez que não pode ficar indiferente a isso pelo simples fato de que a razão de ser da literatura é o humano, pelo simples fato de que a literatura é referência de humanidade? A invenção do crime nos faz pensar na liberação da potência do ficcional como contribuição importante a esse processo, isto é, no enfrentamento da realidade a partir de um “método” não-realista, que não reproduz a lógica estúpida da realidade social – no caso, aquela: para cada crime bárbaro, um castigo mais bárbaro ainda –, com o qual não se tenta corrigir momentaneamente a realidade, mas superá-la. À luz de um tal “método”, a realidade, com seus crimes e outros “prazeres”, resulta de uma invenção tanto quanto a literatura, motivo pelo qual não há sentido na subordinação desta àquela, como fazem os realistas de hoje e sempre, condenando a literatura ao pequeno mundo decadente das “belas letras”, sem nexo com o mundo comum de cada dia.


Texto publicado no jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 30 de outubro de 2010.

sábado, 6 de novembro de 2010

ARTIGO | Coisa agônica

ANELITO DE OLIVEIRA - Livro sem destino, produção da Editora Unimontes, é o quinto trabalho de Osmar Pereira Oliva, um autor que está decidido a construir uma obra poética. Antes, apareceram As esquinas dos homens (2002), Canção obliqua (2004), Poemas do abismo & alguns ecos de Minas (2008) e Monumentos de palavras (2009). Com este trabalho, completam-se cinco publicações em menos de uma década. Realmente, não é pouca coisa num país onde publicar ainda permanece um desafio, sobretudo publicar poesia.
A poesia que pulsa neste Livro sem destino, assim como a dos livros anteriores, tende a nos remeter um pouco à razão dessa perseverança na caminhada. Não se trata de uma razão meramente literária, mas, sobretudo, de uma razão existencial, cuja compreensão impõe o tensionamento de dados cruciais tanto da experiência estética mais recente e mais remota quanto de uma certa experiência pensante, para não dizer filosófica.
Livro sem destino dá continuidade a um modo de relacionamento entre poeta e linguagem que destoa fundamentalmente daquele que se tornou hegemônico na literatura brasileira de fins dos anos 1950 até meados dos anos 1980, que tem num Mário Faustino, num Age de Carvalho, numa Orides Fontela e num Antônio Fernando de Franceschi, poetas reflexivos, algumas de suas melhores referências.
Esse relacionamento é marcado pela desconfiança sobre a possibilidade de a linguagem dizer totalmente o que o sujeito, digamos, deseja dizer a outrem, concretizando um diálogo na esfera intersubjetiva, para além do face-a-face cotidiano. Naturalmente, essa desconfiança teve e tem sua motivação num Mallarmé, num Montale, num Guillén, num Cabral, bem como num Wittgenstein, num Heidegger e num Adorno.
À luz desses autores, ou à sombra do drama de escrever que eles acabaram por fazer emergir, a linguagem, mesmo sendo linguagem poética, não seria altamente significativa para representar o campo do sensível. Seria caracterizada por uma pobreza endêmica, uma coleção de lugares comuns, um código convencionado para o uso de homens práticos, enfim, um obstáculo à expressão de uma inteligibilidade outra.
Esta questão, como se sabe, esteve no centro dos debates sobre poesia nos anos 1970 e 1980 e alimentou reações de todo tipo no meio literário – éticas, políticas, estéticas, morais etc – até cair no esquecimento nos anos 1990, especialmente no Brasil, quando a diversidade de procedimentos literários passou a ser aclamada como positiva, interessante, politicamente correta, conseqüência de uma exaltada democratização da cultura.
Um livro que hoje anda esquecido, como tantos que deram à poesia um lugar especial entre os saberes, era uma das principais referências para esses debates naquele tempo, sempre evocado: Linguagem e silêncio, de George Steiner. Ali se coloca, de modo claro e produtivo, a situação crítica dos poetas em face da linguagem: não se trata de falso dilema, mas de algo diretamente vinculado à dinâmica historial, ao mundo desalmado em que vivemos.
Nos poemas de Livro sem destino, a linguagem diz o que se passa na interioridade de um sujeito, o que por si só já é índice de uma espécie de reconciliação entre poeta e linguagem: vemo-los, dir-se-ia, de mãos dadas a conduzir um processo de significação bastante regular, sem sobressaltos no plano do enunciado. Todavia, essa regularidade parece atravessada por um desatino existencial, uma danação, que soa como índice de uma crise no plano da enunciação, ali onde, obviamente, o sujeito não domina o todo de que é parte.
Já a partir do seu título sugestivo, este poema, com o qual o livro se abre, convida-nos a pensar nesse plano, na totalidade do dizer:

Revelação


É da escuridão que saio sempre
E quanto mais a luz sobre mim incide
Mais me apago
Um corpo morto avulta e vai diminuindo
Até sumir de todo.


Ao reconhecer o lugar de onde emerge como ambiente privado de luz, o sujeito nos estimula a compreender o seu drama a partir de um horizonte romântico, como algo vinculado a uma essência humana de que ele seria o único portador, donde resultaria sua diferença em relação a outrem, sua qualidade de poeta. Isso numa primeira leitura. O que esse poema quer revelar – e revela já – é que a privação de luz constitui uma fatalidade peculiar ao sujeito, que a escuridão é sua condição, seu modo dramático de ser para o mundo.
Assim é que esse sujeito acaba por se revelar também como sujeitado nessa cena de enunciação em que se encontra envolvido, acaba por se revelar como objeto onde parece estar situado apenas como sujeito, como falado onde parece ser apenas o que fala. Deriva dessa situação, a meu ver, a fertilidade do poeta Osmar Pereira Oliva: estar imerso na escuridão, num lugar de indeterminações, alimenta um incessante desejo de saber sobre o “é” das coisas, desejo que se tem apresentado como a própria razão de ser da obra.
Nos livros anteriores, o foco desse desejo, da vontade de saber, foi a humanidade (As esquinas dos homens), a alteridade (Canção obliqua), a identidade (Poemas do abismo & alguns ecos de Minas) e a história (Monumentos de palavras). Agora, neste Livro sem destino, o foco é o corpo, que, ao contrário daqueles temas enfocados, atua sobre a linguagem como uma espécie de contraforça, exigindo, como forma de garantia mesma da inteligibilidade estética do que se diz, como referência de corporeidade, uma expressão mais orgânica, menos idealizante.
Nos poemas aqui reunidos, percebe-se facilmente a luta entre um conhecimento racional sobre o corpo, com todos os seus pré-juízos morais, e uma experiência de estar num corpo, de se saber, paradoxalmente, sendo em junção com o que não é, ali no meio da matéria impura, pecaminosa. Essa luta poderia cessar, alias, poderia até nem se dar, já que se aceitou, como dádiva cristã, o sacrifício evocado na epígrafe. Mas não: um sujeito luta em meio a um discurso, e a poesia se afirma, uma vez mais, como coisa agônica, sem destino.


Texto publicado como prefácio a "Livro sem destino", de Osmar Pereira Oliva, Editora Unimontes, 2010. Algumas alterações foram feitas para esta publicação.