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quarta-feira, 24 de junho de 2009

UNIVERSIDADE | Janine e a USP

ANELITO DE OLIVEIRA - Paul Valéry tinha um certo desdém por aqueles que se davam ao trabalho de formular perguntas para as quais, no seu entendimento, já tinham resposta. Tipo de situação que se apresenta no artigo de Renato Janine Ribeiro sobre a crise na USP (“Que universidade é essa?”, Folha de S. Paulo, Mais!, 21 de junho 2009). Ora, na pergunta do seu título já se revela a resposta: é a universidade distante da realidade comum, experienciada diariamente pela maioria das pessoas. “Essa” - demonstrativo para coisas, seres ou situações distantes - é a universidade pública brasileira em geral, estadual ou federal. O modo de ser universidade que a USP expõe neste momento não é patrimônio de São Paulo, mas do país. Um modo complicado, que está a exigir, ano após ano, descomplicação, compreensão, para que sobre ele se possa atuar de maneira adequada. Óbvio que, para resolver um problema, é preciso enfrentá-lo adequadamente, abrindo mão de soluções pré-determinadas.
A crise na USP tem ensejado contribuições expressivas para esse enfrentamento. A de Janine não é mais uma, mas uma outra contribuição bastante especial em virtude da sua relação direta com a Capes, órgão responsável por parte da regulação da pesquisa universitária no país. No seu artigo, falam o professor da USP e o ex-diretor de avaliação da Capes no período de 2004/08. Disso, sobretudo, decorre uma espécie de “harmonia pré-estabelecida” na argumentação, que acaba por relativizar os dados objetivos da questão. O primeiro desses dados é que, se a “USP é a melhor universidade da América do Sul”, como Janine abre seu artigo afirmando, não há por que negar a existência efetiva de um “povo USP”, formado por seus professores, pesquisadores, alunos e servidores técnico-administrativos. É esse “povo” que vem, ao longo de tantos anos, pesquisando, escrevendo, editando, ministrando aulas, aprendendo, mantendo a burocracia, cuidando do patrimônio edificado, vigiando, cozinhando, tomando conta do lixo etc.
A USP é obra do “povo USP”, assim como as outras universidades públicas são obras dos seus respectivos “povos”. Ao “povo UFMG”, cabe o reconhecimento pelo que aquela universidade é, ao “povo UNB” também e assim sucessivamente. Não é questão de mérito, de “meritocracia”, mas de reconhecimento, daquilo que implica uma problemática afim da democracia tanto quanto da epistemologia: não há democracia nem conhecimento sem reconhecimento também do que está escondido, invisibilizado, na história: a “cicatriz” de Ulisses no célebre texto de Auerbach. Dizer que “o povo que existe é o paulista, que sustenta a USP” é bastante simpático, desperta a admiração daqueles que, situados nos diversos degraus da pirâmide social, não cessam de acusar as universidades públicas de elitistas, burguesas e excludentes. Mas, na verdade, esse tipo de colocação constitui um lugar comum, naturalmente demagógico, sobre instituições públicas nos chamados Estados de Direito Democráticos. Rigorosamente, acaba por dissolver a especificidade na generalidade, o concreto na abstração, simplificando o que deve ser enfrentado em sua complexidade.
A existência do “povo USP” não pode ser pensada, ao contrário do que Janine parece sugerir, a partir de uma formal recorrência a palavras com “fumos” de conceito que nos foram legadas politicamente, mediante relações de poder, pelos gregos e romanos antigos. O que o “povo USP” é, bem como o que são os demais “povos” das outras universidades públicas brasileiras, deve ser compreendido a partir da história social brasileira, pois resulta do corpo-a-corpo com essa história, não com outra. Esses “povos” exibem, como não poderia deixar de ser, um sentido próprio de povo, de democracia, poder e autoridade. Seu sentido de povo, por exemplo, não é exclusivista: o “povo USP”, assim como os “povos” das outras universidades públicas, não se concebe em relação de oposição com os paulistas, mas antes de complementação. Uma polarização entre dois povos, como está clara na reflexão de Janine, tem enorme valor para aqueles que, inimigos da universidade pública, querem desqualificá-la, valendo-se, antes de mais nada, do expediente do estigma, do rótulo, para dotar o “desafeto” de uma dimensão exótica.
Como povo paulista, o “povo USP”, ao contrário do que Janine absurdamente afirma, os servidores, docentes e alunos, sobretudo estes, não recebem nada de graça. Pagam impostos, contribuem com a sua parte para a efetivação, na cotidianidade, do que constitui o “comum”, para lembrar Hannah Arendt, da comunidade. Homens e mulheres, ricos e pobres, pretos, brancos etc na USP são, evidentemente, idênticos aos demais paulistas em face do “comum”, uma identificação que se amplia como diferenciação altamente legítima: São Paulo torna possível o “povo USP”. É parte dessa diferenciação, sem dúvida, o mal-estar que se revela em forma de crise a cada outono na USP. E que é positivo, legítimo, à medida que se trata de exposição daquele “desejo” que, como o próprio Renato Janine Ribeiro postulou num dos seus ensaios, faz parte da natureza da democracia: desejo de participar das decisões, de ser visto e ouvido, de ser sujeito, enfim, das ações que concernem a toda a comunidade. Que mal há nisso?
Sim, para aqueles que são autoridades na USP e nas demais universidades públicas brasileiras, e que não têm tempo para cuidar do sentido estético encerrado na “auctoritas”, o mal reside exatamente no desejo de democracia, de forma que isso, esse desejo, não é desejo pelo desejo, manifestação com um fim em si mesmo, baderna. Trata-se, para as autoridades, de desejo de poder, que é denúncia de que, segundo o próprio “povo”, falta poder nas mãos do “povo” e, por outro lado, há muito poder nas mãos da cúpula, das autoridades. Acionada, a polícia chega para caracterizar o tipo de poder de que as autoridades se veem investidas: poder real, mecanismo de dominação. Para Janine, autoridade, enquanto “auctoritas”, não se confunde com poder, enquanto “kratos”, o que a realidade nua e crua acaba por contestar, mais uma vez, numa universidade pública brasileira.
A Reitoria da USP, valendo-se da colaboração da polícia, exerce um poder autoritário, a exemplo do que fazem as demais instituições tidas como democráticas fora da universidade (como falar em diferença entre poderes públicos no país?), com a mesma finalidade: conter o desejo legítimo de uma coletividade numa democracia. O “povo USP”, então, deveria suportar o autoritarismo, o processo de eleição indireta para Reitor e outras questões que o oprimem porque a Universidade, segundo Janine, “é um meio para certos fins que a nossa sociedade consensuou democraticamente”, porque a qualidade científica poderá ser ameaçada em função de uma “redução da autoridade ao poder”, porque o mais importante é a autonomia da Universidade etc etc. Ou seja, para Janine, é preferível deixar tudo essencialmente como está porque o que importa mesmo é a essência. Impossibilidade da democracia? Não me lembro desse consenso na sociedade brasileira.







quinta-feira, 18 de junho de 2009

JORNALISMO | Jorge Salomão

ANELITO DE OLIVEIRA – Nestes últimos dias, revirando o alfarrábio que tenho cultivado há tantos anos para chegar ao primeiro volume do que chamo de “Inutilidades”
(um projeto acalentado há muito tempo, reunião de textos esparsos publicados por jornais, revistas, livros dos outros ou escritos e deixados de lado por vários motivos, sobretudo pela dificuldade de publicação, por não despertarem interesse de formatadores de discursos),
encontro esta pequena entrevista que fiz com o poeta, letrista e performer baiano Jorge Salomão, um dos nomes emblemáticos da cena cultural brasileira dos 70/80, por ocasião de sua vinda a Montes Claros em outubro de 2005, quando foi homenageado pelo evento Psiu Poético.
Não me lembro exatamente por que não consegui publicar este material. Lembro-me que o enviei para o jornal “Estado de Minas”, mas não saiu. Talvez pela “inconveniência” das ideias, aquilo que constitui exatamente sua grande graça, traço de uma singularidade.
Jorge!
Lembro-me, sim, de ter ficado meio sem graça de não ter podido recebê-lo com o “grande jornal dos mineiros” em punho:
- aqui está, Jorge, sua “brasa” queimando Minas afora.
Não queria que a entrevista ficasse restrita às Gerais, onde a cultura escrita, por bem e por mal, não é o forte.
Queria que as palavras de Jorge, ditas com sua naturalidade verdadeira, atingisse o alvo certo: são palavras de uma indignação contra aqueles que ordenam o Brasil, que estão nos centros de poder.





A brasa do ser


Homenageado do Psiu Poético 2005, Jorge Salomão, uma das últimas estrelas da poesia brasileira, chega a Montes Claros na próxima quinta-feira para performances, debates e outras intervenções


Parceiro de Frejat e Adriana Calcanhotto, entre outros, autor dos poemas de “Mosaical”, Jorge Salomão é uma das principais atrações do Psiu Poético 2005, que acontece de 04 a 12 outubro em Montes Claros, pleno cerrado norte-mineiro.
Com o tema “Cabecidades / poetas invenções”, esta é a 19ª edição do evento que já teve, entre tantas participações ilustres, a do irmão de Jorge, o saudoso Waly Salomão, Tom Zé e Capinan.
Não apenas parece: o evento, coordenado pelo poeta Aroldo Pereira, egresso da cena cultural de fins dos anos 70, realmente tem uma certa afinidade com o horizonte tropicalista, também é coisa de um outro Brasil.
Jorge Salomão fará sua primeira participação no Psiu na quinta-feira, dia 06 de outubro, às 20hs, no centro cultural Hermes de Paula, onde acontecerá a maioria dos espetáculos.
Com Jorge, passarão este ano pelo Psiu figuras e ponta poética, como o ouropretano Guilherme Mansur, a carioca Vera Casa Nova e o português Fernando Aguiar, entre muitos, muitos outros poetas, performers, atores e músicos.
A programação do Psiu Poético 2005 antecipa a grande celebração que acontecerá no próximo ano, quando o evento, já reconhecido como o mais importante no gênero no país, chegará a sua 20º edição.
No final da tarde de 26 de setembro, enquanto andava pelo centro do Rio de Janeiro, Jorge Salomão conversou comigo sobre sua participação no evento, lamentou Bush, Lula e Gil, elogiou o Brasil e disse que vai mostrar a brasa do seu ser a quem for vê-lo no Psiu.
Como o falador Waly, Jorge queria falar mais, mas a linha caiu. Confira trechos da nossa conversa.




Qual sua expectativa em relação ao evento?

Estou super alegre por poder participar. Gosto muito do histórico do evento, os temas que foram debatidos durante todos esses anos, as pessoas que participaram, os muitos questionamentos que o evento vem fazendo à cultura e à sociedade brasileiras. O Brasil precisa muito de eventos como o Psiu atualmente.

Você está pessimista com o mundo?

Não. Sou otimista. Mas não dá pra ficar indiferente a todo esse terrorismo que Bush vem espalhando pelo mundo. Essa situação reflete em tudo. Mesmo nós, brasileiros, não conseguimos ficar totalmente otimistas diante dessa situação. Mesmo nós que somos uma nação de pessoas boas, cheias de esperança.

E com o Brasil de Lula, você está otimista?

Tenho confiança em Lula, mas acho que seu governo não está indo bem. Dizem que a economia nunca foi tão bem. Mentira! Ninguém vê dinheiro circulando. Por mais que eu pense, não consigo ver avanço neste Governo em todas as áreas. Não quero, de qualquer jeito, espalhar o vírus do pessimismo.

Não é difícil produzir poesia neste contexto de terrorismo global e crise local?

Não. Mesmo diante de tudo isso, eu exercito a poesia 24 horas por dia. Escrevo, faço performances, faço palestras etc. A vida é um mix de coisas alegres e tristes.

O que pensa, especialmente, sobre a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura?

Particularmente, adoro Gil, que, inclusive, fez música em minha homenagem (“Jeca total”). Mas sua atuação como ministro tem sido fraca. Tudo muito burocrático, um ministério cheio de gravatas. Cultura é diferente de agricultura.

Como pensa que Waly reagiria a esse contexto?

Se estivesse vivo, Waly também estaria sofrendo dificuldades.

Então, você está angustiado?

Mesmo sendo, modéstia à parte, um expoente, um escritor, uma celebridade, claro que fico angustiado vendo, por um lado, um Brasil maravilhoso, cheio de graça e beleza, e, por outro lado, uma geração de jovens chatos. Mas sou sartriano e penso que a angústia é o caminho para a liberdade.

O que falta, afinal, para melhorar social e culturalmente o Brasil?

Falta criar uma dinâmica em todos os setores. Tudo é muito enjoativo. O Brasil é o país do possível, com inúmeras possibilidades de dar certo.

Pra finalizar, como será sua apresentação no Psiu Poético?

A performance que vou apresentar, “Jorge Salomão Poesia Show”, é uma leitura diferente de poesia, com um clima quente, em que transparece a brasa que é o meu ser. Gosto da coisa mais brutal que o ser pode dar, como pedra bruta de onde sai o diamante. Não sou um poeta tradicional, mas um malabarista do verso, um revolucionário.





Evocação de Jorge Salomão


ANELITO DE OLIVEIRA - “Política voz”, aquela sua letra reverberada por Frejat, é a voz de Jorge Salomão, atravessada por uma incessante inquietação em face do “status quo”, voz de um “out” radical. A primeira vez que a ouvi foi debaixo de lágrimas na escadaria da Biblioteca Nacional, naquela noite de maio de 2003, no velório de Waly Salomão. Jorge estava desmontado – e não fazia questão de amenizar nada: o homem diante da monstruosidade do mundo. Fiquei um tempão olhando para Jorge ali, sem jeito de conversar com ele, assim como tinha ficado um tempão, ao lado do ensaísta e escritor Evando Nascimento, olhando Caetano e Gil, que lá estavam, e sem jeito de falar com eles sobre Waly – sobretudo Caetano, ali como pessoa; Gil estava como ministro. Quando cumprimentei Jorge, começamos a conversar, ele logo se pôs a escrever um poema - ou momentos depois o escreveu, já não me lembro - em homenagem a Waly e me passou - ou me mandou via correios - para publicar no “Suplemento Literário”, que eu então editava.
A exemplo da entrevista acima, o poema também não foi publicado. Não sei o que houve. Parece que não deu certo um número especial que eu planejava em homenagem a Waly. O Secretário de Cultura de Minas Gerais à época (Luiz Roberto Nascimento e Silva), que parecia ter alguma reserva em relação ao poeta (sequer compareceu ao lançamento, na Livraria do Ouvidor em BH, de um número especial sobre o centenário de Drummond, que contou com a presença de Waly, que era um dos colaboradores e, também, o então Secretário Nacional do Livro e da Leitura – do Livro e da Loucura, como eu preferia dizer, e ele ria, ria escancaradamente, como só o próprio o sabia), talvez seja a razão de não ter saído o número sobre Waly – devia ter saído assim mesmo, de qualquer jeito! Mas não saiu. Acabei saindo, e não sei aonde o poema de Jorge, escrito à mão, no meio da agonia, foi parar. Espero encontrá-lo algum de dia, ou que Jorge o tenha guardado na memória.
Todavia, recordo que tudo que o poema dizia, ou fundamentalmente dizia, era por que o homem em geral, a espécie, desmonta-se, porque ele Jorge estava ali assim, desmontado, tal qual eu mesmo me vi diante de um irmão morto em 93 que, por sinal, tinha também aquele gênio espalhafatoso, impaciente, de Waly: desmonta-se porque se esbarra num lugar. O poema de Jorge detonava a Bahia, como se aquele lugar fosse o “culpado” por aquela morte tão prematura, como se a Bahia tivesse “matado” Waly. Agora, pensando bem, como me parece que tem tudo a ver! Lugares podem castigar e matar pessoas, bem como as podem acolher e estimular a viver. A Bahia, no velório de Waly, era referência de união para alguns dos baianos mais populares que estavam ali, mas para Jorge Salomão, não. Eu, que na noite anterior à notícia da morte de Waly tinha me abandonado à leitura das “Lamentações de Jeremias”, tinha uma voz ressoando na cabeça: “o homem da palavra é o homem da solidão”.
Incompreensão. Jorge desmontado na escadaria era isso. Talvez era isso também um outro grande cara, abraçado ao caixão de Waly, tão admirado por este: Marcelo Yuca. Merecia, como Waly, ser compreendido, em algum lugar, talvez em Minas Gerais, no Psiu Poético, em Montes Claros. Waly, várias vezes convidado, acabou decidindo aparecer como homenageado do evento em 2001 ou 2002, não me lembro ao certo. Ligou-me certa tarde, eu atravessando a Augusto de Lima em Belo Horizonte em meio a um monte de problemas, e me perguntou se poderia “avalizar” o evento, bem como estar em Montes Claros na noite de sua apresentação. “Avalizei”. Quando, depois de cancelar todos os compromissos, voei para Montes Claros e cheguei ao Centro Cultural Hermes de Paula, poetódromo do Psiu Poético, lá está Waly numa agonia performática: Eu quero meu dinheiro! Eu quero meu dinheiro! - algo assim. Ainda não tinha recebido o cachê combinado e havia possibilidade de receber só depois de retornar ao Rio. Gritava ao telefone, falando com a então Secretária de Cultura, e depois virava para mim e ria macunaimicamente. Depois de um debate, a que não faltou gozação walyana com ares de coisa séria para irritar gente ridícula, saímos a caminhar, juntamente com outros órfãos da poesia, em direção ao restaurante reservado a todos os participantes do evento, vala comum de famintos, sem a companhia do povo do poder local, sem deferências. Waly, a sua maneira, reclamava do descaso, e eu pensava no descaso como sendo um traço típico da cultura local nortemineira.
Três anos depois, já voltando a viver em Montes Claros (morei nesta cidade no final dos anos 80), foi a vez de Jorge Salomão ser homenageado pelo Psiu Poético. Pensei que seria mais bem recepcionado que Waly. Nada. Num momento no mercado central, onde acontecem algumas atividades do evento, teria sido até destratado. Tentei, pelo respeito e admiração que tenho por Jorge desde quando não pensava que o conheceria pessoalmente, fazer com que sua passagem por aqui não fosse tão desastrosa: conversamos várias vezes, convidei-o a participar de um programa de rádio que inventei na rádio Unimontes, convidei o pessoal de um jornal para entrevistá-lo. E vejo que foi tudo muito pouco. Entre nossas conversas, falamos da possibilidade de tornar possível uma edição da sua poesia completa. Jorge voltou para o Rio. Um dia me mandou uma carta via Aroldo Pereira, coordenador do Psiu Poético. Nunca mais fui ao Rio, nunca mais tive notícias de Jorge por qualquer meio. Nosso diálogo tem estado suspenso, e espero que esta publicação seja uma ponte reformada com esse “ladrão de fogo” ainda capaz de provocar incêndio com palavras ou, no mínimo, quebrar copos com o silêncio dos sons nos discos da vida.

domingo, 14 de junho de 2009

LITERATURA | Lama revisited

ANELITO DE OLIVEIRA - Em 2000 – quase dez anos já! –, publiquei o poema-livro Lama pela Orobó Edições, lançado numa noite de chuva (tudo a ver) em Belo Horizonte, na livraria Scriptum, então point da poesia. Era um trabalho que estava “pronto” desde 1997, com o qual havia ficado envolvido desde 1994. Quanta estranheza acabou suscitando este fato! Quatro anos para escrever isso?! Quatro anos para “desescrever” isso, eu me dizia compreensivamente. Se fosse um suposto romance, com suas duas mil páginas de banalidades supostamente interessantes, ninguém estranharia, claro. Mas, a exemplo de tantas figuras ilustres – Mallarmé, Rubião -, não se tratava de escrever apenas mais uma coisa literária. Queria – sempre o desejo! – ir além, para além da convenção. Aonde cheguei com isso? Até agora não sei, tanto que continuo envolvido com esse texto, sobretudo com questões que lhe dizem respeito. Por exemplo, a relação entre dizível e visível em poesia, como adequar essas duas dimensões, como “resolver” a inadequação fundamental entre essas duas dimensões. Há alguns anos, fiz uns reparos na primeira edição, chegando a esta feição – que aqui disponibilizo -, em vias de sair em papel, talvez agora no segundo semestre ainda ou no ano que vem. Lama é apenas um problema de poesia, cuja dignidade passa, necessariamente, pelas circunstâncias individuais, sociais e estéticas em que foi operacionalizado.







LAMA


2ª edição, revista e modificada








“Caminho dia e noite
como um parque desolado”


Vicente Huidobro











A José Benedito Rocha (in memoriam)
e Valdeir do Rosário,
fora da literatura, no meio da vida







Neste tête-à-tête comigo
Paisagens num abismo
Sóis rachados na janela
Paraísos enforcados
Por todo lado nuvens
E nuvens dormem nuas
Pássaros inutilizados
Na aragem uma chuva
Petrificada rumor de
Ossos secos cantando
Dentro de mim roendo
O tempo mais fundo
Uma coisa contra tudo
E outra abaixo dela o
Bate estrondo quedas
Corpos duros atirados
Num muro áspero de
Cimento e silêncio tal
Qual pobreza o negro
Contra o azul um soco
A noite em fúria nas
Entranhas do dia no
Meio das coxas desta
Tarde partindo a luz
Que se parte por fora
Por dentro quebrando
Vidros de pensamentos
Sobre o chão na lama
Do chão e na sua alma
O furor aceso as feridas
Chuva a rolar sobre a
Laje ideias saindo das
Coisas para uma noite
Nascendo perdida crua
E presa entre paredes
Água afogando todos
Os sentidos envolvendo
Tudo como uma luva
Esquecida no canto do
Passado nas gargantas
Escuras dos cantos e
Cantos e olhos perto de
Baratas as mãos entre
Os dentes inutilizadas
O pênis arrefecido no
Perfume do sono e ela
A boca costurada como
Uma estrela surda nos
Braços abstratos leves
E vis e brancos neves
Nevadas pés flutuando
Cabides livros pedras e
Penas mudos no quintal
Um tempo quebrado
Volta tudo se reparte
Novos cacos para
Velhas partes de um
Corpo que arde num
Tecido de cicatrizes
Tecer palavras como
Quem esquece de tudo
Caminhando em meio
A suaves folhagens de
Um parque fundo mas
Tão vazio de tudo ali
A sorver flora e fauna
Os ouvidos escondidos
Dentro do bolso imundo
Os olhos soterrados no
Submundo da alma o
Nariz morto nas verdes
Velhas águas de uma
Gripe não sei se o céu
Merece o azul o sono
Inventa outra arte os
Dedos cavam neste ir
De deserto e mar sem
Nada além de sombras
Do aquém não sei se
Ao fim haverá sol para
Estar sob esquecer e
Sair abrir uma porta
Olores de outra música
Nesta sesta aberta entre
Árvores vento de luzes
Brisas de filme mudo
Gestos palavras livres
No ar tudo vai volta
Relógio disparado e
Ouço o que é a morte
Com sua frieza cacto
Toco um dedo ali na
Pestana dessa mulher
Amarela lago de nada
Fonte de lama noites
Tristes diviso fogos
Explodem nos meus
Ombros
Pedaços de tempos
Despedaçados mãos
De crianças abertas
Vozes esmagadas na
Praça de cansaço e
Tristeza suspiros de
Sufoco abandonos na
Calçada choque nos
Olhos bêbados ela a
Morte cresce aquela
Tarde retorna furada
Jorrando sangue eu e
Ela andando no meio
Da chuva a chover
Penetrar um espelho
Dilacerado onde um
Olho derrapa e corta
O corpo resiste a ver
Olhando um tempo e
Atrás dele o desvisto
Pergunta que se faz
Resposta que não vem
Uma lança se lança
Às costas do sentido
Ponto de convergência
Enigma depois atrito
Fresta para o proibido
O sono crescendo para
Dentro do pesadelo e
O corpo lento agora
Que a cabeça quase
Dormente pensa pura
Rolando lúcida sobre
O tempo entre sons a
Se soltar andando cega
Como bois de silêncio
Um olho está dizendo
Paisagens ouvidas ao
Ir através da neblina
Parece que abro mais
Além do aberto o olho
Da morte com o pé que
Piso
Em cada dia que passo
Sob a curva da noite
Que todo dia realiza
Nas costas das coisas
Sinto flácido levando
Nas mãos algo que
Deve ser a morte com
Sua sombra de aço por
Baixo de todos os sons
E letras girando sobre
O papel resisto indo
Para dentro do abismo
Os tempos voltam uma
Nau ao longe num mar
Nervoso no centro de
Mim esta voz rasgando
Lâmina rouca nesses
Dias de alegria gritos
Bandeiras e apitos e
O oco da vida rindo
Agora a tarde caindo
Inútil contra a tarde
Folha triturada por um
Inseto azul começar a
Morrer lentamente ler
Gota deslizando na telha
Vozes tardes voando
Quando nada sangrava
Eles faziam festas na
Tela inocentes da vida
Lâmpada murchando
Sol só não sonha céu
Sentido não sente ou
Os ponteiros seguem
Loucos estando ébrios
Um eu que corra sobre
O caminho onde andava
Naquela tarde comigo
Quando a noite cresceu
O sol estava parado ali
Vigiando como um sinal
E eu passou mudo como
Um farol
O que já vi outrora
Agora uma dor desmancha
A festa o filme o falso
Todas as imagens ilusórias
E ressoa renitente apenas
Esta voz a apodrecer como
Lençol velho ao sol de um
Lugar cortante
E este tempo quando o
Corpo fumaça rolando
Incessantemente vapor
Qualquer dentro deste
Quarto essa tarde ou
Naquela ou dentro de
Outra distante de mim
Se deitando entre as
Flores amarelas e o
Muro e o lixo e o ouro
E a usura de tudo numa
Cidade enquanto as
Coisas ardem e morrem
Entre as pessoas e a
Roupa das pessoas
Comigo e com elas nós
Sem cores perdidos e
Perdendo-se a perder
De vista gotas sopros
Estrelas encardidas
No meio da noite sem
Ninguém e todos mas
Sem ninguém e pobres
Soltos nas ruas bares
E becos encharcados
De cerveja babando
Desilusão tragando e
Cheirando cagando na
Privada suja urinando
Caminhando sem rumo
Pelas ruas invernadas
Frutos de nada apenas
A sombra fria a sombra
Silenciosa de silêncio
Que nunca mais vai ser
Vida

sábado, 13 de junho de 2009

LITERATURA | Anotação quatro

ANELITO DE OLIVEIRA – Não raro me vejo propenso a colocar, ou mesmo já colocando em dúvida o sentido de escrever literatura hoje, especialmente poesia.
Vejo-me, antes de mais nada, situado nos extremos da questão –
Por um lado: onde está o sentido de escrever?;
Por outro lado: o que acontecerá, ou aconteceria, com uma desistência generalizada desse tipo de tarefa?
Claro que se um ou alguns apenas param de escrever, como Rimbaud, nada acontece, fica como fato isolado, exótico, ou não.
Mesmo se se trata de um poeta da estatura de um Rimbaud ou de um escritor da estatura de um Borges, que nunca colocou em dúvida a validade do escrever em si – há todo um “desprezo” pelo próprio trabalho em sua obra, mera vaidade -, a produção de textos literários segue seu curso.
Sem ir muito longe, tendo a concluir, naturalmente, que um ou muitos rebeldes parando de escrever – Lobo Antunes, conforme anunciado, por exemplo - não conseguem parar a literatura.
Este fato – escritores escrevendo incessantemente – sugere que escrever literatura, hoje como ontem, tem um sentido difícil, que esse escrever é uma atividade que só se explica dificilmente.
Olho em torno de mim e dos outros, o que se passa mais longe e mais perto, nas esferas global e local, e não vejo por que escrever porque não vejo, também, o quê escrever, o quê merece ter lugar na literatura.
Intolerância?
Intransigência?
O quê, num mundo absurdamente banal, demanda uma crônica, um conto, um romance ou um poema? Se o mundo como um todo não demanda, o quê, especificamente, demandaria no mundo a literatura hoje?
Demanda do mundo; demanda no mundo.
Não é só o mundo em geral que está imerso na banalidade, mas também todas as partes do mundo, todas contaminadas por uma dose assustadora de banalidade.
Certamente, é o caso de fazer literatura com toda essa banalidade, e é o que a maioria está fazendo: literatura com banalidade. Para gente banal consumir, claro.
Não há dúvida que, envolvida numa relação com assunto e público banais, a literatura se perde enquanto discurso outro, convertendo-se em lugar comum discursivo. Deixa de ser literatura, portanto.
Tal como o mundo, tal como o homem, a literatura à base de banalidades hoje é a ostentação de uma política do mal que denuncia e condena a própria literatura como instituição cínica.

sábado, 6 de junho de 2009

LITERATURA | Anotação três

ANELITO DE OLIVEIRA - Não falei nada a respeito da nova mudança de "roupa", e agora, altas horas de outro dia, vejo que é necessário. Não sei exatamente por que é necessário, mas vejo que sim. Poderíamos não ver necessidade de dizer certas coisas, ficar sem dizê-las, não dizer nada. Mas o fato é que vemos necessidade, que nós mesmos inventamos, que nós mesmos criamos. Quem necessita realmente daquilo que dizemos no lugar da literatura? Um escritor é um inventor de necessidades discursivas. Dizer algo sobre a aterrissagem do "primitivo" Basquiat por aqui tem a ver com isso.
Há tempo não pensava em Jean-Michel Basquiat, o ícone da pop art nos anos 80 nos EUA, filho de haitiano e portorriquenha, admirado exaltado fetichizado por tantos, a começar por Andy Warhol, a pop art em si. Não pensar num artista, num acontecimento processado no mundo das expressões artísticas, jamais significa um esquecimento. A experiência estética é fundamentalmente inesquecível, não porque o queremos, mas porque, uma vez efetivada, passa a fazer parte da nossa natureza, passa a atuar, especialmente, sobre nossa maneira de sentir coisas, situações etc.
Assim, não pensava em Basquiat ultimamente, mas não havia esquecido sua obra, esse modo de ser de uma obra que acabou por se fixar como atmosfera de um tempo: esse modo de ser desastre no ar, desvanecimento se dando numa supefície frágil, desesperante forma de desespero. Não há pavor nesse processo, não há algo que se possa chamar de escandalosamente ocidental, histeria logocêntrica. Há, por isso mesmo, um desdobramento do nonsense como fundamento da normalidade de cada dia: 228 pessoas voando para a morte, morrendo inocentemente.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

LITERATURA | Anotação dois

ANELITO DE OLIVEIRA - Maio se foi. Constato agora: já estamos em junho, um outro mês. Maio foi altamente improdutivo neste espaço, apenas uma postagem. Raramente estive aqui. Fiquei dias desconectado, tentando resolver os velhos problemas práticos. Desencantado, retomei os problemas teóricos. Pensei (talvez seja apenas o caso de confessar aqui) constantemente na dificuldade de escrever constantemente. Não é questão de assunto. Claro que há uma gama enorme de assunto todo dia a nos torturar. A questão é mesmo encontrar uma forma adequada para expressar cada assunto. Nada novo, obviamente. À minha maneira: encontrar a forma adequada de expressão é algo como responder à natureza de um assunto. Expresso adequadamente, qualquer assunto se torna interessante. Inadequadamente expresso, qualquer assunto se torna desinteressante. Um mês, por exemplo, o mês em si, o que se passou, maio. Drummond expresou maio como "o claro mês de porcelana". Depois de tomar conhecimento desta expressão, num dos seus versiprosas, nunca mais percebi maio do mesmo jeito. Deixou de ser para mim um mero mês. O mesmo aconteceu com abril depois do poema de Eliot. Só vejo abril como "o mais cruel dos meses". O claro e o cruel - maio, abril. A expressão altera definitivamente uma percepção. Antes de abril, fico pensando em abril. Depois de maio, fico pensando em maio. O que aconteceu do início do ano até abril? O que acontecerá do fim de maio até o fim do ano? O sentido de escrever literatura, de aguçar o imponderável, tem a ver com isso, digo, com esse tipo de sensação. Cabe?